sexta-feira, 30 de maio de 2008

O isolamento do homem contemporâneo

A constatação do isolamento crescente do homem ao longo da história da civilização foi objeto de estudo realizado pelo sociólogo Norbert Elias e apresentado em seu livro A sociedade dos indivíduos, no qual Elias discute o isolamento enquanto uma forma de habitus cultivado pelo homem contemporâneo.
Ao discutir sobre a complexa estruturação das relações no mundo atual, Elias observa que a formação do habitus se deve ao arraigamento do indivíduo a formas primitivas de organização – nós - por ele vividas.
Aliando-se à visão freudiana da vida comunal totêmica, Elias encontra fundamento para pensar a fusão do eu com o nós primitivo e, desse modo, anti-naturaliza a percepção do isolamento em que se aprisiona o indivíduo contemporâneo.
A partir de Descartes, considera Elias, houve um peso crescente na balança nós-eu, pendendo para o lado do eu. A concentração máxima desse peso - do isolamento do indivíduo como estátua pensante em relação aos outros e ao mundo – se solidifica no período pós-guerra.
Na atualidade, o indivíduo tem que contar com ele mesmo para decidir sobre a forma de seus relacionamentos. A grande permutabilidade relacional exige por parte dele maior autocontrole e menor espontaneidade nos atos e no discurso.
Mas o habitus característico de nossos dias, que empresta ênfase ao eu, não anula o impulso humano para a afeição e a espontaneidade nos relacionamentos, nem extingue o desejo de segurança e constância dos afetos nas relações. A gama de diferenciação entre os indivíduos porta a diversidade e a variabilidade das relações pessoais. Nestas se pode notar o anseio por calor, por ter afirmada a afeição dos outros, embora haja uma incapacidade de proporcionar afeição espontânea.
Com isto Elias quer dizer que os relacionamentos, tal como sucedem nos dias correntes, não sufocam o desejo de dar e receber calor, nem o desejo de compromisso nas relações. Mas sufocam a capacidade do indivíduo para dá-los ou recebê-los.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Os Porões da Pólis

Nos anos noventa realizei um estudo sobre a grave situação das instituições responsáveis pela custódia de adolescentes infratores no Rio de Janeiro. São elas: o Instituto Padre Severino, a Escola João Luiz Alves e o Educandário Santos Dumont, todas localizadas na Ilha do Governador.
Para situar os leitores interessados, esta área de atuação estava nessa época sob a responsabilidade do Ministério da Justiça, compunha o organograma da Secretaria dos Direitos da Cidadania, na qual foi criado o Departamento da Criança e do Adolescente (Dec. 1796, de 24.01.96), que respondia pela implantação da política de atendimento de direitos da criança e do adolescente.
Com a promulgação em 1990 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o atendimento oferecido por essas escolas deveria obrigatoriamente sofrer reformulações. Esta lei se inspira na Convenção internacional sobre os direitos da criança, que entrou em vigor também em 1990 e em diretrizes indicadas pela Constituição Federal de 1988.
O Estatuto da Criança e do Adolescente contempla, no plano ideal, os princípios contidos em orientações internacionais, que apontam para a integração global das nações, introduzindo a política internacional de mútua ajuda, principal conquista da humanidade após a experiência destrutiva da Grande Guerra.
Conforme prevê o Estatuto, o papel das equipes técnicas que trabalham nessas escolas consiste em proporcionar subsídios à decisão judicial, sugerindo medidas a serem adotadas mediante estudo de caso. Cabe também à equipe acompanhar os casos e desenvolver todos os procedimentos no sentido de elaborar uma programação que atenda às necessidades básicas do adolescente e da família.
A história sobre o percurso que teve o atendimento à juventude no Brasil apresenta um movimento ascendente e linear em direção à cobrança de responsabilidade por parte da sociedade em relação às atitudes do jovem (as ações consideradas anti-sociais – década de 50, posteriormente passam a caracterizar a situação irregular – década de 70, atualmente classificadas como infracionais – década de 90). Discussão que coloca em evidência a preocupação crescente com a responsabilidade penal e as conseqüentes modificações no conceito de imputabilidade.
Durante a República Velha foram criadas instituições e instrumentos legais nos quais sobressaia a dicotomia entre teoria e prática: aparecem instituições sem condições de cumprirem as finalidades para as quais eram destinadas; as administrações da Escola Quinze de Novembro foram marcadas por freqüentes crises originadas nas contradições e conflitos. Essas crises oscilavam entre dois pólos: ou se dava ênfase ao aspecto educacional e preventivo, ou se tratava o problema como um caso de polícia que necessitava de enérgicas medidas de segurança. As queixas se multiplicavam: a constante falta de verba, a falta de recursos humanos e materiais, a superlotação dos internados...
Esses problemas não são exatamente os mesmos que enfrentamos na atualidade? O que avançou nessa história? Tranquilamente se pode responder: os instrumentos legais, e só. E isto resultou em mudanças efetivas? Categoricamente se pode responder: Não. Mas por que não se consegue transformar em realidade as idealizações contidas nos documentos oficiais?
As equipes restringem o contato com os adolescentes à tarefa de organizar o estudo de caso exigido pelos juízes. Assim, realizam uma avaliação do aluno fria e sem conteúdo, na qual o adolescente nada de substancial sobre si mesmo pretende passar; e esta situação se reproduz com a família. A dinâmica das equipes técnicas reflete o todo do funcionamento dessas escolas.
A provisoriedade da internação conforma uma situação de não realização por parte de todos: os funcionários não se estimulam em investir num adolescente que logo irá embora, e ele não se percebe comprometido com nada ali, até porque para isto seria necessário acreditar no sistema. Além do mais seu objetivo é sair dali, ainda que saiba da absoluta falta de oportunidades e do sinistro que domina a vida na rua.
Há uma constante oscilação no objeto da atenção: ora o objeto é o relatório que deve ser entregue em prazo determinado e exíguo; ora o objeto é a árdua tarefa de controlar os conflitos, conter os desafetos e não permitir a evasão; ora o objeto é a confecção e sustentação de um projeto educativo.
De fato a pressão dos prazos judiciais acaba inviabilizando um trabalho voltado para atender às exigências sócio-educativas. Há a ausência de um projeto educacional em torno do qual os diferentes setores possam atuar. E é impossível para essas equipes darem conta de tarefas tão conflitantes entre si, além de exaustivas.
Uma sugestão seria formar um núcleo de técnicos voltados especificamente para fornecer a análise que subsidia a decisão judicial, enquanto um outro núcleo se envolveria em projetos claramente definidos, a serem executados e avaliados dentro de prazos definidos. Esta seria uma tentativa de quebrar a prática jurisdicista e conservadora que acaba por contaminar toda a práxis nessas escolas.
As múltiplas insatisfações dos funcionários e a alienação do Estado para cumprir condignamente suas responsabilidades executivas, configuram um quadro de tensão e impotência indissolúveis, que ameaça constantemente a saúde das pessoas que trabalham nessas instituições insalubres.
Mas a maior necessidade desse sistema é adotar uma mira filosófica / teórica acerca do sujeito com que se trabalha nessas instituições. O que significa se implicar na discussão sobre nossa história social particular – brasileira – no processo civilizador.
Trata-se de uma sociedade jovem, que traz na sua bagagem a trágica experiência da colonização selvagem, do trabalho escravo, da conformação de uma elite aristocrática, ruralista, que não consegue impedir o desenvolvimento de um grupo de elite que clama pelos ideais liberais. No seio dos conflitos entre os interesses diferenciados desses grupos, crescemos, ainda que frágeis, em nossa busca de autonomia; avançamos entre tropeços e retrocessos nosso projeto de nação liberal. Entretanto, nos impasses para superar os efeitos paradoxais do passado, acumulamos uma gigantesca dívida social, centrada na forma como se consolidou (?) nosso sistema de direitos sociais, expressa na tríade: habitação, educação, saúde. Essa dívida é proporcional à concentração de capital e de propriedade por pequeno segmento da sociedade.
O Estatuto da Criança e do Adolescente é um instrumento resultante de uma reflexão coletiva de caráter internacional sobre a preocupação da civilização com a infância. Nesta perspectiva, temos uma estratégia filosófica e pragmática: a sócio-educativa, que nos indica o caminho da proteção integral.
Daí que o aspecto social presente na díade – sócio-educativa, exige a montagem de um sistema assistencial, da construção de um conjunto de instituições de atendimento com caráter preventivo: suporte social essencial para viabilizar a retaguarda da intervenção educativa, judicial e policial.
O aspecto educativo presente nessa díade, não pode ser reduzido a uma preocupação coercitiva das atividades do indivíduo. Há que permanecer um tanto distanciado do papel restrito que cabe à justiça e à polícia. Estes, compõem um aparato de intervenção que, limitada pela sua inerência qualitativa, deve permanecer na redução do limite coercitivo que se exerce sobre a ação destrutiva, com precisão técnica e humana, mas preservando sempre a restrição de seu enquadre.
No caso da instituição educativa para o jovem infrator, há que se garantir a especificidade – especial – de sua intervenção: entramos aqui na discussão sobre um projeto de atendimento no qual as necessidades individuais devem ser observadas com as lentes precisas de microscópio. Esse tipo de abordagem exige que um aparato de promoção social caminhe pari passu apoiando o jovem e sua família. Mas para que este projeto possa se realizar é preciso acabar primeiro com as macro-instituições de internação.

Extraído do artigo Os Porões da Pólis, de Maruza Bastos; in: A pesquisa nas ciências do sujeito. Rio de Janeiro: Revinter, 1998.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Sociedade de consumo

Nunca antes na história do ocidente assistimos como hoje o rápido aparecimento e desaparecimento dos objetos. O entrelaçamento entre consumo e alienação é tão flagrante nesta sociedade em que impera o excesso, que somos levados a interrogar sobre os efeitos de tal intima relação. Como numa grandiosa festa, a mercadoria se transforma na imagem do dom que não se esgota. Espera-se que exista em demasia de modo a abarcar todas as necessidades de todos. Isto nos dota de longevidade, possibilitando-nos relativo sentimento de imortalidade, que se faz acompanhar da ilusão de possuirmos ilimitado controle sobre o mundo.
Ao refletir sobre a sociedade de consumo, Jean Baudrillard se utiliza do mito da Medusa para nos confrontar com a ambição de poder do homem. Freud também se utilizou desta figura mitológica da cabeça decapitada da Medusa, com os cabelos sob a forma de serpentes, para falar da castração. O simples ato de olhar a cabeça da Medusa provoca a transformação em pedra naquele que a confronta, decorrente do enrijecimento provocado pelo horror que esta visão é capaz de evocar. As serpentes, ainda que assustadoras, suavizam o terror, pois que representam o pênis, cuja falta é que provoca horror. O terror provocado pela cabeça da Medusa é um terror de castração: decapitar = castrar.
A proliferação de símbolos fálicos na cabeça da Medusa mantém ligação com a castração porque nos remete à idéia de presença-ausência - presença do pênis na mãe - como formação de uma unidade amalgamada que a noção de fetiche nos faz entrever. O fetiche tem a função de véu que se interpõe à falta, relaciona-se com o proibido na medida em que através dele tudo se pode fazer: negar o interdito inscrito na proliferação. O objeto fetiche permite ao fetichista por momentos precisos preencher a ausência de pênis na mulher. Na medida em que ludibria seu horror em relação à castração na mulher, também entorpece seu próprio temor quanto à ameaça de castração.
A mercadoria mantém com o fetiche estreita relação. Ela permite ao homem contemporâneo sonhar com a possibilidade de satisfazer-se plenamente e sentir-se como o fetichista, capaz de ludibriar a interdição.
Diante de um olhar passivo e conivente do indivíduo, os objetos se proliferam numa movimentação incessante e insaciável. No êxtase de uma passividade contagiante, os homens abandonam a convivência uns com os outros para permanecer mais ligados aos objetos que os rodeiam. À mercê do ritmo imposto pela frenética sucessão de objetos, deixam-se tornar mais funcionais que propriamente humanos.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Sala de desjejum

Uma tradição popular adverte contra contar sonhos, pela manhã, em jejum. O homem acordado, nesse estado, permanece ainda, de fato, no círculo de sortilégio do sonho. Ou seja: a ablução chama para dentro da luz apenas a superfície do corpo e suas funções motoras visíveis, enquanto, nas camadas mais profundas, mesmo durante o asseio matinal, a cinzenta penumbra onírica persiste e até se firma, na solidão da primeira hora desperta. Quem receia o contato com o dia, seja por medo aos homens, seja por amor ao recolhimento interior, não quer comer e desdenha o desjejum. Desse modo, evita a quebra entre mundo noturno e diurno. Uma precaução que só se legitima pela queima do sonho em concentradotrabalho matinal, quando não na prece, mas de outro modo conduz a uma mistura de ritmos vitais. Nessa disposição, o relato sobre sonhos é fatal, porque o homem, ainda conjurado pela metade ao mundo onírico, o trai em suas palavras e tem de contar com sua vingança. Dito modernamente: trai a si mesmo. Está emancipado da proteção da ingenuidade sonhadora e, ao tocar suas visões oníricas sem sobranceria, se entrega. Pois somente da outra margem, do dia claro, pode o sonho ser interpelado por recordações sobranceira. Esse além do sonho só é alcançável num asseio que é análogo à ablução, contudo inteiramente diferente dela. Passa pelo estômago. Quem está em jejum fala do sonho como se falasse de dentro do sono.
Texto de Walter Benjamin. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1995

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Filosofando IV – O olhar de Walter Benjamin (1892 - 1940)

O pensamento de Benjamin é anárquico em sua constituição estrutural. Ele se distancia do ideal acadêmico, porque não se oferece pronto para ser digerido, ainda que seu porto seja o cotidiano, isto é, nas questões que têm origem no mundo ordinário do dia a dia. É neste ponto que situamos sua fonte de inspiração.

No seu estilo literário, os assuntos cotidianos aparecem esfacelados, como estampas desordenadas que encenam uma filosofia em aparente estilhaçamento, como rápidas visadas sobre um mundo de sons e imagens.

A mobilidade cinematográfica de seu olhar engendra um movimento no qual os fenômenos da vida cotidiana são desnudados como cenas fragmentadas e aparentemente fugazes. Interesse semelhante ao que se constata nos textos de Freud sobre a Psicopatologia da vida cotidiana.

Nessa forma muito própria, poderíamos dizer benjaminiana, de apreensão da vida privada, o olhar estético do cineasta se soma ao olhar clínico do psicanalista para dar atenção aos mais variados assuntos considerados irrelevantes. Como a moda, os livros infantis, os brinquedos, a propaganda, os jogos, os estilos dos espelhos, a fotografia, o comportamento das prostitutas...

A singularidade de Benjamin se sustenta na síntese que promove entre um olhar anacrônico, nostálgico, místico, voltado para o passado, que convive com o olhar que avança profeticamente para além de seu tempo na busca de apreender o movimento da sociedade e da história.

Sua obra denuncia a sociedade em que vivemos, fadada à repetição automática da mesmice disfarçada em novidade mercadológica. Ao desvelar a realidade, Benjamin valoriza a dupla potencialidade da linguagem, dada, de um lado, pela sensibilidade e, de outro, pela razão.

Para Benjamin cada situação fala por si mesma. Mostra sua forma de existência, e nesta exposição revela algo que a transcende. Isto se dá porque o particular para ele sempre comporta uma dimensão alegórica. O olhar alegórico nunca encerra um sentido único e universal, mas sim uma pluralidade deles. Essa liberdade de sentidos promovida pela multiplicidade aponta para uma ausência de sentido. Ausência triste, que vive em luto, e dá origem ao lúdico. Lúdico e luto, pluralidade e ausência, oposições que se mesclam, se fundem. Na linguagem alegórica de Benjamin, a imagem emerge da fusão dessas duas fontes antagônicas. A alegoria é fruto do acasalamento entre eterno e efêmero, continuidade e ruptura. Inspiração que brota do desejo de eternidade em confronto com o saber sobre o caráter precário da existência.

Na próxima postagem vou trazer um pequenino texto de Benjamin para que possamos ter contato com sua escrita sensível, com o charme acolhedor de seu estilo literário.