segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

O acting out na produção psicanalítica atual

A produção psicanalítica mais recente, situa o acting out em dois lugares pontuais: primeiro, localiza-o no analisando, como um real que a ele escapa; segundo, designa o lugar do analista, e se refere à questão de como conduzir o analisando ao campo das palavras.
Chamorro compara o acting out à relação que se estabelece entre ator e público com o que se desenrola na análise, em que o analista ocupa a posição do Outro (lugar da palavra).
Ao desenvolver a dialética do sujeito e o Outro, Lacan pensa o acting out em relação ao lugar do Outro. Neste contexto, o acting out é apresentado como uma resposta a uma posição específica do analista. O que se destaca aqui é a reciprocidade das respostas – interpretação e acting out – como evocadora de efeitos nas posições ocupadas por analisando e analista.
O acting out, como demanda de interpretação, representa a transferência selvagem, efeito de uma intervenção do analista que ocorre quando não se produz o ato analítico.
Este conceito – ato analítico – se refere à estrutura do discurso, na qual o psicanalista não sustenta a dimensão da realidade, mas sim uma dimensão do real que Lacan chamou de objeto “a”, cuja preservação, como causa, é a que abre as portas de acesso ao desejo.
Quando isto não ocorre, essa dimensão real do desejo será mantida de diversas formas. Uma delas é o acting out; outra, é a passagem ao ato.

Na dialética entre o sujeito e o Outro há um resto, que não se encaixa, dando surgimento ao acting out, ou, à passagem ao ato.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A generalização do termo acting out

Nos anos trinta, acting out era usado como um conceito técnico para expressar uma forma de resistência ao tratamento psicanalítico, para caracterizar a atuação de pacientes neuróticos em resposta às pressões da análise.
A operação analítica consistia em manter dentro do âmbito psíquico o que se derivava da ação motora. Via-se como necessário manter um campo de invariantes para dar direção à cura.
Desse tipo de concepção, destaca-se a influência da psicanálise argentina, cujo expoente máximo se encontra na contribuição de Bleger sobre o enquadre psicanalítico.
Para Bleger, o trabalho psicanalítico consiste em criar um enquadre firme e estável, que evite a contaminação do analista pela regressão transferencial do analisando.
Assim, o enquadre permite mapear o acting out, como a figura que se destaca do fundo. Figura que transgride a ordem do enquadre.
O acting out era visto então como um obstáculo, uma manifestação da resistência, através de comportamentos indesejáveis seja para o analisando seja para o rumo da análise, e colocava em foco problemas do processo psicanalítico.
Daí para aplicar-se o termo a qualquer comportamento indesejável do ponto de vista moral e social foi um pequeno passo.
A ampliação do conceito teve forte presença na literatura da década de sessenta. Época em que mais se dilatou seu sentido. O termo passou a caracterizar a conduta delinqüente, diversos tipos de patologias, ações impulsivas, anti-sociais e perigosas. Pouco se prestava atenção aos contextos em que tais ações surgiam.
Essa grande variedade de usos tinha como elo a idéia do motivo inconsciente ser o deflagrador da ação.
Fenichel é considerado um dos maiores responsáveis pela ampliação do conceito. Ele relacionou o fenômeno do acting out tanto ao âmbito do tratamento analítico, quanto aos aspectos patológicos da personalidade que predispõem o indivíduo a tendências impulsivas.
Fenichel acha que algumas pessoas mostram maior predisposição em exprimir seus impulsos inconscientes na ação do que outras.
O peculiar de tal formulação foi dotar de particularidade o caráter de certos indivíduos caracterizados como tendenciosamente impulsivos. O que leva a se enfatizar mais os aspectos individuais da personalidade do que o contexto em que se verifica a ocorrência de tais comportamentos impulsivos.
A literatura pós-setenta apresenta uma reação que se opõe à generalidade na aplicação do termo, à idéia de que designa algo indesejável.
Desde então passou-se a valorizar o acting out como fonte de informação valiosa, como fenômeno que permite o acesso a uma forma especial de comunicação, como canal que expressa o surgimento de material novo no processo analítico.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Como a noção de acting out aparece nos escritos de Freud

Freud empregou o termo agieren (traduzido para o inglês como acting out) pela primeira vez em 1905, no caso Dora, num sentido técnico particular, em que destacava a relação desse termo com a situação transferencial, com a resistência e com a substituição da memória.
Ao relatar a interrupção precoce de Dora do tratamento, Freud conta que ela atuou uma parte de suas lembranças e fantasias ao invés de expressá-las com palavras no processo analítico. Ele escreve:
(...) “a transferência apanhou-me desprevenido, e, devido ao que havia de desconhecido em mim que a fazia lembrar-se de Herr K, ela vingou-se em mim como desejara vingar-se dele, abandonando-me do mesmo modo como se sentira abandonada e enganada por ele. Assim ela ‘atuou’ uma parte essencial de suas lembranças e fantasias, em vez de reproduzi-las no tratamento”.
Mais tarde, em 1914, Freud discorre em detalhes sobre este termo no texto Recordar Repetir e Elaborar, no qual ressalta seu entrelaçamento com a prática psicanalítica.
(...) “podemos dizer que o paciente não ‘recorda’ coisa alguma do que esqueceu e reprimiu, mas o expressa pela atuação ou ‘atua-o’ (‘acts it out’). Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação: repete-o, sem, naturalmente, saber o que está repetindo”.
Neste pequeno trecho, Freud se refere a ações que o paciente pratica ao invés de recordar. Ele repete o que esqueceu e reprimiu ao reproduzir como ato, sem saber o que está repetindo. Esta é uma forma peculiar de recordar que aparece durante a análise.
Mas repetição não é o mesmo que acting out, embora neste se expresse uma modalidade de repetição.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Considerações sobre o exame pericial

Nas próximas postagens, vou tecer considerações sobre o exame pericial no contexto psiquiátrico-forense.
Estas reflexões são particularmente úteis para os profissionais que trabalham no sistema judiciário, além, é claro, de esclarecer especificidades conceituais para todas as pessoas que se interessam pelo tema.
Iniciarei o assunto introduzindo o significado da expressão acting out.

Não existe na língua portuguesa uma palavra que corresponda fielmente ao sentido literal contido no substantivo inglês acting out.
A expressão acting out, tal como usada no campo da psicanálise, consiste na tradução para o inglês das palavras alemães: agieren (verbo intransitivo, que significa to act, agir, atuar), e holdeln (to act, agir, atuar).
Existe uma confusão relacionada ao uso do termo que pode ser atribuída aos empregos originalmente feitos por Freud dessas palavras - agieren e holdeln - de mesmo significado, usadas em contextos diversos, e traduzidas para o inglês pela mesma expressão: acting out.
O verto to act significa atuar, funcionar, trabalhar; e em sentido figurado: fingir, simular. To act out significa a ação de uma pessoa representar ou manifestar em seu comportamento expresso um conteúdo psíquico, um sentimento, uma idéia, ou mesmo repetir um diálogo previamente decorado na encenação de um certo papel.
Na língua portuguesa, esses termos são traduzidos por atuação, palavra que se banalizou no uso excessivo e adquiriu conotações pejorativas.
Nos textos psicanalíticos, nota-se a preferência pela expressão inglesa, acting out. Esta alcançou consagração com os estudos de Lacan, transmitidos sob a forma de seminários.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

O adoecimento no campo de investigação

Ao desenvolver atividade de investigação, muitas vezes, o policial é convocado a se infiltrar num ambiente marginal, a assumir outro nome, outra identidade social. Atividade que costuma desempenhar com fronteiras aparentemente nítidas.
Tal como um alcoólatra que jura ter controle sobre a bebida, a divisão que nele toma corpo pode atenuar ou até mesmo apagar os limites que ele supõe dominar entre realidade e falsa identidade. E, não raro, o bom policial, aquele considerado ban-ban-ban no campo, queda psiquicamente adoecido.
Mas somente quando alguma coisa de muito grave acontece pessoalmente com o policial, algo que o toca verdadeiramente, como situações de alto risco em que poderia ter perdido a vida, ele começa a se distinguir de seu papel, a se distanciar da máscara que construiu no desempenho de seu trabalho.
Como se o fato incontornável que viveu tivesse tido sobre ele o efeito de paralisá-lo e lançá-lo fora da percepção cronificada que compartilhava no campo, para, então, poder se perceber sobre outro prisma. Em exercício, este policial se sente discriminado e passa a ser considerado inadaptado pelos colegas.
Esse processo de deslocamento e de diferenciação que sofre o policial, permite-lhe compreender as loucuras em que estava envolvido em seu cego exercício, e passa a duvidar das crenças do campo, passa a duvidar das certezas que compartilhou com os colegas.
É esse distanciamento que pode permitir ao policial discernir algo do seu próprio adoecimento. Primeiro passo para a sua busca de ajuda e conscientização de seu sofrimento emocional.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Por que o policial precisa negar o conhecimento que adquire na academia?

Desaprender a academia, negar o ensinamento para se manter vivo nas ruas. Essa é a crença que o policial sustenta. Assim tem inicio o processo de afastamento dos novos policiais dos valores que norteavam suas vidas e, a concomitante entrada na illusio do campo policial. Conta-me um policial:
“(...) um professor falou na academia de polícia, uma das poucas coisas que eu guardei: ‘procurem sempre se olhar no espelho e fazer um exame de consciência, tipo, o quanto eu tô distante de mim mesmo, quem eu fui quando entrei e no que eu tô me transformando’. Então acho que no meio dessa massa gelatinosa... tá arriscado você perder a tua identidade. Na polícia você começa a dar uma valoração certa ao que é errado. Começa a achar que você anda certo pro lado errado da vida, ou anda errado por lado certo da vida. Porque você tem acesso a um código, e a medida que aquilo vai acontecendo você começa achar que aquilo ali é uma coisa normal. Você já não se sensibiliza mais. É aquela coisa do errado que passa a ser verdadeiro”.
O envolvimento do policial com o desempenho de suas funções pode acarretar graves conseqüências para sua saúde mental. Quer dizer, quando o policial iniciante entra pra valer no jogo (que é o próprio campo onde trabalha), começa a perceber que não é possível compartilhar em casa o que vive na rua, muitas vezes para proteger a família das situações difíceis que não raro ele se vê envolvido.
Quanto mais intimidade adquire com o campo mais se distancia da família, e quanto mais fortemente esse processo se desenrola, mais venera a família. Colocando-a num lugar ideal, cada vez fala menos de seu trabalho em casa. Esse é o início de seu isolamento e de sua divisão subjetiva.
É comum relatos de policiais que passam semanas sem aparecer em casa. Algumas vezes forçados pela necessidade do serviço, outras, levados por motivos que eles mesmos desconhecem. Não se dão conta que passam a gostar de freqüentar os lugares que investigam; não se dão conta que começam a se envolver com atividades que deveriam reprimir.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

O policial é o mestre de seu saber

Senhor de uma saber e uma técnica que domina na rua, transformada esta em laboratório, o policial despreza a palavra do mestre. Ele é o mestre de seu saber. Mestria constituída na chama do aqui e agora; saber tateado no enfrentamento que as circunstâncias o obrigam a desenvolver e consolidar como válidos.
Seu saber não comporta a teoria, e é compartilhado apenas com seus pares. Dessa mestria advém a aparente autoconfiança expressa no olhar de autoridade, onde brilha a certeza de quem sabe que sabe.
A teoria é rechaçada com vigor e a academia de polícia é vista como uma fraqueza da corporação. Talvez aí esteja a maior dificuldade de se introduzir qualquer mudança significativa na formação do policial, uma vez que ele teve de se desprender da teoria.
Do relato de uma mulher policial que nos conta sua experiência, extraímos uma mensagem; semente que merece ser cultivada. Ela diz:
“Eu entendo que esse tipo Rambo, que bate, esfola e arrebenta, isso é um estereótipo, uma estética que está sendo superada, dando lugar a esse policial que hoje é mais bem preparado tecnicamente, ou seja, o fazer uma investigação requer um conhecimento técnico de várias áreas. E se você consegue, isso suplanta a questão da força. Você vê pelo meu biotipo que eu não sou uma pessoa forte, mas eu tenho condições de quando chegar a colocar a mão, eu sei exatamente a dimensão do que eu to fazendo. É para não esboçar uma reação. Eu vou pegar no momento certo, na hora certa, com a condição certa”.
Quando a jovem policial me conta como procede no ato de prender uma pessoa, ela reflete sobre sua fragilidade comparada ao porte viril dos rapazes policiais, e sobre seu ardil para ultrapassar a limitação que seu corpo feminino lhe impõe no embate que trava para vencer as dificuldades do momento ativo quando em operação.
Sua estratégia estimula e valoriza outros atributos que não envolvem a força bruta. Vemos então como a sensibilidade feminina pode abrir um trajeto, favorecendo o salto necessário para superar a truculência masculina que se atualiza no comportamento do policial.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

O saber do policial é adqurido nas ruas

O código (não explícito) da conduta policial é traçado nas operações de rua, no exercício cotidiano das funções de repressão e investigação. Esse código implica na formulação de uma saber empírico cru.
A sabedoria da profissão de policial se desenvolve no embate circunstancial que se processa nas ruas. No confronto entre o ataque e a defesa, in loco, o policial traça sua estratégia de sobrevivência. No centro da qual se situa o maior de todos os desafios: ludibriar a morte.
Em primeiro lugar é preciso ser capaz de manter-se vivo; de proteger a si e ao outro da sedução do ataque.
Nesse empenho fatal se vê quão indissociável se tornam saber e poder. Experiência que promove o apagamento das diferenças entre os policiais novos e os veteranos, e os une no descrédito que dedicam à academia de polícia.
Um policial me relata sua visão sobre o treinamento realizado pela academia. Ele diz:
“Hoje em dia eu penso que a academia me ensinou a morrer mais rápido. Tudo que eles me ensinaram lá é uma prática pra você morrer mais rápido. Porque nem sempre aquelas pessoas que estão à frente de ensinar são pessoas que foram operacionais. Existe uma grande diferença entre você ser um policial administrativo, da academia, e você ser um policial. Porque são professores, que são delegados, que são convidados a dar aula. Mas nem sempre esses delegados foram policiais de carreira, foram detetives, tiveram vinculados a operações. Porque isso é muito importante. Tter o domínio de como você pode atuar e você ter a experiência de vida, de rua mesmo, porque cada dia o ambiente se transforma pra você”.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Bandido bom é bandido morto

Inserida na rotina grosseira das reclamações, das apreensões e da burocracia dos procedimentos judiciais, a polícia desenvolve uma visão pessimista e generalizada, na qual se revela o descrédito na eficácia da justiça.
Os policiais se consideram peritos em lidar com a classe criminosa. Muitas vezes, este conhecimento pragmático que acreditam possuir respalda atos grotescos em que se destacam abusos lamentáveis.
Atualmente, o ingresso na polícia civil exige aprovação através de concurso público, e os aprovados são inseridos num processo de iniciação que, em tese, os prepara para desempenhar as funções típicas de policiamento.
Dada as dificuldades de colocação no mercado de trabalho, essa geração de policiais agrega um grupo de pessoas diplomadas em cursos de nível superior, com formações diversas, como administração, estatística, direito, sociologia, arquitetura, psicologia etc.
Situação interessante para arejar a corporação e nela introduzir esses domínios de áreas específicas. Fato que pode inclusive se tornar oportunamente útil.
Esse grupo de policiais representa o segmento esclarecido, que acha que pode contribuir para a transformação da polícia, e que vislumbra, para o futuro, uma polícia técnica.
Para esse grupo, a força da polícia e o êxito de seu desempenho se situam no momento anterior à ação, no planejamento, na montagem de uma estratégia. Tendem a enfatizar a investigação, e contrastam com o grupo mais tradicional de policiais veteranos, do qual se destaca a figura do policial truculento. Para esse grupo, a força da polícia se situa exclusivamente na ação.
Amplamente disseminada nesse campo, a sentença bandido bom é bandido morto sintetiza a crença desse tipo de policial, que representa um grupo identificado com a exibição de poder do policial em operação.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Os destinos da polícia

A polícia se desenvolveu ao largo de um controle eficaz por parte do estado. Na maioria das vezes a corporação teve (e tem ainda) que se virar com suas próprias e peculiares soluções.
Isto se dá em razão do histórico abandono do estado, aferrado que se encontra a seu descompromisso com a política de segurança pública.
Hostilizada pela população pobre e desprezada pela elite, a polícia nunca desfrutou de um reconhecimento que a tornasse atraente enquanto status social.
A carreira policial brilha mais na fantasia infantil do que na ambição cultuada pelo indivíduo adulto. A permanência nos melhores cargos do sistema policial sempre apresentou característica transitória, servindo antes como trampolim para lançar o indivíduo numa situação mais confortável e elegante no sistema jurídico ou na administração pública.
A elite nunca teve interesse em se voltar para os problemas da ordem social, muito menos em se preocupar com os destinos da polícia.
Assuntos desagradáveis que colocam em pauta adversidades cotidianas são evitados em prol do bem-estar e do prazer mais nobre, não merecem ser evocados nas finas rodas. Esquecidos, permanecem confinados nos porões da exclusão.
Se nos anos noventa o campo policial tornou-se objeto de interesse crescente das precisas lupas da comunidade acadêmica, ou assumiu lugar de destaque nos debates intelectualizados sobre a cidadania em contraponto com a barbárie que assola o espaço urbano é porque a violência, antes restrita a áreas delimitadas da cidade marginalizada, derrubou os muros da segregação e ganhou as ruas da cidade européia que ainda existe no Rio, hoje muito menos demarcada do que antes, inviabilizando a distância asséptica até então garantida.
Pela natureza da tarefa que lhe cabe desempenhar, a polícia permanece em contato constante, às vezes por demais estreito, com os mais temíveis ou desavergonhados transgressores da ordem.
E a polícia consolidou a convicção de estar conduzindo uma luta sem apoio, mesmo por parte daqueles que supostamente estaria a serviço.
Responsáveis por manter a ordem pública, os policiais recebem a insígnia da autoridade, o que lhes confere certo grau de poder e de trânsito na cidade, mas não são bem instruídos tecnicamente e muito menos estão preparados do ponto de vista ético para entender criticamente o papel que lhes cabe desempenhar no cotidiano das ruas.
Apenas quando um policial se deixa apanhar, punições severas como a expulsão podem ocorrer, e os registros policiais estão cheios de ex-policiais, mas dificilmente se vê chegar ao Tribunal acusações contra policiais.
O que nos prova que a brutalidade no exercício de policiamento e a rede de corrupção que se articula nos bastidores da polícia são veladamente consentidas, desde que permaneçam subterrâneas no submundo, longe da visibilidade da vida civil.
Não se pode esquecer que a deterioração das relações sociais resulta da dívida social acumulada na história de descaso da elite que prefere manter seus privilégios, exibir suas jóias e seus carros importados, numa sociedade altamente estratificada, caminhando em direção a uma economia capitalista ainda mais selvagem, travestida de neoliberal, que eleva ao limite máximo a desigualdade social.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

O crescimento do Rio de Janeiro

No esboço da história do Rio, desde sua fundação no século XVI, vislumbramos as transformações pelas quais a cidade passou. Primeiro, tornou-se o centro administrativo da colônia portuguesa em 1763.
A chegada da família real em 1808 acelerou seu processo de transformação política e administrativa. O Rio conquistou significativo progresso urbano: multiplicou suas repartições públicas, enriqueceu e se desenvolveu culturalmente.
Em meados do século XIX, o número de pobres livres que vivia na cidade se multiplicara significativamente. Essa população, numerosa e empobrecida, aos poucos se tornara um desafio para a elite política que precisava tratar as conseqüências trazidas pelo crescimento desordenado do Rio.
Aqueles que dispunham de recursos financeiros desejavam usá-los como bem entendessem. Não queriam um estado absolutista que limitasse suas oportunidades, mas também ansiavam por um espaço social em que não se sentissem molestados ou ameaçados.
Motivos esses que levaram à criação de uma forma de governo liberal, voltado para proteger essa classe favorecida, que manteve as rédeas do controle sobre os pobres livres através do clientelismo e da exclusão.
Numa economia em que o grosso da produção era feito pelo trabalho escravo, os pobres livres, na maioria desqualificados, quando não analfabetos, podiam colocar à disposição seus serviços, comercializar pequenas mercadorias nas ruas, vender artefatos produzidos em pequenas oficinas domésticas, ou, mendigavam, roubavam e passavam fome.
Na forma como se organizara o ambiente urbano, uma grande maioria tinha pouco ou nada a perder. Restava a possibilidade de lutar por reconhecimento, por apadrinhamento, ou, sucumbir à exclusão e à privação.
Esse estado liberal não se preocupou, a exemplo do liberalismo europeu, em ordenar um sistema que pudesse respaldar direitos sociais a essa maioria que vivia à margem da vida civil.
Como Distrito Federal, a partir da proclamação da República em 1889, o orçamento da cidade passou a estar vinculado aos recursos da União. Isto permitiu ao Rio experimentar diversas reformas urbanísticas modernizadoras.
O Rio cresceu como uma cidade de serviços, abrigando órgãos estatais, o centro financeiro e comercial, concentrando o principal pólo de lazer e cultura do país.
Concentrou a maior parte do capital interno e mantinha um porto super movimentado. Por suas ruas transitavam autoridades, figuras de projeção nacional, além de personalidades estrangeiras.
O constante crescimento demográfico do Rio sempre exigiu alternativas para seu desenvolvimento. Como expandir uma cidade cujo espaço era limitado pelas montanhas, pelo mar e pelos mangues?
Uma vez estrangulado o espaço urbano do centro, os ricos buscaram refúgio em locais mais distantes, como o Rio Comprido, a Tijuca e Botafogo, deixando suas antigas moradias no centro da cidade, logo transformadas em cortiços ocupados pela população pobre de migrantes e imigrantes que se instalaram na cidade em busca de novas oportunidades.
Essa população, deixada ao léu, aprendeu a se virar através de mecanismos de resistência que eram a sua forma de sobreviver e viver.
A repressão do estado se voltava contra os pobres de modo ostensivo e preventivo. A coerção física vigorava como técnica para manter o comportamento da massa dentro de certos limites aceitáveis.
Mesmo quando o açoite não era mais tolerado, a polícia manteve a tradição de espancar o indivíduo no ato de aprisionamento, como uma tarefa natural de seu papel disciplinador da plebe.
Atos brutais e grotescos cometidos pela polícia de hoje são resíduos dessa ação repressora que atravessou as gerações, o tempo e as transformações, sobrevivendo de modo germinal nas relações antagônicas entre a polícia e o povo.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

A Polícia Civil

A Polícia Civil, nos moldes que conhecemos hoje, se desenvolveu a partir da tradição herdada da secretaria de polícia, a qual teve origem com a substituição dos juízes de paz por funcionários, que foram nomeados para compor o quadro funcional da secretaria de polícia.
Segundo os ditames da tradição, a polícia acumulava as funções do agente acusador, investigador, oficial de prisão, promotor, juiz, jurado e carcereiro. Condensava todo o sistema policial e judicial numa aplicação sumária.
O sistema judicial era portanto confuso, pois havia a sobreposição do poder de prender com o poder de julgar, quando o correto seria que a ação do tribunal fosse acionada tão logo tivesse sido encerrada a ação policial.
A reforma que se iniciou em 1871 alterou o código de processo criminal e ampliou o sistema judicial, para que este assumisse as funções de julgamento que até então eram desempenhadas pela polícia. A partir desta data, a Polícia Civil perdeu o poder de julgar e sentenciar os indivíduos por infrações menores.
A partir de 1920, a carreira policial tomou corpo e popularidade. A indicação para chefiar a polícia no Rio era considerada um passo importante da carreira judiciária. O chefe de polícia era nomeado pelo Presidente da República, por indicação do Ministro da Justiça.
Tal era o poder nas mãos do chefe de polícia, que a ele competia empregar a força da polícia militar, da guarda civil, dos agentes de polícia; promover, transferir, demitir ou conceder licenças; premiar em dinheiro o pessoal da polícia ou pessoa que o auxiliasse.
Foi também na década de 1920, quando se reativou a repressão política, que os investigadores começaram a ser valorizados dentro dos quadros da polícia.
A polícia de investigação, formada por policiais à paisana, existia desde 1892. E tal como sucedeu com a polícia civil, esperava-se construir uma nova imagem para os detetives, conhecidos pelo emprego da força bruta e maus modos.
O trabalho mais civilizado da guarda civil passou a atrair número crescente de jovens. Porém, impedimentos de ordem orçamentária pôs a perder essa polícia civil refinada do início do século XX, que teve seu pequeno contingente cada vez mais restrito.
Mas o maior golpe que a polícia civil sofreu foi desfechado quando um oficial da polícia militar fora nomeado para inspecioná-la, e cuja missão era adequar a guarda ao modelo hierárquico militar.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

A Polícia Militar

Sentia-se, desde 1831, que se tornava cada vez mais urgente criar uma corporação de polícia profissional e bem remunerada, a qual fosse possível impor critérios rigorosos de seleção para a escolha de seus integrantes.
Uma corporação assim idealizada foi instituída com o nome de Corpo de Guardas Municipais Permanentes, que em 1866 passou a chamar-se Corpo Militar de Polícia da Corte e, finalmente em 1920, o nome da corporação foi simplificado para Polícia Militar.
A polícia militar ficou subordinada ao Ministro da Justiça. E embora tenha preservado a estrutura hierárquica das demais corporações militares, essa polícia distinguia-se das demais porque os praças eram voluntários e melhor remunerados que os soldados.
Para se ter uma idéia, eles ganhavam o equivalente ao que recebiam artesãos e balconistas. Mas mesmo sendo mais bem remunerada do que as anteriores, essa corporação seduzia apenas pessoas das camadas mais pobres da população.
A polícia militar proporcionou melhorias nas condições de trabalho dos praças. A disciplina, até então garantida à custa de castigos corporais, passou a ser imposta por meios mais sutis de controle.
O uso do açoite, por exemplo, deixou de figurar como técnica de punição. Essa reforma disciplinar fez da polícia uma corporação exemplar, contrastando com o exército e a marinha, que somente muito mais tarde abandonaram o uso do açoite na contenção dos soldados.
A polícia militar tornou-se o principal instrumento de força usado pelo estado no controle da ordem social. Contudo, seu efetivo logo se mostrou em número insuficiente para a sobrecarga de tarefas sobre seu encargo.
Cabia-lhe atender aos chamados sempre que se fazia necessário uma ação armada. Além disso, como função preventiva, era seu dever patrulhar as ruas para manter uma presença repressiva constante.
O confronto hostil entre seus membros e a população sempre se fez presente. Era difícil determinar o nível de violência aceitável que o praça deveria usar na ação coercitiva que exercia nas ruas.
O compromisso moral da corporação se respaldava na capacidade para manter a integridade do cumprimento do dever. Mas, desde sempre, a polícia militar enfrentou o problema crucial do suborno que ocorre na interação entre polícia e ladrão.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Do juiz de paz à secretaria de polícia

A figura do juiz de paz, leigo e eleito em cada distrito, foi prevista na Constituição de 1824. Representava uma ruptura com a autoridade judicial do rei.
O cargo de juiz de paz guardava características das funções policiais. Seu exercício envolvia a vigilância da jurisdição, a reunião de provas, prisão e julgamento dos infratores.
O juiz de paz garantia, na visão de seus defensores, a reordenação das relações entre a população e a autoridade do estado. Seu poder era reforçado por disposições que lhe davam autoridade sobre os crimes contra a ordem pública. Ele podia designar um delegado e até alguns guardas civis para formar o quadro de uma protopolícia.
Ao governo era resguardado o direito de suspender qualquer juiz de paz por mau procedimento ou negligência, e todo juiz que não procedesse com a necessária diligência no julgamento dos crimes contra a ordem pública poderia ser considerado cúmplice.
A reforma judicial de 1841 promoveu a substituição dos juízes de paz por funcionários nomeados que passaram a compor o quadro funcional da secretaria de polícia.
Esses funcionários herdaram dos juízes de paz a autoridade para julgar e sentenciar as pequenas infrações nos distritos, conduzindo os infratores das ruas para a prisão sem a intervenção direta da justiça criminal, tornando desnecessária a ação de advogados, promotores e autoridades judiciais superiores.
Assim, o efeito mais importante e desastroso dessa reforma foi estender poderes judiciais à polícia, condensando todo o sistema policial e judicial numa aplicação sumária.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Surge o código criminal

Uma das críticas que os reformadores liberais faziam ao sistema legal era a sua arbitrariedade. A acusação do crime e a sentença ficavam à mercê do magistrado.
Quando o juiz era o intendente de polícia, por exemplo, o caso era decidido pela mesma autoridade sob a qual fora efetuada a prisão. Não havia presença pública neutra no processo judicial. Na instância inferior, em crimes menores, não havia sequer o registro do caso.
Essa situação levou os reformadores a propor um código que definisse a atividade criminal e prescrevesse uma pena para cada tipo de delito. Achavam também que um código separado do processo criminal deveria especificar como a pessoa acusada de um crime seria tratada depois da prisão.
Em dezembro de 1830, antes de Dom Pedro I abandonar o trono, o Parlamento aprovou um código criminal que especificava os princípios estabelecidos pela Constituição de 1824. Esse código foi a base legal da ação policial, até ser atualizado e substituído em 1890 pelo código penal da República.
O código criminal estabeleceu o modelo e a estrutura em que se desenvolveram as normas e os métodos policiais nas instâncias inferiores.
Da criação da Intendência Geral da Polícia em 1808 à promulgação do código criminal em 1830, o Brasil percorreu um longo caminho rumo a sua autonomia.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Capitão-do-mato

Os capitães-do-mato foram extintos do Rio de Janeiro na década de 1820. Eles eram caçadores de recompensas que faziam parte do sistema de controle de escravos no Brasil desde o século XVII.
Em muitos lugares eles se tornaram uma protopolícia, com ajudantes armados que tinham permissão dos governos locais para caçar escravos fugitivos.
Os senhores de escravos desejavam reduzir ao mínimo as fugas, mas tinham de equilibrar os ônus das freqüentes prisões ou da vigilância armada de seus trabalhadores com as taxas pagas ao capitão-do-mato.
Quando o intendente assumiu seu cargo, após a chegada da família real ao Brasil, recebeu uma série de relatórios sobre as atividades dos capitães-do-mato, nos quais eles eram acusados de seqüestrar escravos para fins de extorsão ou venda ilegal.
Desde então os capitães-do-mato começaram a ser vistos como supérfluos. E as instituições policiais passaram a assumir a tarefa de apreensão dos escravos fugitivos. Até que esta acabou se tornando a principal atividade policial.
As recompensas pela captura de escravos continuavam a ser oferecidas aos soldados de polícia. A Guarda Real estava sempre disponível para qualquer convocação, e a disciplina militar exigia que seus membros saíssem ao encalço dos fugitivos se assim lhes ordenassem.
Mas o problema das exigências ilegais e excessivas que os caçadores de escravos impunham aos senhores não ficou resolvido com a substituição dos agentes privados pela polícia.
Os soldados da Guarda Real também se tornaram corruptos, cometiam abusos de autoridade e se envolviam em práticas de extorsão.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Lei igual para todos

A polícia do início do século XIX reduzira sua agressividade no trato com os escravos e os pobres livres. Apesar de o açoite ainda ser praticado nessa época, a polícia buscava refinar e padronizar seus procedimentos, tornando-os instrumentos de repressão mais precisos e eficientes.
Disciplina militar, ordens permanentes e instruções específicas já faziam parte do conjunto de técnicas da atividade policial. Data também desse tempo, a exigência de que a polícia se submetesse à autoridade judicial civil por meio de mandados, audiências e ordens de tribunais.
Como incentivo à diligência policial, recompensas pela captura de ladrões e salteadores eram permitidas e mesmo incentivadas.
As patrulhas eram autorizadas a parar e revistar qualquer pessoa em busca de armas ou instrumentos ilegais, salvo pessoas notoriamente conhecidas e de probidade reconhecida.
A declaração de princípios da Constituição sobre direitos civis – a lei será igual para todos – nada tinha a ver com a vida do vale tudo das ruas. E o escravo se deparava com uma barreira especial porque ele era propriedade, e não cidadão.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Contradições da legalidade no estado moderno

Nas primeiras décadas de independência o Brasil iniciava sua tradição liberal. E, para romper com o passado colonial, sentia-se a necessidade de criar atributos básicos para o estado, tais como: legislação penal, instituições e procedimentos judiciais.
Os liberais, e mesmo os conservadores do período da independência, viam a polícia e os procedimentos judiciais existentes como relíquias antiquadas de uma era passada, como um legado da opressão colonial.
A polícia havia surgido no estado absolutista como um artefato administrativo natural, apartado da política partidária. Então, a partir desse momento de mudanças estruturais, passou a figurar como órgão público característico do estado moderno.
Vivia-se um dilema que refletia as contradições da ideologia liberal. Os líderes políticos desejavam livrar-se da tutela colonial e do absolutismo monárquico, mas reconheciam que rupturas na forma de dominação em que se baseava a sociedade poderiam trazer transtornos para seu próprio status.
Muitas vezes a polícia praticava atos para os quais não havia base legal, como a repressão à capoeira, por exemplo. E o mesmo aparato político, judicial e policial que prendia e punia fisicamente os capoeiras, favorecia a violação da lei que proibia o tráfico dos escravos. Esses fatos ilustram o enraizamento da ilegalidade consentida na cultura brasileira.
O que se poderia esperar senão o distanciamento que a população pobre se reservava em relação às normas que a elite desejava impor?
Em maio de 1821, logo após assumir a regência, dom Pedro deu o primeiro passo para regulamentar as práticas policiais e judiciais.
Ele decretou que ninguém poderia ser preso a não ser por mandado judicial ou em flagrante, que as acusações formais contra o detento deveriam ser feitas no prazo de 48 horas após a prisão, que ninguém seria encarcerado sem que fosse condenado em tribunal aberto, que não usariam grilhões nem correntes e que a tortura deixaria de ser usada como punição.
Mas duas semanas depois, ele votou atrás em sua decisão ao decretar uma lista de salvaguardas semelhantes às da Constituição liberal portuguesa.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

A organização da polícia

No Brasil colônia não havia a estrutura de uma polícia profissional e uniformizada, separada do sistema judicial e das unidades militares. Mas a polícia se organizou desde o início como instituição militar.
Havia também guardas civis desarmados e quadrilheiros que exerciam uma vigilância rudimentar. Os guardas civis eram contratados pelo conselho municipal da cidade para fazer a ronda e vigiar atividades suspeitas, enquanto os quadrilheiros eram designados pelos juízes e tinham a função de inspecionar os bairros.
Os guardas não tinham autoridade para agir por conta própria, e eram instruídos a prender os transgressores em flagrante. A autoridade permanecia com os que ocupavam postos mais altos no sistema: os representantes administrativos, militares e judiciais.
Em circunstâncias de perturbação civil, quando se demandava força armada para controlar a multidão, o juiz ou outro funcionário podia convocar tropas do exército da guarnição local, unidades de milícias ou reservas que eram chamados de ordenanças.
O exército contava com uma estrutura profissional e corporativa, já no século XVIII. As milícias eram constituídas por moradores do local que vestiam uniformes quando em serviço, portavam armas e recebiam treinamento dos oficiais regulares do exército. Mas eles só eram convocados nas emergências.
As ordenanças eram constituídas por outros membros da comunidade livre, que se apresentavam fisicamente aptos e eram do sexo masculino. Estes tinham que conseguir uniformes e armas por conta própria. Pouco se fazia para treiná-los.
As milícias e, sobretudo as ordenanças, não eram consideradas forças de combate, mas a maioria desses cidadãos voluntários se identificava com o regime e com as forças da ordem.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

A origem social dos praças

O colonizador português trouxe para o Brasil a ideologia e o exercício da inquisição. Implantou aqui sua tradição, e assim influenciou o desabrochar social do Brasil, que permaneceu calcado na experiência da tortura e da confissão, garantidas estas pela organização de uma nação formada desde sua origem por senhores e escravos.
À sombra desses lugares sociais claramente delimitados, cresceu outra categoria social que nos primórdios do século XIX emparelhava-se em número à população escrava urbana. Os historiadores denominam-na de pobres livres, ou classe baixa não-escrava.
Eram os pobres sem patrão, que podiam ser divididos em grupos mais ou menos específicos, dentre os quais destacamos os praças do sistema policial.
A diversidade étnica dessa camada de pobres livres era grande e complexa. Era formada por índios, negros, mulatos e imigrantes. Vindos de culturas tão diversas, o que essa população tinha em comum era a pobreza e a falta de poder. Suas vidas eram pautadas por códigos de condutas diferentes e contraditórios.
Os praças saíam dessa classe baixa livre que era também alvo de repressão policial. E, sob as orientações dos administradores civis e juízes, eles dispunham de ampla liberdade ao executar suas missões. Seus métodos espelhavam a brutalidade da vida nas ruas e da sociedade escravocrata.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Os códigos do período colonial

As instituições do período colonial foram estabelecidas sob o Código Afonsino de meados do século XV, o Código Manuelino do início do século XVI e o Código Filipino do início do século XVII.
Através desses códigos tentava-se ordenar, na península ibérica, as leis, os decretos e as práticas consuetudinárias seculares que se acumulavam desde a antiga Roma, dos reinos visigóticos (que se seguiram ao domínio romano) e das práticas judiciais inquisitórias.

Portugal estabeleceu em suas colônias um elaborado sistema judicial que era essencial para a manutenção do império, e os juízes estavam entre os principais representantes da autoridade monárquica.
A lei penal era regida pelo livro V do Código Filipino, que respaldava os mecanismos do absolutismo. Apenas agentes da coroa, e não particulares, podiam iniciar o processo.
Somente juízes reais podiam reunir e avaliar provas, decidindo quais eram relevantes e quais deviam ser excluídas. E a tortura judicial era utilizada como um instrumento importante para extrair confissões.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Os senhores do engenho

Apesar das mudanças ocorridas na sociedade brasileira desde a abolição da escravatura, carregamos ainda hoje o peso de nossa origem histórica: de ter sido uma colônia que desenvolveu a vocação para o trabalho agrícola como forma de servir à coroa portuguesa.
Em Casa grande e senzala, Gilberto Freire retrata a família rural como a principal unidade produtiva e de controle com que contou o colonizador.
Numa época em que eram trazidas nações africanas praticamente inteiras para o Brasil, o senhor do engenho, um patriarca com poderes feudais, foi quem sustentou e aqueceu esse comércio indecoroso, mantendo sobre férreo controle seu direito de propriedade sobre os negros feitos escravos.
Funcionando muito além do papel de produtor em franca expansão, o senhor do engenho pôde impor e disseminar a visão do colonizador.
Os senhores do engenho formaram o núcleo da elite política. E contra essa autoridade privada, a impessoalidade do estado era praticamente nula, tanto quanto inócuo era o poder da igreja.
Porque na verdade, o aparato do estado, a igreja e a aristocracia rural eram aliados. Formavam a elite que contava como importante para as decisões sobre os rumos que seriam tomados.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

A Guarda Real

Quando a comitiva real portuguesa chegou ao Rio de Janeiro, em 1808, encontrou uma cidade cujo espaço público era conturbado, sujo, hostil e com um constante fluxo de pessoas. Deparou-se com uma população empobrecida que contava com enorme quantidade de escravos africanos.
O governo real logo assumiu o desafio de manter sob controle essa população, com um aparato repressor cuja máquina já havia sido criada em Lisboa: a Intendência Geral da Polícia.
O corpo policial militarizado dessa Intendência – a Guarda Real da Polícia – com ampla autoridade para manter a ordem, serviu de modelo às demais instituições policiais da cidade.
A intendência se baseava no modelo francês introduzido em Portugal em 1760. Era o protótipo para uma ação policial autoritária.
O intendente ocupava cargo de desembargador e era considerado ministro de estado. Seu poder era enorme: decidia sobre os comportamentos criminosos, estabelecia a punição que julgasse apropriada, prendia, levava a julgamento, condenava e supervisionava a sentença dos encarcerados.
Ele representava a autoridade do rei, cujo cargo englobava poderes absolutistas: legislativos, executivos e judiciais.
O mesmo decreto real que criou a intendência delegou também poderes de autoridade judicial sobre delitos menores à polícia.
O gabinete do intendente e a Guarda Real eram pagos com o dinheiro arrecadado dos impostos sobre serviços e eventos públicos. A autoridade emanava do rei, mas os recursos para a polícia provinham de taxas, empréstimos privados e subvenções dos comerciantes locais e proprietários de terras. Essa situação refletia as ambigüidades políticas daqueles tempos.
A missão da Guarda Real era manter a tranqüilidade pública entre outras obrigações relativas à ordem civil. A guarda se espraiava por diversos locais, principalmente na área do centro da cidade.
Seus membros se vestiam como soldados, com jaquetas azuis e cartucheiras de couro a tiracolo. Lembrava a guarda republicana francesa.
Para ajudar o trabalho de controle que cabia ao intendente, a cidade foi dividida em dois distritos judiciais, com dois juízes do crime, um para cada distrito. Esses juízes se subordinavam ao intendente e desempenhavam em seus respectivos distritos a mesma combinação das funções judicial e policial. O que nos leva a entender que a mistura dessas funções - judicial e policial - data da fundação da polícia no Brasil.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Pulsão e Acaso

O lugar ocupado pela pulsão está além dos domínios do princípio de prazer, do princípio de realidade, da ordem, da lei, da representação, da rede de significantes, da linguagem, do inconsciente...
A ordem, essa conhecida potencialidade humana para estruturar sob uma dada forma a experiência, não pode abarcar a totalidade da existência psíquica.
A racionalidade, nosso peculiar instrumento de apreensão do mundo, não deixa de ser um levante, nossa arma e nossa defesa, contra um fundo de acaso que nos escapa, nos aflige, nos assombra, aonde pulsa e reina soberana a vida.
(...) o que influi em nossa vida é sempre o acaso, desde nossa gênese a partir do encontro de um espermatozóide com um óvulo – acaso que, no entanto, participa das leis e necessidades da natureza, faltando-lhe apenas qualquer ligação com nossos desejos e ilusões (Freud, 1910, Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância).
A pulsão, como pura potência indeterminada, situa-se no extra-psíquico. Ela ocupa o inapreensível lugar do acaso.
Nas próximas postagens falarei sobre a polícia do Rio de Janeiro: sua história e impasses vividos na atualidade. Frutos de um trabalho que desenvolvi nos anos noventa.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Pulsão de morte

A formulação sobre a pulsão de morte tem origem no exame que Freud realiza sobre o par de pulsões componentes sado-masoquismo, tal como ele o enuncia no capítulo VI do texto Além do princípio de prazer, ao discutir sobre a existência do sadismo e do masoquismo primários.
Em O ego e o id, Freud apresenta a hipótese da pulsão de morte como responsável por conduzir a vida ao estado inanimado, e interroga neste momento o funcionamento dualístico que envolve a fusão e desfusão das pulsões, processo sobre o qual falará em O problema econômico do masoquismo.
Para Freud as pulsões de vida e de morte – Eros e Thânatos – estão sempre misturadas; seguem o curso de seu circuito fusionadas, amalgamadas uma a outra, em proporções variáveis. Jamais se pode pensar em pulsões puras seja de vida ou de morte. Mas, sob o efeito de determinadas influências, pode ocorrer a desfusão delas. E é justamente nesse momento, sob o efeito dessa desfusão, que episódios patológicos inesperados podem ocorrer.
A concepção freudiana sobre as pulsões adquire novo registro em O mal-estar na cultura, texto em que Freud apresenta o amadurecimento de suas idéias sobre a autonomia destrutiva da pulsão de morte, agora não mais entendida como originada da sexualidade. Ele nos diz:
“(...) Sei que no sadismo e no masoquismo sempre vimos diante de nós manifestações da pulsão destrutiva (dirigidas para fora e para dentro), fortemente mescladas de erotismo, mas não posso mais entender como foi que pudemos ter desprezado a ubiqüidade da agressividade e da destrutividade não eróticas e falhado em conceder-lhe o devido lugar em nossa interpretação da vida (...) adoto, portanto, o ponto de vista de que a inclinação para a agressão constitui, no homem, uma disposição pulsional original e auto-subsistente (...)”
Como vontade de destruição, a pulsão de morte incita a disjunção das unidades, pois que encarna o desejo de Outra-coisa. Explicitada por Lacan, a irrupção da pulsão de morte nos leva à ruptura de certa continuidade. Ela coloca em causa tudo o que existe. E, como tal, também expressa a vontade de criação a partir do nada. A vontade de recomeçar.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Sadismo / masoquismo

O sadismo se relaciona ao desejo de infligir dor, de subjugar; implica no exercício da violência para vencer a resistência do objeto. Em contrapartida, o masoquismo diz respeito à atividade passiva da pulsão em relação à vida sexual e ao objeto sexual.
O mecanismo presente nesse par antitético percorre os seguintes movimentos: há um primeiro momento de exercício de poder sobre outrem, forma ativa do movimento; ao qual se segue um segundo momento de abandono desse objeto acompanhado de um retorno da libido para o próprio eu (forma passiva); e um terceito momento em que uma outra pessoa é introduzida nesse circuito para exercer o papel ativo de agente da violência. Eis aqui a descrição sobre a transformação da pulsão sádica em masoquista.
Acerca da excitação sexual presente na dor, Freud nos diz em As pulsões e seus destinos:
“(...) temos todos os motivos para aceitar que as sensações de dor, assim como outras sensações desagradáveis, beiram a excitação sexual e produzem uma condição agradável, em nome da qual o sujeito, inclusive, experimentará de boa vontade o desprazer da dor. Uma vez que sentir dor se transforme numa finalidade masoquista, a finalidade sádica de causar dor também pode surgir, retrogressivamente, pois, enquanto essas dores estão sendo infligidas a outras pessoas, são fruídas masoquisticamente pelo sujeito através da identificação dele com o objeto sofredor(...)

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Olhar / ser olhado

A excitação libidinal freqüentemente é despertada pela visão. Excitação cuja finalidade é olhar e ser olhado. O prazer de olhar, chamado escopofilia, tem como par antitético o prazer de ser olhado, que se expressa como prazer de exibir-se para outrem.
Este par antitético, de duas pulsões componentes, nos ajuda a compreender o processo de retorno da pulsão em direção ao eu, constituindo a mudança de seu objeto, mas deixando inalterado o seu objetivo, que consiste em obter satisfação através do olhar.
No prazer de olhar, o objeto é o outro, ao passo que no prazer de ser olhado, o sujeito, ele mesmo, se elege como objeto diante do outro.
Como se dá esse retorno da pulsão? No primeiro momento, o olhar é uma atividade, cuja força ativa se volta para um objeto, um outro sujeito. Esse momento é seguido de um segundo movimento de abandono desse objeto e de retorno do olhar para o próprio corpo, forma passiva que assume olhar, que em seguida finaliza seu movimento, com a introdução de outra pessoa para quem o indivíduo se exibe.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

A força pulsional – Drang

A força pulsional adquire múltiplas formas e por isso deve ser compreendida por sua característica plural, que pressupõe uma permanente dualidade antitética entre pares pulsionais.
Essa idéia de oposição entre pares, marca fundamental do pensamento freudiano, remete-nos ao processo em que uma pulsão se reverte em seu oposto. Processo que implica a passagem da atividade para a passividade e vice versa.
Mas não se pode esquecer que toda pulsão por princípio é ativa, pois que a essência do significado do termo se encontra na força ativa – drang – que em si caracteriza a dinâmica pulsional.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Pulsão

O termo pulsão designa, genericamente, o ato de impulsionar. A psicanálise o emprega para definir a carga energética que se encontra tanto na origem do movimento motor quanto do funcionamento psíquico. Por isto diz-se que a pulsão se encontra no limiar entre o somático e o psíquico.
Freud começou a empregar o termo em 1905 nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Texto que gira em torno do tema da pulsão sexual e os caminhos que ela percorre na busca de satisfação.
A pulsão age como uma força [drang] constante que emana de uma fonte somática [quelle] sediada num órgão ou parte do corpo.
O estímulo pulsional se faz representar no inconsciente por uma idéia [vorstellung], ou por um afeto [affekt]. O termo vorstellung implica a idéia de que uma representação foi inscrita no sistema mnêmico, ao passo que affekt se refere ao registro psíquico que expressa de modo qualitativo a quantidade de energia pulsional.
A pulsão é da ordem da necessidade. Como um motor, ela imprime um quantum de força pressionando no sentido da sua finalidade, de seu objetivo, que é a sua satisfação, definida esta como a redução da tensão provocada pela drang.
Lacan nos lembra o caráter parcial da pulsão e de sua satisfação. Seu alvo consiste num retorno em circuito. A tensão é um fecho que circunda a zona erógena.
É mediada por um objeto que a pulsão atinge sua finalidade. Esse objeto de caráter transitório e variável pode ou não ser estranho ao próprio corpo. O objeto pulsional e a satisfação, ambos, são provisórios, pois que a satisfação nunca se completa, assim como o objeto queda sempre inadequado para atingir a plena satisfação.
O objeto de que se trata aqui é nada mais que um cavo, um vazio, em se coloca não importa que objeto, cuja natureza nós só podemos conhecer sob a forma de objeto perdido.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Amor e autoridade

Na primeira parte dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud aborda a supervalorização do objeto sexual. Apreciação que se estende por todo o corpo e atributos psicológicos. Enfim, a tudo que se associe a esse objeto amado.
A supervalorização, típica do envolvimento amoroso, contém certo grau de fetichismo. Na constituição dessa percepção parcial, entorpecida de apreciação, sobressaem os elementos reveladores das perfeições do ser amado, terreno preparado para frutificar a experiência da mais plena submissão.
A credulidade de amor é uma das mais importantes fontes de autoridade.
No que consiste a essência da fixação que preserva a fiel submissão de alguém a outrem?
Freud empregou a hipnose nos primórdios de seu interesse pela histeria, e foi o primeiro a examinar e problematizar a relação de submissão que se estabelece entre o hipnotizado e o hipnotizador.
A atmosfera monótona e mecânica que prevalece como condição do transe hipnótico evoca a magia. Durante o transe o paciente se prontifica a mais incondicional entrega à passividade e absoluta obediência ao hipnotizador. Por isto nos interrogamos sobre a natureza misteriosa da autoridade sugestiva.
A constatação a que chegamos é que só há um tipo de hipnose: aquela que coloca em suspenso as faculdades propriamente humanas, e abre caminho para aflorar a animalidade no homem.
Nas próximas postagens abordarei alguns aspectos contidos no conceito de pulsão.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

Grupo primário

Existem certos grupos, chamados primários, que apresentam uma constituição libidinal, cuja tipicidade permite agregar indivíduos que compartilham entre si um mesmo objeto eleito por eles para se pôr no lugar do ideal do eu, e em virtude desse objetivo comum, identificam-se uns com os outros em seu eu.
Esses grupos amenizam carências e fragilidades de seus membros, produzindo fortes elos emocionais entre eles.
Como os indivíduos predispostos a esse tipo de formação ideativa não desenvolvem estilos autônomos de individualidade, ao contrário, apóiam-se anonimamente no grupo, deixam-se influenciar por sugestão e, assim garantidos, acreditam poder exceder todos os limites na possibilidade ilimitada de descarga emocional sob a forma de ação.
Freud aproxima os atributos do narcisismo primário presente na infância, do narcisismo existente na vida emocional desses grupos. Daí porque os denominados, primários.
O grupo primário propicia e sustenta a onipotência de pensamento de seus integrantes, em cuja lógica se acomoda a superestima do poder de seus desejos, e a crença mágica que sustenta uma forma característica de lidar com o mundo - como uma aplicação das premissas grandiosas que alimentam.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

A escolha amorosa

Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud descreve uma fase inicial de intenso interesse por parte da criança fixado na mãe. A esse momento sobrepõe-se outro, de identificação com essa mulher.
Identificação direta e imediata que antecede o investimento objetal. Em outras palavras, a fixação e a subseqüente identificação com a mãe consistem numa forma de escolha amorosa preliminar que já se revela plena de ambivalência.
O eu deseja incorporar a si esse objeto amado com a força característica da fase oral em que se acha, ou seja, ele deseja devorar esse objeto.
Este solo narcísico, em que a criança faz-se de objeto sexual dela mesma, incita a posterior busca de alguém com aparência ou traço semelhante, a quem possa amar como fora outrora amada pela mãe.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Narcisismo

Entende-se por narcisismo a atitude de alguém que admira seu corpo como se admirasse um objeto sexual. A ocorrência de tal atitude se deve ao retorno da libido para o eu.
O narcisista não tem muita necessidade de um objeto seja para se satisfazer sexualmente seja para realizar aspirações intelectuais.
Ao introduzir o conceito de narcisismo em 1914, Freud demonstra que os impulsos libidinais conflituam com os ideais éticos e morais da sociedade. Estes ideais funcionam como barreiras ao fluxo pulsional.
Ao longo do processo de socialização, o indivíduo elege certos padrões culturais e os reconhece como seus. Submete-se a eles e passa a medir a si mesmo de acordo com essas exigências que são agora percebidas como suas.
Este processo é o que chamamos de formação ideativa e configura o ideal do eu, que desfruta o amor de si mesmo, antes dedicado ao eu real. O ideal que o sujeito projeta diante de si é o substituto do narcisismo perdido de sua tenra infância, quando ele era o seu próprio ideal.
A origem dessa instância crítica, que funciona como vigia do eu, se encontra na influência exercida inicialmente pelos pais, a qual se soma toda sorte de influência que o ambiente exerce sobre o sujeito.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

O transgressor e sua busca de objeto

O principal objetivo deste estudo, realizado nos anos 90, é contribuir para ampliar o horizonte de reflexão de profissionais que trabalham em instituições voltadas para o atendimento e custódia de jovens comprometidos com a justiça.
O grupo de adolescentes que compôs o campo de investigação nos foi encaminhado pelo setor pedagógico de três escolas que respondem pela custódia judicial de jovens no Rio de Janeiro.
Estes adolescentes correspondem a um percentual pequeno, quando confrontado com a população total que passa pela justiça, mas remetem-nos a histórias de retorno constante ao circuito judicial. Conhecemos rapazes ainda muito novos, na faixa de quatorze a dezesseis anos, atores de uma vida que envolvia grandes perigos. Como nos confirma a própria fala de um deles:
“Às vezes eu passava de carro, com a AR-15 e tirava a maior onda com a cara deles. Saltava do carro e dava uma rajada. O engarrafamento desaparecia. Abria espaço para eu passar. A AR-15 é sinal de poder, não é pra quem quer, é pra quem pode”.
O transgressor parecia se esmerar para estreitar seus caminhos de modo a restar apenas um tênue fio entre a vida e a morte. O uso de armas de fogo pesadas, às vezes duas ou mais, fazia-nos refletir sobre a fragilidade do eu que presidia essa ação de defesa/ataque. A suspensão da Lei garantia a licenciosidade para o agir narcísico, irrefletido, incontido.
”Não gosto muito de ficar na boca sem fazer nada, dá maresia. Não tem nada pra fazer. Eu prefiro assaltar, agir, fazer assaltos em firmas e mansões”.
(...) é nessa provocação incessante da lei que ele se assegura – até mesmo se ressegura – de que a lei realmente existe, que pode encontrá-la e procurar nela experimentar a economia de seu gozo. É neste sentido que a transgressão é o correlato inevitável do desafio (...) (Joel Dor, 1991:129).
Como costuma agir o transgressor protagonista de nossas entrevistas? Que palavras os adolescentes diziam se utilizar durante as ações praticadas?
“Já perdeu. Pode ficando quieto e passar tudo senão morre”.
Trata-se aqui do estabelecimento de um jogo em que forças são medidas, de um desafio lançado ao acaso. Mas ao mesmo tempo configura duelo onde apenas um havia se preparado para o momento de ataque.
A regra desse jogo é desarmar alguém que já se supunha desarmado. Claro que existe sempre a possibilidade, o risco de tudo perder. Mas é exatamente este fator que nivela a ação no patamar dos rituais de sacrifício.
As únicas coisas temíveis são a polícia e a morte. Possibilidades que se vislumbram na linha do provável, do acaso, do real.
O transgressor acessa o objeto pela violação. O preço do objeto não é calculado conforme as leis do mercado ou da troca. Este é determinado pelas condições em jogo na sua aquisição.
O que o transgressor busca através de sua ação não é apenas o cometimento de uma infração. A sua conduta simboliza uma falta, trata-se de uma ação simbólica. Porque é a falta do objeto que conta.
Afinal, o que pode acontecer no momento da ação?
“Matar ou morrer. As chances são iguais.”
“Tenho medo de ser pego pela polícia. Ela não quer nem saber, se pega a gente de madrugada mata mesmo.”
Lances de um jogo que se passa na indefinível fronteira do real e do virtual: tudo ou nada pode acontecer. No interior desse extremado realismo reside a ficção de se postar diante do limite último, para dribá-lo no mais absoluto dos desafios. A palavra-chave é quieto, ou seja, não se mova.
Palavra de comando sobre outro feito escravo que em princípio não se deseja morto, mas testemunha muda do desafio que simboliza a metrificação do falo. Por isto diz-se de ação, que ela adquire o estatuto de simbólica. Simboliza alguma coisa ausente-presente naquele instante que a dramatização encobre.
Tal como acontece com o fetichista, a situação se torna cenário-tela do momento preciso em que se pode supor que a mãe possua o falo. O efeito véu que a ação encerra, congela, por segundos, o instante real. Na ação rápida – mágica – a mãe é ficcionada total.
Para além da ação existe a suposição de deter o objeto absoluto que encobre momentaneamente a falta, a angústia que acompanha o horror da castração. O objeto desejado em relação ao outro não é tanto o que ele porta enquanto bens, mas muito mais o seu olhar surpreso-apavorado ante o horror da castração.
Olhar do outro que espelha o olhar de horror do próprio transgressor ante a castração. O gozo desse momento oportuno lança o outro num lugar impotente, desarmado.
A submissão vexatória do outro é apenas uma situação contingente: o que é desejado é o olhar desse outro que testemunha o gozo perfeito. Não é com isso que sonha o transgressor, o crime perfeito, aquele que não deixa vestígios, e, assim ideal, é capaz de arremessar seu autor no auge da glória?

Extraído do artigo O jovem transgressor: suas implicações na ação, de Maruza Bastos, in: Cadernos de Metodologia. Rio de Janeiro. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Centro de Teologia e Ciências Humanas. Departamento de Psicologia, v.4/5, 1997/98.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Je e moi

A língua francesa dispõe de duas expressões para designar o pronome da primeira pessoa do singuar: o Je e o moi. O emprego do Je serve para designar o sujeito como condição de possibilidade de uma ação, de um conhecimento ou de um discurso. Lacan chama o Je de sujeito verdadeiro ou sujeito do inconsciente, cuja essência revela o modo de ser da excentricidade; é o sujeito irrefletido: ex-sistant, ex-centrique. Em virtude de sua excentricidade, o Je convida ao desconhecimento.
Utiliza-se moi quando o sujeito se reporta a ele mesmo de maneira reflexiva. Lacan chama o moi de sujeito reflexivo, narcísico ou especular. Reportar-se a si, diz-se refletir. É o que faz Narciso no mito antigo. Ele contempla a água, e não conhecendo o efeito do espelho, tomba amorosamente sobre sua própria imagem. A palavra Nárkissos indica aproximação com; tendo como causa o efeito calmante da flor de narciso. Significa entorpecimento, embotamento.
Estas significações nos ajudam a entender os qualificativos lacanianos do moi, do eu narcísico, que contempla sua imagem especular ou que se identifica no meio dessa imagem. O outro que o moi apreende como ser independente, na verdade é imaginário: o outro dele mesmo. Lacan escreve com letra minúscula esse sujeito dentro do sujeito – a consciência em si.
A essência do moi é a reflexividade, ou seja, ele é para ele mesmo seu próprio objeto. Ele é para ele mesmo uma imagem, configurando, portanto, um objeto que preenche certa função do imaginário. O moi não é mais que um ponto de vista parcial, um erro do Je.
Para Lacan, o lugar verdadeiro do sujeito é onde menos o procuramos, no isso. No inconsciente, incognoscível e inacessível, isso fala.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Tensâo entre prazer e realidade

A relação do sujeito com o mundo é tecida conflitivamente nas malhas de um jogo dialético, no qual a organização autônoma do princípio de realidade, como tensão, põe-se a desafiar as formações irrealistas do princípio de prazer.
Em O mal-estar na cultura, Freud afirma que o programa do princípio de prazer - que domina o funcionamento psíquico desde o início – é que decide o propósito da vida. Mas quando uma situação desejada se prolonga por muito tempo, ela produz apenas um tênue sentimento de contentamento, porque derivamos prazer intenso, na verdade, das situações de contraste. E cita Goethe: nada é mais difícil de suportar que uma sucessão de dias belos.
Segundo Freud, o sofrimento nos é infligido a partir de três possibilidades: a primeira diz respeito à condenação a decadência e a morte a que está sujeito nosso corpo, a segunda tem haver com as fatalidades e as forças destrutivas existentes na natureza, e a terceira tem origem nos nossos relacionamentos com os outros homens. Esta é a possibilidade mais penosa de ser vivida. Sob a influência dessas três fontes de sofrimento, o homem modera suas reivindicações de felicidade: o princípio de prazer se transforma no princípio de realidade.
No texto Além do princípio de prazer, Freud diz que a regulação do princípio de prazer consiste na redução de tensão desagradável, levando à evitação de desprazer, ou, à produção de prazer. O desprazer implica o aumento de excitação, enquanto o prazer implica a diminuição da excitação.
O princípio de prazer é próprio do modo primário de funcionamento psíquico. Mas os dois princípios: de prazer e de realidade não são estanques um do outro. Eles se implicam e se incluem um ao outro numa relação dialética.
Como o princípio de realidade se constitui pelo que é imposto, para a sua satisfação, ao princípio de prazer, pode-se dizer que ele é o prolongamento deste. Contudo, precisa ter-se em mente uma ressalva: o princípio de realidade é tão importante para o programa do princípio de prazer que consiste mesmo em sua dinâmica, busca e tensão fundamentais. No entre desses dois princípios, localiza-se uma hiância que não se poderia distinguir caso um fosse apenas continuação do outro.

segunda-feira, 30 de junho de 2008

A repetição impossível

No texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud desperta nossa atenção para a ambivalência implicada nas relações fundamentais, donde a reciprocidade – o fato do outro fazer-se de objeto para o eu, e do eu fazer-se de objeto para o outro – é da ordem constitutiva.
Quanto à descoberta do objeto, Freud a relaciona à noção de realidade, uma vez que é fruto da fronteirização entre eu e não eu. Descoberta implicada em sua perda, dado que o reconhecimento do objeto e, portanto, da realidade, advém como conquista compensatória, efeito da elaboração da perda do objeto.
O objeto é apreendido na busca de um objeto perdido. Os encontros ulteriores com os objetos possíveis comportam em seu íntimo a aliança de um reencontro. Atualiza-se nesses encontros o ponto de ligação com as primeiras satisfações infantis.
Encontro que se firma no descompasso de um reencontro com esse objeto perdido na linha remota do tempo. Lacan qualifica essa relação como insígnia de uma repetição impossível. Em suas palavras:
(...) Uma nostalgia liga o sujeito ao objeto perdido, através da qual se exerce todo o esforço da busca. Ela marca a redescoberta do signo de uma repetição impossível, já que, precisamente este não é o mesmo objeto, não poderia sê-lo. A primazia dessa dialética coloca no centro da relação sujeito-objeto, uma tensão fundamental, que faz com que o que é procurado não seja procurado da mesma forma que o que será encontrado (Lacan, 1995, p. 13).

sexta-feira, 27 de junho de 2008

A paixão do significante

O simples fato de se dever falar deforma a intenção pré-lingüística. Em seu sentido imaginário, ou melhor, nos bastidores da expressão lingüística, o que se recebe é a própria mensagem, ditada pelo outro, sob uma forma invertida.
Esta inversão é o que faz do homem que fala, aquele através do qual isso fala. É essa torção da mensagem do sujeito que transmuda sua ação em sua paixão.
Especialmente após Lacan, essa paixão do significante se torna uma dimensão nova da condição humana. Foi ele quem melhor explicitou isto, que no homem e através dele, isso fala. A natureza do sujeito torna-se então tecida pelos efeitos onde se reencontra a estrutura da linguagem.
O sentido da cadeia significante não é determinado arbitrariamente pelo signo lingüístico nem pelos sentidos descritos nos dicionários, mas sim pela memória de todos os contextos incalculáveis que cada expressão percorreu na história de seus usos.
Como se comporta aqui a criança? Ela queria alguma coisa e lhe foi dado um símbolo, o qual representa uma coisa, mas efetivamente não é a coisa. O sujeito infans não atinge o objeto de sua necessidade tal como ele desejaria, mas pode aproximar-se, por rodeios, dessa coisa: o representante repele a coisa desejada, distancia-a. E nesse movimento, afasta igualmente o si do infans, que doravante não será mais o mesmo, mas sim, simbolicamente remetido a ele mesmo.
A reação a essa retirada fundamental do mundo e do si é o que Lacan chama de désir – o wunsch de Freud. Resposta do homem a sua inserção na ordem dos simples símbolos e dos representantes das realidades plenas. Reação a sua insatisfação constante e a sua infinita nostalgia.
A falta, o sentimento de não ter, inscreve-se então no desejo. Essa falta parece ser uma característica essencial da ordem simbólica, da ordem intersubjetiva da palavra.
A palavra, como elemento da ordem simbólica, transmite a necessidade de maneira verbal, quer dizer, simbólica, sob a forma de demanda. Deseja-se dizer alguma coisa, mas não é a coisa propriamente aquilo o que se diz.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Como a necessidade se exterioriza no significante

Quando o homem nasce ele existe sem linguagem, ele é infans (expressão latina que designa a criança como ser sem linguagem). O ser humano nasce prematuro e incompleto, absolutamente dependente de sua mãe, ou de outra pessoa. Exemplo único entre os mamíferos.
O bebê não articula suas necessidades, mas as exprime de modo desarticulado: grita e faz movimentos incontrolados. Sua mãe busca compreender, dar sentido a essas expressões, adivinhando de alguma maneira o que ele precisa ou quer, na tentativa de saciar suas necessidades.
Para ser compreendida por sua mãe, a criança aprendendo a falar deve exteriorizar sua necessidade no significante. Todavia, o significante é passado de boca em boca antes de poder servir à criança que dele precisa fazer uso para designar suas necessidades.
No Curso de lingüística geral preparado por Saussure, encontramos a seguinte passagem que atesta a precariedade do significante no que se refere a seu poder para encarnar a necessidade e mesmo o desejo.
Se, com relação à idéia que representa, o significante aparece como escolhido livremente, em compensação, com relação à comunidade lingüística que o emprega, não é livre: é imposto. Nunca se consulta a massa social nem o significante escolhido pela língua poderia ser substituído por outro. Este fato, que parece encerrar uma contradição, poderia ser chamado familiarmente de ‘a carta forçada’. Diz-se à língua: ‘Escolhe!’; mas acrescenta-se: ‘O signo será este, não outro’. Um indivíduo não somente seria incapaz, se quisesse, de modificar em algum ponto a escolha feita, como também a própria massa não pode exercer sua soberania sobre uma única palavra: está atada à língua tal qual é. (...) se se quiser demonstrar que a lei admitida numa coletividade é algo que se suporta e não uma regra livremente consentida, a língua é a que oferece a prova mais concludente disso (Saussure, F. 1995, p. 85).
O significante contém o sentido que os outros lhe deram e não precisamente aquele que a criança desejou dizer. Portanto, quando o sujeito se utiliza do ato da fala, ele o faz somente porque deseja dele se servir como um meio para enfim impor sua demanda. Esta seria a forma, agora tornada fala, como ele pode se aproximar de seu próprio sentir. A demanda seria assim o gritar e espernear do bebê, um pouco mais articulados.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

A relação primordial com o objeto

O bebê recém-nascido, ainda completamente dependente de sua mãe, não discrimina as sensações oriundas de seu próprio eu das demais sensações: seu existir indiscriminado corresponde a uma massa oceânica de sensações. A esse propósito Freud nos fala em O mal estar na cultura: (...) originalmente o eu inclui tudo; posteriormente, separa, de si mesmo, um mundo externo (Freud, S. 1930, p. 85).
A distinção das fontes de sensações, se elas têm ou não como sede o corpo do bebê, implica primeiro a percepção de que algumas fontes de sensações não estão disponíveis a qualquer tempo, dentre essas, o seio da mãe figura como a mais desejada, e se constitui como seu objeto sexual.
O momento de perda desse objeto cedível implica em poder discriminar a quem pertence o órgão, fonte plena de satisfação. Doravante, uma vez perdido esse objeto da pulsão oral, o interesse tornado auto-erótico, complexifica a relação com o objeto.
E a criança encena através de jogos incontáveis vezes repetidas com objetos disponíveis, tal como acontece na brincadeira do fort da, controlar o desaparecimento e retorno do objeto de seu desejo, a mãe. Significando dessa forma para si a renúncia pulsional a qual Freud faz alusão em Além do princípio de prazer, agora compensada pela realização cultural, (...) e não é senão depois de atravessado o período de latência que a relação original é restaurada (Freud S. 1905, p. 229).

terça-feira, 24 de junho de 2008

O sentido mítico da busca do objeto

Na terceira parte dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud aborda a questão do objeto, focalizando o processo psíquico de encontrar um objeto, que ocorre na puberdade. Sobre a possibilidade desse encontro Freud nos diz:
O encontro de um objeto é na realidade, um reencontro dele.
Mantida sob o escuro véu do desconhecido, a origem da sexualidade, como origem da vida, (...) faz remontar a origem de uma pulsão a uma necessidade de restaurar um estado anterior de coisas.
Freud inaugura seu debate sobre o objeto sexual tecendo comentários sobre o mito segundo o qual o ser uno dividiu-se em uma metade, homem; e outra metade, mulher. E, agora, essas duas metades buscam eternamente a união através do amor.
A palavra grega Eros provém do verbo érasthai, que significa estar inflamado de amor. Stricto sensu, diz respeito ao desejo incoercível dos sentidos. Na poesia mítica da Grécia antiga, em Hesíodo, memória da mais remota teogonia, Eros personifica a força fundamental do mundo, a coesão interna do cosmo, a garantia de continuidade das espécies.
Eros encarna o desejo irresistível de acasalamento que preside todos os seres. Eros nasce do Kháos, o qual personifica a profundidade insondável do vazio primordial, que antecede a toda criação, aos elementos responsáveis pela ordem universal. No Banquete, de Platão, Eros é o elo que une o todo a si mesmo e, assim, preenche o vazio.
Após o banquete em que se festejava o nascimento de Afrodite, em pleno jardim dos deuses, Eros foi concebido. Nasceu da união singular entre Póros (Expediente) e Penia (Pobreza). Graças a esse acasalamento tão diferente, Eros possui características definidas ao mesmo tempo que significativas. Como Pobreza ou Carência, está sempre em busca de seu objeto. Todavia, como Expediente, sabe bem como arquitetar um plano para atingir seu objetivo: a plenitude. Por isto, longe de ser um deus todo-poderoso, Eros se traduz como uma força, uma enérgueia, uma energia. E por conta dessa sua natureza díspar, Eros é perpetuamente insatisfeito e inquieto. Uma carência sempre em busca de plenitude; um sujeito em busca do objeto.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Filosofando VI - O dogmatismo da idade moderna

O Discurso do Método de René Descartes (1596/1650) constitui a pedra fundamental de uma revolução metodológica que traz conseqüências definitivas para a história do conhecimento. Expressa uma nova mentalidade para sua época – radicalmente racionalista, dando surgimento à filosofia moderna.
O cerne de sua elaboração sobre a razão encontra ecos no sistema filosófico de Sócrates e especialmente no pensamento de Platão. Proposta que coloca a questão do psiquismo humano no centro do interesse filosófico: exigência de construção de uma nova metodologia na qual o ser pensante torna-se senhor da natureza e de si mesmo.
A inovação de Descartes no campo do conhecimento reside na proposição dualística de sua dogmática, que revela a natureza da dualidade do homem. Esta formada pela química de duas substâncias independentes – res cogitans e res extensa: a primeira, indestrutível, capacita em superioridade indubitável o pensamento, privilégio exclusivamente humano; sendo a segunda, a matéria, submetida às leis da necessidade, da perenidade e da dúvida.
Na busca do pensamento puro, o cógito encontra a verdade na esfera do mundo físico, enquanto denúncia do fenômeno como pura aparência, ilusão, engano. É o predomínio da razão sobre o dado sensível, do poder do homem sobre a natureza, da capacidade de dominar-se a si mesmo.
A essencialidade incorpórea do espírito, apregoada por Descartes, se sustenta na filosofia de Platão: a alma é concebida como essência universal e imortal. Detentora da verdade, ela governa o corpo, e dele se distingue. Assim, segundo essa idéia, o psíquico funciona independente da vida material.
Contudo, um conflito ontológico se protagoniza no homem que vive tensionado entre a sedução da multiplicidade ilusória das paixões (da vida material) e o sentimento nostálgico da alma que nele habita, ressentido-se esta da perda circunstancial de sua eternidade – mundo das idéias puras - da verdade essencial de todas as coisas.
As últimas postagens giraram em torno de idéias que nos favorecem pensar sobre influências que compõem o cenário sócio-cultural do Ocidente. Nas próximas postagens dirigirei nossa atenção para temas que nos aproximam mais do sujeito e sua busca de objeto.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

O mal-estar na cultura

A sustentação da tese de que o Ocidente vive a ilusão de felicidade na proclamação da igualdade já há muito foi desenvolvida por Sigmund Freud, quando escreveu, em 1930, o magnífico trabalho sobre o mal-estar na cultura. Diz-nos Freud:
(...) o problema que temos pela frente é saber como livrar-se do maior estorvo à civilização – isto é, a inclinação, constitutiva dos seres humanos, para a agressividade mútua; por isto mesmo, estamos particularmente interessados naquela que é provavelmente a mais recente das ordens culturais do superego, o mandamento a amar ao próximo como a si mesmo. (...) É impossível cumprir esse mandamento; uma inflação tão enorme de amor só pode rebaixar seu valor, sem se livrar da dificuldade.
Nesse momento do texto, Freud está interessado em discutir a constituição do superego cultural, em compreender sobre que ideais está assentado e como este superego estabelece suas exigências.
Freud conclui com convicção que o estudo sobre os ideais da civilização deve levar em conta que os juízos de valor no homem são mutantes porque perseguem de perto os anseios por felicidade; configuram uma tentativa de apoiar, com argumentos, as ilusões.
O ideal da democracia celebra o princípio da igualdade (das capacidades, responsabilidades e possibilidades sociais) entre os homens e lança a seguinte fórmula – o crescimento é a abundância; a abundância é a democracia. Logo, precisamos lutar pelo crescimento material e econômico porque estes nos engrandecem aos olhos dos outros.
A democracia assim produz a transferência dos princípios idealistas que preconizam a igualdade e a fraternidade como mola propulsora de felicidade, para a realização dessa igualdade diante dos objetos e dos signos que proclamam o sucesso social como sinônimo de felicidade. Freud comenta a busca de controle e poder do homem sobre a natureza das coisas:
Essas coisas – que através de sua ciência e tecnologia, o homem fez surgir na Terra, (...) essas coisas não apenas soam como um conto de fadas, mas também constituem uma realização efetiva de todos – ou quase todos – os contos de fadas. (...) Há muito tempo atrás, ele formou uma concepção ideal de onipotência e onisciência que corporificou em seus deuses. (...) Hoje, ele se aproximou bastante da consecução desse ideal, ele próprio quase se tornou um deus. (...) O homem, por assim dizer, tornou-se uma espécie de ‘Deus de prótese’. (...) atualmente o homem não se sente feliz em seu papel de semelhante a Deus.
Ante a insatisfação inerente à existência do homem e sua busca incessante por possuir em abundância objetos utilitários, Freud reverencia a beleza, valorizando os objetos que entretém o sentido estético da existência; e conclama mesmo a nossa aproximação de coisas não lucrativas, sejam aquelas existentes na natureza, sejam aquelas criadas pelo próprio homem. Mas o que assistimos atualmente, ou melhor, o percurso ético ao qual teimamos a nos agarrar, parece apenas nos afastar cada vez mais dessa conquista estética a qual Freud nos convida.

A concepção transdisciplinar de Pierre Bourdieu

A produção transdisciplinar de Pierre Bourdieu abrange diversos domínios. Como insígnia de seu descompromisso com as fronteiras disciplinares, realiza pesquisas no âmbito da antropologia, sociologia, educação, história e literatura.
A fidelidade de Bourdieu à filosofia, sua primeira formação, se expressa nas suas indagações teórico/pragmáticas: busca na multiplicidade de procedimentos (estatística, entrevistas, testemunhos...) e no rigor de sua metodologia, aquilo que dota de fidedignidade o discurso filosófico e preserva estreita relação entre sociologia e etnologia.
Bourdieu articula o agente e a estrutura social; a situação de dominação que experimenta o agente em relação a suas raízes. A este tipo de conhecimento ele denomina de praxiológico, cujos objetos são as relações dialéticas entre as estruturas objetivas e as disposições estruturadas.
Ele propõe uma economia das práticas capaz de sustentar a abordagem fenomenológica e a estrutural num modo de pesquisa integrado, que insere as atividades do próprio analista, pois ainda que a sociedade contenha uma estrutura objetiva, esta é sempre fabricada. As interpretações dos agentes fazem parte da realidade do mundo social.
A filosofia de ação de Bourdieu é monista na medida em que não demarca externo e interno, consciente e inconsciente, corporal e discursivo. Ela busca apreender a intencionalidade sem intenção, a matriz pré-reflexiva, o infraconsciente do mundo social que os agentes adquirem por sua imersão.
Mas contrariando toda forma de monismo, Bourdieu proclama o primado das relações e propõe uma metodologia que afirma a prioridade ontológica da estrutura ou do agente. Esta perspectiva relacional lhe é dada pela tradição estruturalista, que se solidificou no pós-guerra.
Para construir essa teoria da prática que se sustenta na mediação entre sujeito e história, Bourdieu recupera a idéia de habitus extraída da escolástica que concebia o hábito como um modus operandi. O habitus se torna uma segunda dimensão do homem que orienta a ação; matriz de percepção, de apreciação e de ação, sendo habitus primário aquele característico de um grupo ou de uma classe e que está no princípio da constituição ulterior de todo outro habitus. Assim, a estrutura de um habitus anterior comanda o processo de estruturação de novos habitus. Contudo, esta noção não pode ser compreendida como costume repetitivo e mecânico, mas sim como relação ativa e criativa no mundo, que recusa os dualismos sujeito e objeto, interior e exterior, material e espiritual, indivíduo e sociedade.
O habitus é um mecanismo estruturante que opera no interior dos agentes; é o gerador das estratégias que permite aos agentes afrontar as situações. A história do indivíduo se desenrola como uma variante estrutural do habitus de seu grupo e classe. O estilo pessoal é um desvio em relação ao estilo de uma época, uma classe ou grupo social. Falar de habitus significa entender o individual, o pessoal e o subjetivo como social, como coletivo. Porque o habitus exprime a subjetividade socializada.
A relação entre o habitus e o campo é estrutural: o campo estrutura o habitus que é produto da incorporação da necessidade imanente do campo. O habitus contribui para constituir o campo como mundo significante, dotado de sentido e de valor. Mas esta relação de conhecimento depende da relação estrutural que a precede.
Os dois conceitos de habitus e campo funcionam em reciprocidade. Um campo não é uma estrutura morta ou um sistema de lugares vazios. Existe a ação e a história, tanto na direção da conservação, quanto na direção da transformação, uma vez que Bourdieu considera o agente dotado de um conjunto de disposições que o equipa de propensão e de capacidade para entrar no jogo e jogar.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

O mundo globalizado

As rápidas modificações tecnológicas e a explosão globalizada das identidades e dos bens de consumo tornaram tênues as fronteiras do nacional em contraste com o exterior. Trata-se aqui das fronteiras entre o que hoje se considera alheio em diferença opositiva ao que se considera próprio.
Quais parâmetros guiam nossa percepção na identificação daquilo que nos diferencia dos demais?
Antes, podia-se diferenciar uma nação por seu enraizamento territorial e por sua inclinação industrial, o que lhe dotava de certa hegemonia a ser preservada como valor de propriedade e de distinção. Atualmente esses limites são configurados pelo poder de consumo, por aquilo que se possui ou que se pode chegar a possuir.
Fala-se hoje da cultura como um processo de montagem multinacional, em que se identificam traços diversificados que podem ser traduzidos por qualquer pessoa. O antropólogo Néstor Canclini, que estuda a realidade da América Latina comparando-a com as peculiaridades do primeiro mundo, nos brinda com o seguinte exemplo: hoje, “compramos um carro Ford, montado na Espanha, com vidros feitos no Canadá, carburador italiano, radiador austríaco, cilindros e bateria ingleses e eixo de transmissão francês”.
Canclini admite que a globalização se tornou um processo irreversível que atesta a racionalidade econômica dos nossos dias, mas defende a idéia de que o global não substitui o local, e considera que o modelo neoliberal não pode ser encarado como a única opção disponível no mundo.
As discussões de Clanclini nos reaproximam das teses marxistas. Ele chama a atenção, por exemplo, para problemas que envolvem a participação dos trabalhadores nas decisões empresariais e sindicais. Não dá para negar que, aumentadas enormemente as distancias espaciais entre as partes envolvidas nas negociações sindicais, e desconhecido o ponto central de onde partem as decisões da direção empresarial, as negociações tornaram-se quase impossíveis de serem realizadas.
Quando pensamos no processo alienante da sociedade de consumo, sutil, civilizado, e por isto mesmo mais complexo e eficiente, nos perguntamos como é possível escapar à sedução, aos apelos enganosos de um capitalismo muito mais maleável do que pôde supor seu principal crítico, Karl Marx.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Filosofando V - O berço da psique e do eu

Na Grécia primitiva, reino do pensamento animista, a idéia de alma estava associada a experiências fundamentais como vida e morte. Significava uma obscura tomada de consciência pelo homem de seu estar no mundo. A alma estava relacionada à força misteriosa da vida animal e humana, cuja existência acreditava-se poder ser apreendida nas atividades vitais da respiração e do sangramento.
O conceito de natureza concebido nessa época tem origem na constituição espiritual do homem. Mas mesmo antes dessa idéia ter surgido, em sua pré-história, as coisas do mundo eram percebidas numa perspectiva orgânica, na qual cada parte formava um todo. Havia sempre a idéia de uma totalidade ordenada e viva que tudo presidia e a tudo dotava de sentido.
Os poemas homéricos retratam um mundo de heróis: homens fortes que buscavam a felicidade no prazer e na ação, e viam na coragem o sentido ético da existência. O homem homérico amava acima de tudo a vida. Consciente de sua força e de sua ação ativa, este homem lamenta como nenhum outro sua morte – a vida perdida, sina para a qual não havia consolo possível. Na morte, a alma (da natureza do vento) abandonava o corpo em direção ao Hades.
Mas os sofrimentos do homem, suas lamentações sobre a fugacidade da vida e dos prazeres sensitivos que se faz notar na poesia posterior a Homero, denotam sentimentos que revelam a importância da vida individual. Há na poesia pós-homérica o desenvolvimento do conteúdo do pensamento seja como exigência normativa do social, seja como expressão do indivíduo. Esse tipo de poesia apresentava reflexões filosóficas e separava-se ou mesmo abandonava o mito, outrora sempre presente na epopéia.
A poesia jônica revela uma recém descoberta: o eu, mais intimamente relacionado à totalidade do mundo, à natureza e à sociedade do que hoje o concebemos; nunca eu como entidade separada e solitária, de tal modo que as manifestações da subjetividade não são exclusivamente subjetivas; porque o eu individual exprimia e representava em si a totalidade do mundo objetivo e suas leis.
Com o surgimento da especulação racional alimentada pelos pensadores jônicos, tem lugar um desacordo entre alma e corpo: a alma é da ordem do místico e do sagrado, procedente do Além, ao passo que o corpo é apenas expressão do aprisionamento da alma no mundo. Nostálgica e encerrada num corpo destituído de sentido, a alma buscava emoções de plenitude nos cultos a Dioniso. Rituais regados a vinhos, sons e danças frenéticas, que culminavam em transes de êxtase por seus participantes - momentos em que a alma se revelava a si mesma.
A tragédia floresce no momento em que o heroísmo cede lugar ao conhecimento reflexivo e sensitivo. Alimenta-se das raízes do espírito grego para expressar um heroísmo mais interior, estreitamente traçado no mito e na forma de ser que dele advém. Na tragédia, a poesia grega volta a abranger a unidade do humano – força estruturadora e espírito criador – aproximando-se por esse viés da poesia homérica. Gênero pleno de simbolismos, a tragédia configurava uma nova intuição da totalidade da existência; surgi pari passu a transformações nas aspirações e na ordenação da vida social.
O início da história grega se funda no sentimento da dignidade humana. Surge como princípio da valoração do homem, não de seu eu subjetivo, individual, autônomo, mas sim de um eu consciente das leis gerais que o determinam, reflexo de uma imagem genérica, universal e normativa do homem.