segunda-feira, 30 de junho de 2008

A repetição impossível

No texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud desperta nossa atenção para a ambivalência implicada nas relações fundamentais, donde a reciprocidade – o fato do outro fazer-se de objeto para o eu, e do eu fazer-se de objeto para o outro – é da ordem constitutiva.
Quanto à descoberta do objeto, Freud a relaciona à noção de realidade, uma vez que é fruto da fronteirização entre eu e não eu. Descoberta implicada em sua perda, dado que o reconhecimento do objeto e, portanto, da realidade, advém como conquista compensatória, efeito da elaboração da perda do objeto.
O objeto é apreendido na busca de um objeto perdido. Os encontros ulteriores com os objetos possíveis comportam em seu íntimo a aliança de um reencontro. Atualiza-se nesses encontros o ponto de ligação com as primeiras satisfações infantis.
Encontro que se firma no descompasso de um reencontro com esse objeto perdido na linha remota do tempo. Lacan qualifica essa relação como insígnia de uma repetição impossível. Em suas palavras:
(...) Uma nostalgia liga o sujeito ao objeto perdido, através da qual se exerce todo o esforço da busca. Ela marca a redescoberta do signo de uma repetição impossível, já que, precisamente este não é o mesmo objeto, não poderia sê-lo. A primazia dessa dialética coloca no centro da relação sujeito-objeto, uma tensão fundamental, que faz com que o que é procurado não seja procurado da mesma forma que o que será encontrado (Lacan, 1995, p. 13).

sexta-feira, 27 de junho de 2008

A paixão do significante

O simples fato de se dever falar deforma a intenção pré-lingüística. Em seu sentido imaginário, ou melhor, nos bastidores da expressão lingüística, o que se recebe é a própria mensagem, ditada pelo outro, sob uma forma invertida.
Esta inversão é o que faz do homem que fala, aquele através do qual isso fala. É essa torção da mensagem do sujeito que transmuda sua ação em sua paixão.
Especialmente após Lacan, essa paixão do significante se torna uma dimensão nova da condição humana. Foi ele quem melhor explicitou isto, que no homem e através dele, isso fala. A natureza do sujeito torna-se então tecida pelos efeitos onde se reencontra a estrutura da linguagem.
O sentido da cadeia significante não é determinado arbitrariamente pelo signo lingüístico nem pelos sentidos descritos nos dicionários, mas sim pela memória de todos os contextos incalculáveis que cada expressão percorreu na história de seus usos.
Como se comporta aqui a criança? Ela queria alguma coisa e lhe foi dado um símbolo, o qual representa uma coisa, mas efetivamente não é a coisa. O sujeito infans não atinge o objeto de sua necessidade tal como ele desejaria, mas pode aproximar-se, por rodeios, dessa coisa: o representante repele a coisa desejada, distancia-a. E nesse movimento, afasta igualmente o si do infans, que doravante não será mais o mesmo, mas sim, simbolicamente remetido a ele mesmo.
A reação a essa retirada fundamental do mundo e do si é o que Lacan chama de désir – o wunsch de Freud. Resposta do homem a sua inserção na ordem dos simples símbolos e dos representantes das realidades plenas. Reação a sua insatisfação constante e a sua infinita nostalgia.
A falta, o sentimento de não ter, inscreve-se então no desejo. Essa falta parece ser uma característica essencial da ordem simbólica, da ordem intersubjetiva da palavra.
A palavra, como elemento da ordem simbólica, transmite a necessidade de maneira verbal, quer dizer, simbólica, sob a forma de demanda. Deseja-se dizer alguma coisa, mas não é a coisa propriamente aquilo o que se diz.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Como a necessidade se exterioriza no significante

Quando o homem nasce ele existe sem linguagem, ele é infans (expressão latina que designa a criança como ser sem linguagem). O ser humano nasce prematuro e incompleto, absolutamente dependente de sua mãe, ou de outra pessoa. Exemplo único entre os mamíferos.
O bebê não articula suas necessidades, mas as exprime de modo desarticulado: grita e faz movimentos incontrolados. Sua mãe busca compreender, dar sentido a essas expressões, adivinhando de alguma maneira o que ele precisa ou quer, na tentativa de saciar suas necessidades.
Para ser compreendida por sua mãe, a criança aprendendo a falar deve exteriorizar sua necessidade no significante. Todavia, o significante é passado de boca em boca antes de poder servir à criança que dele precisa fazer uso para designar suas necessidades.
No Curso de lingüística geral preparado por Saussure, encontramos a seguinte passagem que atesta a precariedade do significante no que se refere a seu poder para encarnar a necessidade e mesmo o desejo.
Se, com relação à idéia que representa, o significante aparece como escolhido livremente, em compensação, com relação à comunidade lingüística que o emprega, não é livre: é imposto. Nunca se consulta a massa social nem o significante escolhido pela língua poderia ser substituído por outro. Este fato, que parece encerrar uma contradição, poderia ser chamado familiarmente de ‘a carta forçada’. Diz-se à língua: ‘Escolhe!’; mas acrescenta-se: ‘O signo será este, não outro’. Um indivíduo não somente seria incapaz, se quisesse, de modificar em algum ponto a escolha feita, como também a própria massa não pode exercer sua soberania sobre uma única palavra: está atada à língua tal qual é. (...) se se quiser demonstrar que a lei admitida numa coletividade é algo que se suporta e não uma regra livremente consentida, a língua é a que oferece a prova mais concludente disso (Saussure, F. 1995, p. 85).
O significante contém o sentido que os outros lhe deram e não precisamente aquele que a criança desejou dizer. Portanto, quando o sujeito se utiliza do ato da fala, ele o faz somente porque deseja dele se servir como um meio para enfim impor sua demanda. Esta seria a forma, agora tornada fala, como ele pode se aproximar de seu próprio sentir. A demanda seria assim o gritar e espernear do bebê, um pouco mais articulados.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

A relação primordial com o objeto

O bebê recém-nascido, ainda completamente dependente de sua mãe, não discrimina as sensações oriundas de seu próprio eu das demais sensações: seu existir indiscriminado corresponde a uma massa oceânica de sensações. A esse propósito Freud nos fala em O mal estar na cultura: (...) originalmente o eu inclui tudo; posteriormente, separa, de si mesmo, um mundo externo (Freud, S. 1930, p. 85).
A distinção das fontes de sensações, se elas têm ou não como sede o corpo do bebê, implica primeiro a percepção de que algumas fontes de sensações não estão disponíveis a qualquer tempo, dentre essas, o seio da mãe figura como a mais desejada, e se constitui como seu objeto sexual.
O momento de perda desse objeto cedível implica em poder discriminar a quem pertence o órgão, fonte plena de satisfação. Doravante, uma vez perdido esse objeto da pulsão oral, o interesse tornado auto-erótico, complexifica a relação com o objeto.
E a criança encena através de jogos incontáveis vezes repetidas com objetos disponíveis, tal como acontece na brincadeira do fort da, controlar o desaparecimento e retorno do objeto de seu desejo, a mãe. Significando dessa forma para si a renúncia pulsional a qual Freud faz alusão em Além do princípio de prazer, agora compensada pela realização cultural, (...) e não é senão depois de atravessado o período de latência que a relação original é restaurada (Freud S. 1905, p. 229).

terça-feira, 24 de junho de 2008

O sentido mítico da busca do objeto

Na terceira parte dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud aborda a questão do objeto, focalizando o processo psíquico de encontrar um objeto, que ocorre na puberdade. Sobre a possibilidade desse encontro Freud nos diz:
O encontro de um objeto é na realidade, um reencontro dele.
Mantida sob o escuro véu do desconhecido, a origem da sexualidade, como origem da vida, (...) faz remontar a origem de uma pulsão a uma necessidade de restaurar um estado anterior de coisas.
Freud inaugura seu debate sobre o objeto sexual tecendo comentários sobre o mito segundo o qual o ser uno dividiu-se em uma metade, homem; e outra metade, mulher. E, agora, essas duas metades buscam eternamente a união através do amor.
A palavra grega Eros provém do verbo érasthai, que significa estar inflamado de amor. Stricto sensu, diz respeito ao desejo incoercível dos sentidos. Na poesia mítica da Grécia antiga, em Hesíodo, memória da mais remota teogonia, Eros personifica a força fundamental do mundo, a coesão interna do cosmo, a garantia de continuidade das espécies.
Eros encarna o desejo irresistível de acasalamento que preside todos os seres. Eros nasce do Kháos, o qual personifica a profundidade insondável do vazio primordial, que antecede a toda criação, aos elementos responsáveis pela ordem universal. No Banquete, de Platão, Eros é o elo que une o todo a si mesmo e, assim, preenche o vazio.
Após o banquete em que se festejava o nascimento de Afrodite, em pleno jardim dos deuses, Eros foi concebido. Nasceu da união singular entre Póros (Expediente) e Penia (Pobreza). Graças a esse acasalamento tão diferente, Eros possui características definidas ao mesmo tempo que significativas. Como Pobreza ou Carência, está sempre em busca de seu objeto. Todavia, como Expediente, sabe bem como arquitetar um plano para atingir seu objetivo: a plenitude. Por isto, longe de ser um deus todo-poderoso, Eros se traduz como uma força, uma enérgueia, uma energia. E por conta dessa sua natureza díspar, Eros é perpetuamente insatisfeito e inquieto. Uma carência sempre em busca de plenitude; um sujeito em busca do objeto.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Filosofando VI - O dogmatismo da idade moderna

O Discurso do Método de René Descartes (1596/1650) constitui a pedra fundamental de uma revolução metodológica que traz conseqüências definitivas para a história do conhecimento. Expressa uma nova mentalidade para sua época – radicalmente racionalista, dando surgimento à filosofia moderna.
O cerne de sua elaboração sobre a razão encontra ecos no sistema filosófico de Sócrates e especialmente no pensamento de Platão. Proposta que coloca a questão do psiquismo humano no centro do interesse filosófico: exigência de construção de uma nova metodologia na qual o ser pensante torna-se senhor da natureza e de si mesmo.
A inovação de Descartes no campo do conhecimento reside na proposição dualística de sua dogmática, que revela a natureza da dualidade do homem. Esta formada pela química de duas substâncias independentes – res cogitans e res extensa: a primeira, indestrutível, capacita em superioridade indubitável o pensamento, privilégio exclusivamente humano; sendo a segunda, a matéria, submetida às leis da necessidade, da perenidade e da dúvida.
Na busca do pensamento puro, o cógito encontra a verdade na esfera do mundo físico, enquanto denúncia do fenômeno como pura aparência, ilusão, engano. É o predomínio da razão sobre o dado sensível, do poder do homem sobre a natureza, da capacidade de dominar-se a si mesmo.
A essencialidade incorpórea do espírito, apregoada por Descartes, se sustenta na filosofia de Platão: a alma é concebida como essência universal e imortal. Detentora da verdade, ela governa o corpo, e dele se distingue. Assim, segundo essa idéia, o psíquico funciona independente da vida material.
Contudo, um conflito ontológico se protagoniza no homem que vive tensionado entre a sedução da multiplicidade ilusória das paixões (da vida material) e o sentimento nostálgico da alma que nele habita, ressentido-se esta da perda circunstancial de sua eternidade – mundo das idéias puras - da verdade essencial de todas as coisas.
As últimas postagens giraram em torno de idéias que nos favorecem pensar sobre influências que compõem o cenário sócio-cultural do Ocidente. Nas próximas postagens dirigirei nossa atenção para temas que nos aproximam mais do sujeito e sua busca de objeto.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

O mal-estar na cultura

A sustentação da tese de que o Ocidente vive a ilusão de felicidade na proclamação da igualdade já há muito foi desenvolvida por Sigmund Freud, quando escreveu, em 1930, o magnífico trabalho sobre o mal-estar na cultura. Diz-nos Freud:
(...) o problema que temos pela frente é saber como livrar-se do maior estorvo à civilização – isto é, a inclinação, constitutiva dos seres humanos, para a agressividade mútua; por isto mesmo, estamos particularmente interessados naquela que é provavelmente a mais recente das ordens culturais do superego, o mandamento a amar ao próximo como a si mesmo. (...) É impossível cumprir esse mandamento; uma inflação tão enorme de amor só pode rebaixar seu valor, sem se livrar da dificuldade.
Nesse momento do texto, Freud está interessado em discutir a constituição do superego cultural, em compreender sobre que ideais está assentado e como este superego estabelece suas exigências.
Freud conclui com convicção que o estudo sobre os ideais da civilização deve levar em conta que os juízos de valor no homem são mutantes porque perseguem de perto os anseios por felicidade; configuram uma tentativa de apoiar, com argumentos, as ilusões.
O ideal da democracia celebra o princípio da igualdade (das capacidades, responsabilidades e possibilidades sociais) entre os homens e lança a seguinte fórmula – o crescimento é a abundância; a abundância é a democracia. Logo, precisamos lutar pelo crescimento material e econômico porque estes nos engrandecem aos olhos dos outros.
A democracia assim produz a transferência dos princípios idealistas que preconizam a igualdade e a fraternidade como mola propulsora de felicidade, para a realização dessa igualdade diante dos objetos e dos signos que proclamam o sucesso social como sinônimo de felicidade. Freud comenta a busca de controle e poder do homem sobre a natureza das coisas:
Essas coisas – que através de sua ciência e tecnologia, o homem fez surgir na Terra, (...) essas coisas não apenas soam como um conto de fadas, mas também constituem uma realização efetiva de todos – ou quase todos – os contos de fadas. (...) Há muito tempo atrás, ele formou uma concepção ideal de onipotência e onisciência que corporificou em seus deuses. (...) Hoje, ele se aproximou bastante da consecução desse ideal, ele próprio quase se tornou um deus. (...) O homem, por assim dizer, tornou-se uma espécie de ‘Deus de prótese’. (...) atualmente o homem não se sente feliz em seu papel de semelhante a Deus.
Ante a insatisfação inerente à existência do homem e sua busca incessante por possuir em abundância objetos utilitários, Freud reverencia a beleza, valorizando os objetos que entretém o sentido estético da existência; e conclama mesmo a nossa aproximação de coisas não lucrativas, sejam aquelas existentes na natureza, sejam aquelas criadas pelo próprio homem. Mas o que assistimos atualmente, ou melhor, o percurso ético ao qual teimamos a nos agarrar, parece apenas nos afastar cada vez mais dessa conquista estética a qual Freud nos convida.

A concepção transdisciplinar de Pierre Bourdieu

A produção transdisciplinar de Pierre Bourdieu abrange diversos domínios. Como insígnia de seu descompromisso com as fronteiras disciplinares, realiza pesquisas no âmbito da antropologia, sociologia, educação, história e literatura.
A fidelidade de Bourdieu à filosofia, sua primeira formação, se expressa nas suas indagações teórico/pragmáticas: busca na multiplicidade de procedimentos (estatística, entrevistas, testemunhos...) e no rigor de sua metodologia, aquilo que dota de fidedignidade o discurso filosófico e preserva estreita relação entre sociologia e etnologia.
Bourdieu articula o agente e a estrutura social; a situação de dominação que experimenta o agente em relação a suas raízes. A este tipo de conhecimento ele denomina de praxiológico, cujos objetos são as relações dialéticas entre as estruturas objetivas e as disposições estruturadas.
Ele propõe uma economia das práticas capaz de sustentar a abordagem fenomenológica e a estrutural num modo de pesquisa integrado, que insere as atividades do próprio analista, pois ainda que a sociedade contenha uma estrutura objetiva, esta é sempre fabricada. As interpretações dos agentes fazem parte da realidade do mundo social.
A filosofia de ação de Bourdieu é monista na medida em que não demarca externo e interno, consciente e inconsciente, corporal e discursivo. Ela busca apreender a intencionalidade sem intenção, a matriz pré-reflexiva, o infraconsciente do mundo social que os agentes adquirem por sua imersão.
Mas contrariando toda forma de monismo, Bourdieu proclama o primado das relações e propõe uma metodologia que afirma a prioridade ontológica da estrutura ou do agente. Esta perspectiva relacional lhe é dada pela tradição estruturalista, que se solidificou no pós-guerra.
Para construir essa teoria da prática que se sustenta na mediação entre sujeito e história, Bourdieu recupera a idéia de habitus extraída da escolástica que concebia o hábito como um modus operandi. O habitus se torna uma segunda dimensão do homem que orienta a ação; matriz de percepção, de apreciação e de ação, sendo habitus primário aquele característico de um grupo ou de uma classe e que está no princípio da constituição ulterior de todo outro habitus. Assim, a estrutura de um habitus anterior comanda o processo de estruturação de novos habitus. Contudo, esta noção não pode ser compreendida como costume repetitivo e mecânico, mas sim como relação ativa e criativa no mundo, que recusa os dualismos sujeito e objeto, interior e exterior, material e espiritual, indivíduo e sociedade.
O habitus é um mecanismo estruturante que opera no interior dos agentes; é o gerador das estratégias que permite aos agentes afrontar as situações. A história do indivíduo se desenrola como uma variante estrutural do habitus de seu grupo e classe. O estilo pessoal é um desvio em relação ao estilo de uma época, uma classe ou grupo social. Falar de habitus significa entender o individual, o pessoal e o subjetivo como social, como coletivo. Porque o habitus exprime a subjetividade socializada.
A relação entre o habitus e o campo é estrutural: o campo estrutura o habitus que é produto da incorporação da necessidade imanente do campo. O habitus contribui para constituir o campo como mundo significante, dotado de sentido e de valor. Mas esta relação de conhecimento depende da relação estrutural que a precede.
Os dois conceitos de habitus e campo funcionam em reciprocidade. Um campo não é uma estrutura morta ou um sistema de lugares vazios. Existe a ação e a história, tanto na direção da conservação, quanto na direção da transformação, uma vez que Bourdieu considera o agente dotado de um conjunto de disposições que o equipa de propensão e de capacidade para entrar no jogo e jogar.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

O mundo globalizado

As rápidas modificações tecnológicas e a explosão globalizada das identidades e dos bens de consumo tornaram tênues as fronteiras do nacional em contraste com o exterior. Trata-se aqui das fronteiras entre o que hoje se considera alheio em diferença opositiva ao que se considera próprio.
Quais parâmetros guiam nossa percepção na identificação daquilo que nos diferencia dos demais?
Antes, podia-se diferenciar uma nação por seu enraizamento territorial e por sua inclinação industrial, o que lhe dotava de certa hegemonia a ser preservada como valor de propriedade e de distinção. Atualmente esses limites são configurados pelo poder de consumo, por aquilo que se possui ou que se pode chegar a possuir.
Fala-se hoje da cultura como um processo de montagem multinacional, em que se identificam traços diversificados que podem ser traduzidos por qualquer pessoa. O antropólogo Néstor Canclini, que estuda a realidade da América Latina comparando-a com as peculiaridades do primeiro mundo, nos brinda com o seguinte exemplo: hoje, “compramos um carro Ford, montado na Espanha, com vidros feitos no Canadá, carburador italiano, radiador austríaco, cilindros e bateria ingleses e eixo de transmissão francês”.
Canclini admite que a globalização se tornou um processo irreversível que atesta a racionalidade econômica dos nossos dias, mas defende a idéia de que o global não substitui o local, e considera que o modelo neoliberal não pode ser encarado como a única opção disponível no mundo.
As discussões de Clanclini nos reaproximam das teses marxistas. Ele chama a atenção, por exemplo, para problemas que envolvem a participação dos trabalhadores nas decisões empresariais e sindicais. Não dá para negar que, aumentadas enormemente as distancias espaciais entre as partes envolvidas nas negociações sindicais, e desconhecido o ponto central de onde partem as decisões da direção empresarial, as negociações tornaram-se quase impossíveis de serem realizadas.
Quando pensamos no processo alienante da sociedade de consumo, sutil, civilizado, e por isto mesmo mais complexo e eficiente, nos perguntamos como é possível escapar à sedução, aos apelos enganosos de um capitalismo muito mais maleável do que pôde supor seu principal crítico, Karl Marx.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Filosofando V - O berço da psique e do eu

Na Grécia primitiva, reino do pensamento animista, a idéia de alma estava associada a experiências fundamentais como vida e morte. Significava uma obscura tomada de consciência pelo homem de seu estar no mundo. A alma estava relacionada à força misteriosa da vida animal e humana, cuja existência acreditava-se poder ser apreendida nas atividades vitais da respiração e do sangramento.
O conceito de natureza concebido nessa época tem origem na constituição espiritual do homem. Mas mesmo antes dessa idéia ter surgido, em sua pré-história, as coisas do mundo eram percebidas numa perspectiva orgânica, na qual cada parte formava um todo. Havia sempre a idéia de uma totalidade ordenada e viva que tudo presidia e a tudo dotava de sentido.
Os poemas homéricos retratam um mundo de heróis: homens fortes que buscavam a felicidade no prazer e na ação, e viam na coragem o sentido ético da existência. O homem homérico amava acima de tudo a vida. Consciente de sua força e de sua ação ativa, este homem lamenta como nenhum outro sua morte – a vida perdida, sina para a qual não havia consolo possível. Na morte, a alma (da natureza do vento) abandonava o corpo em direção ao Hades.
Mas os sofrimentos do homem, suas lamentações sobre a fugacidade da vida e dos prazeres sensitivos que se faz notar na poesia posterior a Homero, denotam sentimentos que revelam a importância da vida individual. Há na poesia pós-homérica o desenvolvimento do conteúdo do pensamento seja como exigência normativa do social, seja como expressão do indivíduo. Esse tipo de poesia apresentava reflexões filosóficas e separava-se ou mesmo abandonava o mito, outrora sempre presente na epopéia.
A poesia jônica revela uma recém descoberta: o eu, mais intimamente relacionado à totalidade do mundo, à natureza e à sociedade do que hoje o concebemos; nunca eu como entidade separada e solitária, de tal modo que as manifestações da subjetividade não são exclusivamente subjetivas; porque o eu individual exprimia e representava em si a totalidade do mundo objetivo e suas leis.
Com o surgimento da especulação racional alimentada pelos pensadores jônicos, tem lugar um desacordo entre alma e corpo: a alma é da ordem do místico e do sagrado, procedente do Além, ao passo que o corpo é apenas expressão do aprisionamento da alma no mundo. Nostálgica e encerrada num corpo destituído de sentido, a alma buscava emoções de plenitude nos cultos a Dioniso. Rituais regados a vinhos, sons e danças frenéticas, que culminavam em transes de êxtase por seus participantes - momentos em que a alma se revelava a si mesma.
A tragédia floresce no momento em que o heroísmo cede lugar ao conhecimento reflexivo e sensitivo. Alimenta-se das raízes do espírito grego para expressar um heroísmo mais interior, estreitamente traçado no mito e na forma de ser que dele advém. Na tragédia, a poesia grega volta a abranger a unidade do humano – força estruturadora e espírito criador – aproximando-se por esse viés da poesia homérica. Gênero pleno de simbolismos, a tragédia configurava uma nova intuição da totalidade da existência; surgi pari passu a transformações nas aspirações e na ordenação da vida social.
O início da história grega se funda no sentimento da dignidade humana. Surge como princípio da valoração do homem, não de seu eu subjetivo, individual, autônomo, mas sim de um eu consciente das leis gerais que o determinam, reflexo de uma imagem genérica, universal e normativa do homem.