quinta-feira, 20 de março de 2008

Psicanálise e Filosofia

No início era a mitologia. Mais tarde, a filosofia. E ambas se tornaram definitivas quando se almeja refletir sobre a dimensão humana. Há séculos, desde a máxima de Sócrates que nos chega como um convite: conhece-te a ti mesmo, erramos em busca do fugidio saber capaz de desvendar os mistérios encapsulados no espírito do homem. Podemos retroceder ainda um pouco mais para dizer que desde os ensinamentos dos pensadores pré-socráticos, detentores de um manancial de verdades atemporais, a filosofia perpetua seu trabalho na formulação de temas e disciplinas, alicerces para investigações que possibilitaram ao homem atingir as condições de conhecimento de que hoje dispõe a civilização. O segredo da longevidade da filosofia se esconde no seu saco sem fundo de perguntas.
Estudar filosofia era o anseio do jovem Sigmund Freud. Ele desviou seu interesse para a medicina por acreditar que esta lhe proporcionaria mais seguramente o lugar social que pretendia ocupar. Mas como reviramos o mundo quando o desejo é forte e resiste às torções da realidade, em 1896, quando a psicanálise era ainda uma criancinha envolta em fraldas, Freud escreve a Fliess, seu amigo e maior confidente, que os estudos que empreendia na época, os novos caminhos que tateava, suas investigações sobre a histeria, enfim, a passagem que realizava da medicina para a psicanálise, o reconduziam ao ponto original de seu desejo, a filosofia. Por que Freud assim considerou seu percurso? Não seria porque ele percebia a vocação da psicanálise para aprofundar a arte de interrogar herdada da filosofia?

A filosofia nos leva a perguntar, a investigar, a refletir. A psicanálise recupera essa potência filosófica ao escutar interrogativamente cada sujeito no dizer sobre sua história, no falar sobre si mesmo. É na arte de interrogar, mais do que esbelecer respostas, que se situa o ponto de aproximação de ambas. Elas correrm em trilhos próximos e paralelos, e se entrecruzam em pontos limites para situar desvios que conduzem seus trilhos a diferentes direções, sem nunca se distanciarem demasiadamente.

sábado, 15 de março de 2008

Filosofando II - Sobre a dialética

Hegel (1770-1831) manteve os argumentos cristãos a serviço de uma filosofia que se pretendia acima da religião: a verdadeira religião é interioridade. Seu pensamento sofreu influência da concepção de Espinoza, para quem a substância é o que existe em si e é concebida por si. Essa substância infinita é Deus – Deus sive natura. Deus é o mundo, o mundo é Deus. Nele reside a unidade e a totalidade. Natura naturante - Deus unidade; natura naturata - Deus totalidade. Substância perfeita que configura a união dos contrários: espírito e matéria. Hegel substitui essa lógica antiga pela dialética, que é dinâmica, que descobre contradições para conciliá-las e superá-las. Se a toda tese se opõe uma antítese, a contradição entre a tese e a antítese é suprimida por uma síntese, que é o devir.

A lógica de Hegel é metafísica, é a ciência das realidades compreendida pelo pensamento que expressa a essência das coisas. O ser é abstração, indeterminação e nada. Do embate entre ser e nada surge a síntese. A verdade do ser e do não ser se encontra na unidade de ambos, que é o chegar a ser, o devir.

Hegel resgata os ensinamentos de Heráclito (544-484 a.C.), para quem o fogo é o princípio de todas as coisas. É um fogo vivo, força ativa e móvel. Energia fundamental que anima e ordena o eterno devir. O movimento tem uma racionalidade dada pelo logos, o fogo universal. Esse logos, que dirige tudo, é uma norma, uma lei inerente à natureza de tudo. Em Heráclito, todas as realidades se opõem, unem-se e se harmonizam. Os seres são marcados por uma dualidade interna, neles encontram-se a identidade e a alteridade. Cada ser se determina na relação com o outro e na relação consigo mesmo.

A razão encontra sua singularidade na força do negativo. São dois lados em oposição, e nessa relação dos contrários um é a negação do outro, entretanto constituem uma unidade. Mas o movimento da realidade não é absurdo nem irracional. Há, intrínseca, uma lógica triádica: ser (uma afirmação), não ser (uma negação) e síntese (a negação da negação) diferenciando-se esta qualitativamente tanto da afirmação quanto da negação. Elementos sempre presentes no devir, processo da permanente mobilidade, da transformação. Germe do móvel, que fundamenta uma razão/desrazão, que absorve na sua interioridade a luta da contradição. Lógica de que se apropria Karl Marx. Isolando-a da essência metafísica, e dotando-a de uma materialidade histórica, Marx resgata na dialética sua prodigiosa potencialidade para pensar a realidade social e histórica.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Filosofando I - Sobre a lógica identitária

Aristóteles nasceu em 384 a.C. em Estagira na Trácia, uma colônia jônia. Tornou-se discípulo de Platão em Atenas, a quem seguiu durante vinte anos. Em 335 a.C. fundou o Liceu e lá permaneceu a professar seus ensinamentos por treze anos.

Comunga com Sócrates e Platão a idéia que só existe ciência do geral. Difere de Platão, contudo, sobre a idéia de geral. Esta reside nas coisas e nos seres individuais. A idéia geral de homem se realiza nos homens individuais, ao passo que para Platão, a ciência reivindica a existência de um mundo inteligível separado do mundo sensível.

Aristóteles criou a lógica formal, a qual exige o acordo do pensamento consigo mesmo, seja qual for o conteúdo desse pensamento. Para ele a lógica é a disciplina do saber, onde as categorias são tidas como uma gramática da realidade. A lógica é a disciplina da ciência, e esta requer demonstração.

O primeiro princípio da ciência é o da não contradição. Algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo, sob o mesmo aspecto e no mesmo sujeito. Esta lógica aristotélica está sacramentada no pré socrático Parmênides (540-460 a.C.). Em Parmênides a razão humana exige unidade e imutabilidade do objeto ao qual se aplica. Uma coisa é ou não é, eis o princípio da não contradição. Como a experiência comprova que tudo muda, o filósofo deve se ocupar da verdade una e imutável, posto que o ser é unidade, imobilidade, inato, necessário e eterno. A doutrina de Parmênides tem como exigência a noção de identidade: único fundamento e critério da verdade. O pensamento coincide com a existência absoluta. O móvel, o contraditório, é falso; exclui, portanto, todo movimento e mudança real. Fora da verdade absoluta há apenas aparências, opiniões sujeitas à ilusão e ao erro.

Para Parmênides, só existe uma sabedoria: conhecer o Pensamento que dirige todas as coisas. A metafísica (meta ta physicá significa a filosofia) de Parmênides fundamenta ainda hoje uma teoria do conhecimento positiva, suporte de verdades absolutas, envolve uma razão linear.

Há que se pensar: no legado deixado à civilização pela razão aristotélica, o logos se funda na noção de identidade, de modo que A é A; ou, não é não A. Esta lógica serve para fazer funcionar a força cognoscitiva sem possibilidade de erro. É uma lógica das essências abstratas; da ordem da definição dos conceitos, uma vez que um conceito não pode ser não ele, o que impõe sempre uma afirmação, uma verdade imanente a ele mesmo.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Aprisionamento

Ao atravessar os portões da penitenciária de mulheres (1984), a primeira impressão com a qual nos deparamos entra em choque com a imagem previamente formada acerca do mundo particular que se imagina existir atrás daqueles muros. A fantasia criada sobre a vida na prisão é de que, nesta, o rigor assume a proporção do absoluto, e que os encarcerados seriam pessoas que, pela aparência e pelo olhar, transpareceriam a ferocidade gerada pelo rancor e pelo desgosto de estarem sendo obrigados a conviver num ambiente onde a coerção declarada seria a norma que vasculha as ações de modo a desvendar a intenção disciplinar.
A liberalidade aparente que à primeira vista se observava na prisão de mulheres, na verdade, era fruto de um momento circunstancial, e expressava a vontade de repensar os procedimentos utilizados na custódia, visando adequá-los ao pensamento político que ora predominava: o de humanizar as prisões. Esta liberdade consentida, embora controversa, permitia contradizer o preconceito de que o clima na Talavera Bruce era sombrio e ameaçador.
A permanente ameaça de que a qualquer momento possa ocorrer algum tipo de violência paira no ambiente da prisão. É preciso acostumar-se a conviver com a instabilidade, a insegurança. Porque isto é algo inerente à natureza da penitenciária. O ambiente persecutório produz seres paranóides. E a paranóia que advém dessa realidade inevitável responde pela preservação do indivíduo. A qualidade mórbida da paranóia depende da intensidade de como cada um desenvolve este tipo de sentimento defensivo. Sabe-se porém que a prisão propicia uma potencialização dos estados afetivos, dado o aspecto excessivo que encerra a experiência segregadora.
Um número significativo de presas apresenta histórias de vida similares no essencial: ganhavam a vida na rua como prostitutas, e se envolveram na sua maioria como cúmplices em crimes contra o patrimônio. Pessoas que tinham uma vida nada rotineira, marcada pelo inesperado. Acostumaram-se com a vida noturna e agitada da cidade. Ressentem-se da regularidade que, a partir da reclusão, passam a ter que respeitar. Este impacto, contudo, configura-se um mal menor, posto que a fantasia criada sobre o Talavera Bruce era tão ameaçadora que a vivência do cotidiano desmistifica a malignidade imaginada. O monstro não é tão pavoroso quanto se fazia supor.
Sabemos que a população carcerária compõem-se de pessoas oriundas de comunidades marginais, com exceções, acostumadas com a miséria e a vida instável, vida que desde a infância mostrou-se dura e impiedosa. Ante a difícil realidade a ser enfrentada na luta pela sobrevivência, para algumas a prisão viabiliza certa estabilidade, até então desconhecida.
Os afetos, as sensações, são visivelmente intensificados na penitenciária. Marca que diferencia qualitativamente a experiência humana intramuros da vida na sociedade. A somatização é um processo que as presas manifestam de forma generalizada e constante. Elas apresentam uma predisposição a sentir-se doentes. Somatizam, geram e cronificam doenças que se arrastam como que incuráveis. Essa hipocondria não deixa de ser um modo de expressar uma dor não palpável, difícil de ser referida.
Trecho extraído do livro: Cárcere de Mulheres, de Maruza Bastos. Rio de Janeiro. Diadorim Editora. 1997.

Diferenças entre Psiquatria, Psicologia e Psicanálise

Há muita confusão entre estes campos, e com razão, porque nos consultórios psicanalistas, psicólogos e psiquiatras são procurados para atender a queixas semelhantes.
A psiquiatria é uma especialidade da medicina. Seu interesse é tratar, com medicamentos, doenças que afetam os estados de consciência. Ela diferencia os transtornos que perturbam à consciência, cujos fenômenos sâo: a percepção, a atenção, o pensamento, a memória, a inteligência, etc. A psiquiatria se apóia na psicopatologia, que é seu campo de investigação teórica. Esta classifica os transtornos, criando tipologias através das quais descreve os sintomas. O que permite ao médico reconhecê-los nas queicas de seus pacientes. A famacologia pesquisa e gera um mercado que aparelha o psiquiatra com remédios que ele prescreve. A esquizofrenia, por exemplo, exige rigoroso controle através de medicamentos, por apresentar sintomas que afetam intensamente a consciência, como as alucinações e os delírios, os quais alteram o comportamento e elevam incrivelmente o sofrimento do paciente.
A psicologia, em sua generalidade, é definida como a ciência do comportamento humano. Seu objetivo é estabelecer os parâmetros do comportamento normal. Para atingi-lo, utiliza diferentes instrumentos como a observação, testes e medidas com o auxílio da estatística para delimitar comportamentos e seus desvios padrão. Percepção, emoção, vontade, motivação são temas muito pesquisados. É imensa sua aplicação, como grande a quantidade de teorias que fundamentam suas práticas. Seu campo de atuação abrange todo tipo de atividade humana. O psicólogo atua no hospital, na escola, na prisão, no esporte, na propaganda, etc. Na empresa, por exemplo, o psicólogo trabalha na área de recursos humanos com recrutamento, seleção e treinamento. Aplica testes, dinâmicas de grupo, faz entrevistas, e seleciona candidatos que atendam ao perfil dos cargos disponíveis. No treinamento, preocupa-se com o nível de motivação, e realiza dinâmicas que fortaleçam o espírito de equipe visando atingir os objetivos institucionais.
Já a psicanálise, investiga como funciona o psiquismo do homem, ou seja, como cada um é afetado pelos afetos. Ela se interessa pelo sofrimento psíquico e não trabalha com remédios, mas sim com a fala do paciente para ele dizer seus sofrimentos, suas angústias, seus sintomas. Porque a psicanálise entende que o sintoma do homem é a forma que ele encontrou para existir num mundo complexo e angustiante. Ela não se interessa pelos fenômenos da consciência. Estuda as formas de manifestação do inconsciente, que se faz presente na linguagem, por exemplo, através de atos falhos que revelam outro interesse, cujo nome é desejo. O que importa é que o homem viva em consonância com seus desejos. Mas é muito importante saber que não é sempre que os desejos são viáveis e nem mesmo desejável que se realizem, quando se tem em mente o bem estar. Nem todo desejo é bom. O que a psicanálise defende é o desejo de desejar. A busca infindável. Porque o fim do desejar significa a morte psíquica, e pode mesmo levar à morte física do homem.
Na próxima postagem vou editar um pequeno extrato de um trabalho que escrevi na década de 80, quando desenvolvi uma pesquisa, na verdade um trabalho de escuta, no interior da penitenciária de mulheres Talavera Bruce.