segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

I Congresso Internacional de Linguística


O I Congresso Internacional de Linguística, realizado em Haia no ano de 1928, teve o objetivo de destacar o ensino de Saussure, o qual percebia a língua como um sistema.

Reuniram-se no congresso os russos Jakobson, Karcevski, Troubetzkoy, e os genebrinos Bally e Sèchehaye.

Foi nesse congresso que Jakobson empregou pela primeira vez o termo estruturalismo.

Como se vê, Moscou e Genebra constituíram o alicerce de sustentação do programa estruturalista.

A proposta de Saussure contemplava, em síntese, os requisitos do paradigma estruturalista: a abordagem descritiva, a prevalência do sistema, a preocupação em explicitar as unidades elementares a partir de procedimentos construídos e a ênfase concedida ao analogismo em detrimento do evolucionismo.

Estas categorias, valorizadas por Saussure, servirão de instrumento ao estruturalismo.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

O pai do estruturalismo

Ferdinand de Saussure é considerado o fundador do estruturalismo.

Este movimento deve tudo ao desenvolvimento da lingüística por ele iniciado. Mas não podemos deixar de mencionar que a noção de arbitrário do signo preexistia a Saussure.

Conta-se que Platão formulou o problema da relação entre os nomes e as coisas, apresentando a força de duas versões opositoras: natureza e cultura.

Hermógenes defendeu a ideia de que os nomes atribuídos às coisas são arbitrariamente escolhidos pela cultura, enquanto Crátilos defendeu a proposição de que os nomes são decalques da natureza, concentrando assim a explicação no âmbito natural.

Saussure decifrou o enigma dando razão a Hermógenes.

Os ensinamentos de Saussure foram orais, transmitidos no Curso de Linguistica Geral que ministrou entre 1907-1911.

O Curso foi publicado em 1915 por dois de seus alunos, também professores em Genebra, Charles Bally e Albert Sèchehaye.

No curso, Saussure fundamentou o arbitrário do signo, demonstrando que a língua integra um sistema de valores ordenado por diferenças puras.

A língua é colocada no lado da abstração contra toda forma de empirismo.

A lingüística que Saussure propõe se organiza conforme regras próprias - é um sistema.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Estruturalismo é uma forma de linguagem

A linguagem não apresenta a realidade de uma maneira imediata e neutra. Ela cria uma forma convencional, cultural e histórica que nos reenvia à realidade.

O estruturalismo consiste, ele mesmo, numa forma de linguagem.

Para o estruturalista, tudo existe na dimensão do discurso. Portanto, não é válido imaginar a existência de uma realidade extralingüística.

O acesso à realidade somente é possível através da experiência lingüística. Por isto, podemos afirmar que toda relação que estabelecemos com a realidade é significativa.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

A construção do objeto

Por estruturalismo entendemos a exigência de um rigor na forma de captação do mundo ou de uma dada realidade.

Embora não seja uma doutrina filosófica, também não pode ser entendido apenas como um método.

De fato, é mais que um método e menos que uma filosofia.

Melhor seria caracterizá-lo como um sistema de pensamento que adota o rigor do modelo linguístico tal como proposto por Ferdinand de Saussure.

Porque, vale lembrar, a lingüística é a ciência da estrutura, por excelência.

Estruturalismo designa, antes de tudo, um lugar teórico, um ponto de convergência de múltiplas atividades, que não apresentam coerência entre si nem buscam unicidade.

Para Saussure, o objeto não precede o ponto de vista, antes, é o ponto de vista que cria o objeto.

Estruturalismo é uma atividade em que se regula um determinado número de operações mentais que visa à reconstituição de um objeto.

Operações, das quais o homem não está ausente. Mas se insere inteiro, com sua história e visão de mundo, inscrevendo suas possibilidades e impossibilidades.

Esta marca humana renova o objeto, adiciona a ele o novo que consiste no próprio homem.

O que implica dizer que nunca se apreende o real em si, mas apenas a parcela humanizada dele.

O que está em jogo na apreensão, não é propriamente a competência ou não que temos de nos apropriar do mundo, mas a capacidade que temos de fabricá-lo, de criá-lo.

E esta criação abrange a inscrição do homem.

Por isto podemos afirmar que não há um homem que observa o mundo e dele extrai impressões.

Há o mundo, e neste se inclui o homem que o criou.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A força da palavra estrutura

O que significa estrutura?

Originada do latim strutura, em sentido lato quer dizer a disposição e ordem das partes de um todo.

A ampliação do termo engloba a maneira como as partes de um todo se organizam numa totalidade. Entende-se como todo, qualquer substância, corpo vivo ou discurso.

Todo, pode se referir a uma obra literária, a uma obra musical, a uma construção capaz de suportar cargas ou a um organismo vivo.

O termo adquiriu adesão em diversas disciplinas, como anatomia, psicologia, geologia, matemática...

No entanto, é na arquitetura que encontramos o berço do sentido, que designa a maneira como o edifício está construído.

Impossível se encontrar definição mais precisa do que esta.

Em suma, estrutura é aquilo que revela a análise interna de uma totalidade: elementos, relações entre elementos e o sistema dessas relações.

Em outras palavras, refere-se a um tipo de análise que dá acesso ao esqueleto do objeto, para que nele se produza a distinção entre aquilo que se considera essencial, daquilo que se considera acessório.

Na verdade, a noção de estrutura sempre existiu ainda que sob outras designações, tais como: essência, forma, figura, conjunto, totalidade, organismo, sistema ou visão de mundo.

A palavra estrutura tem a idade da ciência e da filosofia ocidental.

Trata-se de um termo antigo, que se banalizou pelo uso indiscriminado, cuja mera utilização não caracteriza nada, ou seja, não indica compromisso ou filiação a qualquer disciplina do conhecimento.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O que é estrutura?

A etimologia nos oferece uma imagem. Estrutura seria o plano segundo o qual o objeto é construído.

Este plano, uma vez construído e reproduzido em abstrato, pode ser reconhecido em outras totalidades.

Nesta definição, vislumbramos o ponto de ligação entre estrutura e método comparativo.

A estrutura, sendo comum a diferentes realidades, permite-nos o exercício da comparação.

Toda vez que falamos de relações estruturais nos referimos a relações fundamentais.

Podemos ampliar a acepção da palavra estrutura e dizer que tudo o que existe, se não for inteiramente amorfo, possui uma estrutura.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O uso da palavra estrutura na psicanálise

Toda vez que a palavra estrutura aparece no discurso psicanalítico, eu me pergunto se ao utilizá-la o usuário está ciente da carga conceitual, filosófica e histórica que ela contém.

Isto porque observo na minha prática, junto aos grupos que frequento e em diferentes transmissões das quais participo, que a palavra estrutura (e derivativos) integra o vocabulário corrente praticado neste campo.

Falar sobre a estrutura significa admitir o fascínio que esta noção exerceu, a exigência de rigor que imprimiu mudanças substanciais nas ciências humanas, e a força da influência ativa que ainda exerce, apesar das críticas – de um logicismo exacerbado e ou de menosprezo às teses humanistas.

Persiste a impressão de que esta palavra, atualmente muito desgastada, aparece na fala do psicanalista dissociada do discurso que lhe garantiu a identidade conceitual necessária para seu reconhecimento.

Como se a estrutura aparecesse agora nas falas envergonhada de seu parentesco com o movimento estruturalista.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A experiência analítica e sua direção

Na configuração do campo analítico, a transferência é o instrumento mais precioso da técnica que o psicanalista utiliza.

A existência etérea da transferência torna seu manejo particular. É essa qualidade impalpável e não generalizável que singulariza o trabalho do psicanalista: o define e o diferencia.

Define, porque situa e circunscreve o campo da análise, e particulariza a intervenção como irrepetível; diferencia, porque conota a abordagem com uma qualidade precisa, diferente dos demais profissionais.

Como uma bússola, a transferência não revela tudo, mas aponta o essencial para que certa direção seja perseguida no percurso da análise.

O temo transferência, numa acepção ampla, comporta a idéia de transporte, deslocamento, substituição. Em psicanálise, inferimos a existência de uma lógica inclusiva na própria afirmação que define o que é uma análise: não existe experiência analítica distinta da experiência transferencial.

Freud e seus seguidores fizeram uso do termo para nomear o processo no qual os desejos inconscientes referentes a objetos passam a se repetir no espaço analítico, sendo o analista colocado na posição desses objetos.

Lacan reformulou essa noção clássica e posicionou a transferência na relação entre o eu e o Outro. A transferência é aquilo que estrutura a relação ao Outro que é o analista. Todos os pensamentos que orbitam essa relação se revestem de um signo particular.

Freud afirma que o manejo da transferência é a dificuldade mais séria que o psicanalista enfrenta. Ele coloca em questão a autenticidade do amor na transferência. A exigência de amor aparece no trabalho analítico como expressão da resistência.

Propõe, como princípio, que esse anseio do paciente sirva para conduzi-lo a trabalhar analiticamente e a realizar mudanças, colocando o amor transferencial a serviço do trabalho analítico.

O amor atualiza antigas características, reedita protótipos infantis. O amor transferencial não foge a esse padrão. Ao contrário, exibe com intensidade ainda maior esse tipo de dependência.

Lacan amplia o debate: o desejo do analista é aquilo que revela a verdade do amor transferencial.
A transferência é tecida com os mesmos fios que tecem o amor. O amor transferencial é um artifício; um objeto que reflete outro.

A transferência é compreendida por Lacan como um engano. O analista ocupa o lugar do sujeito suposto saber, ao qual se atribui, como efeito da transferência, saber absoluto.

O que está em jogo aqui é a relação entre saber e amor.

O analisando transfere ao analista o seu saber. Contudo, a operação de transferência só se realiza no âmbito de uma demanda de amor.

Para Lacan, a transferência encena a própria realidade inconsciente.

Ele radicaliza essa idéia, ao dizer que a presença do analista é uma manifestação do inconsciente.

Seguindo essa formulação, somos convidados a ter acesso ao movimento do sujeito – o abrir e fechar, o contrair e expandir – que constitui a pulsação temporal desse movimento.

A presença do analista sustenta o conflito. E sua intervenção promove a manutenção do drama inicial – sua repetição.

A transferência permite o acesso à indeterminação do sujeito, atingindo o ponto primário do inconsciente.

Freud nos indica: transferência é resistência. Se nos fixarmos diante desse paradoxo - via de acesso e também ponto onde se interrompe a comunicação - apreendemos a natureza ambígua da função da transferência.

O analista acredita na força do conflito – onde há recalque, há algo que impulsiona – essa mola, quanto tocada, repete o ir e vir, o movimento essencial do conflito que se atualiza na clínica.

Ao acompanhar a trilha aberta no território beligerante, nos deparamos com o movimento pulsional, motor da atividade psíquica, que nomeamos como pulsão.

A pulsão carrega consigo um enigma. Ela marca a falta e a fragilidade do humano.

Marca a busca errante do homem e nos revela sua natureza vulnerável.

A pulsão contorna o vazio e em torno dele borda sua linha. Daí a variação de seu objeto: qualquer objeto serve; nenhum objeto serve.

Na análise, a transferência funciona como a antena que permite à pulsão emitir seus sinais, expressar sua potência. Posicionados no lugar que a transferência nos confere, podemos acompanhar a mobilidade constante da pulsão, sua flagrante inquietude.

Esta Postagem divulga a introdução de um trabalho, no qual foram apresentados e analisados quatro fragmentos clínicos, que não foram abordados aqui por motivos óbvios referentes ao sigilo clínico.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A magia da produção analítica

Rui estava dominado por uma sensação de atraso. Tinha a urgente necessidade de atualizar a experiência. Como era muito crítico, por vezes se atormentava com o sentimento de que iniciara tardiamente sua análise, assim como tudo o mais, pois demorava muito tempo para se decidir a fazer algo, a assumir um projeto, qualquer que fosse ele.

Sabia que tendia a retardar a conquista das coisas que desejava.

Temia ser surpreendido por um amigo que apresentasse repentinamente uma mudança de rumo; alguém que tivesse um projeto não revelado, o qual seria exposto apenas no momento de ser posto em prática.

Rui se lembrou de uma situação: um amigo muito próximo um dia lhe disse que ia viajar para fora do país, ia estudar no exterior. Quando o amigo lhe revelou a viagem, tudo já estava arranjado. Vinha se preparando para estudar e morar fora do país e nada lhe dissera. Rui não suspeitara que seu amigo tivesse planejando algo, que ele tivesse um plano em plena ação.

E se demorava a enumerar quantas coisas foram arranjadas com o objetivo de concretizar tal projeto, como a decisão de estudar no exterior, a pesquisa sobre lugares, professores, orientadores, a busca e a conquista da bolsa de estudos. Rui se perdia em detalhes, remoendo a deslealdade e a perda do amigo.

A traição se instalara como tema recorrente na fala dele.

Era como se ao redor as pessoas tivessem elaborando projetos às escondidas. Pessoas que agiam como se nada tivesse acontecendo.

Que coisas Rui projetava e amadurecia secretamente, longe da revelação analítica?

Por outro lado, que cartas eu poderia ter sob a manga para surpreendê-lo de uma hora para a outra tão negativamente?

Rondávamos ainda a questão da confiança? Ah, essa taça de cristal...

Creio que estávamos mais adiante. Já fertilizado, o solo transferencial em que delicadamente pisávamos guardava vasta extensão indizível, onde algo secretamente era cultivado, produzido, elaborado, inventado.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Um lugar para chamar de seu

Rui terminou o curso superior. Surpreendeu-se com o fato de que conseguira se inserir rapidamente no mercado de trabalho. Achou que nem tivera tempo para refletir se deveria aceitar ou não a proposta que lhe fora oferecida.

Como não tinha experiência no ramo que a empresa lhe oferecia, decidiu aceitar, deixando para trás o campo onde estagiara durante boa parte do curso.

Não sabia dizer se esta escolha havia sido acertada. Deixou um trabalho que apreciava e conhecia muito bem por outro desconhecido. Temia ser um equívoco a opção que assumira. Queria uma garantia para sua escolha. Não podia perder mais tempo ainda, caso ela não fosse a mais acertada.

Como fosse possível atestar-se e garantir-se o desconhecido, o futuro, o improvável...

Era-lhe inconcebível a idéia de voltar atrás e recomeçar tudo novamente. O trabalho atual, que aceitara, não lhe dava tanto prazer quanto o anterior. Queixava-se agora da falta de autoria que ele implicava. Gostaria de fazer alguma coisa em que sua obra tivesse evidência.

Daí instalou-se o conflito: a sorte que teve de arrumar um emprego pelo qual não precisara lutar e o prazer incompleto que ele proporcionava.

Vez por outra o trabalho aparecia nas sessões com essa marca ambígua: algo que conquistou sem empreender grande esforço, daí se considerar uma pessoa de sorte, mas que não cativava, pois o obrigava a se dedicar a algo que não sabia se queria.

Sem dúvida tratava-se de alguém que apreciava os desafios. Como o que é fácil não gera prazer, o sujeito mergulha na rotina, na insatisfação da tarefa, e perde as pegadas de uma possível obra, de uma possível originalidade, de uma possível autoria.

Buscou então se concentrar num objetivo: aprender com a experiência de trabalho. Mas essa tática com o tempo não se mostrou produtiva; não deu grandes resultados.

Sua reclamação incidia agora no fato de que precisava se esforçar para assimilar algo que não sabia se desejava dar continuidade.

Oscilava entre ficar ou sair do trabalho. Ficar ou sair do trabalho de análise? Começava a se esboçar a expectativa de produzir um projeto para si mesmo. Espantava-se, no entanto, com a falta de um projeto propriamente.

Era preciso antes desbravar um lugar. Início de um reconhecimento sobre a falta de lugar. Um trabalho de construção começava a se insinuar. Como toda boa construção, antes seria preciso cavar o solo para que uma fundação pudesse se sustentar.

Um lugar subjetivo começava a ser delineado. Se havia a vontade genuina de uma autoria, é porque havia a queixa quanto ao texto que faltava. Era preciso ser produzido. Pois se o autor concebe e escreve o texto;  é o texto que constrói o autor.

A cada sessão um texto é escrito. Para a riqueza dos incontáveis textos a serem produzidos, vale deixar fluir as palavras; dar liberdade ao ritmo que se imprime a elas a cada momento. No compasso da livre associação, é a escrita subjetiva que se refina a cada sessão.

Dentro em breve Rui poderia fincar a bandeira no território que ele queria inteiramente seu.

terça-feira, 20 de julho de 2010

O pai

Rui mora com o pai. Os dois são muito próximos. É, porém, uma relação quase sem palavras. Não conversam. Falam apenas o essencial.
Certa vez, rememora, o pai levou-o à banca de jornal para comprar figurinhas. Ele queria tanto possuí-las, mas nunca tinha pedido, sequer passado pela sua cabeça expressar essa vontade. O pai agiu como um adivinho.
Seguem ambos nesse jogo amistoso sem palavras. Conduzem-se um ao outro pela vida, quase melancólicos. Um pai integralmente dedicado; um filho inteiramente endividado com o pai que deposita nele toda a sua esperança.
Rui expressa a pressão que essa dívida exerce sobre ele. Sente-se comprometido com o futuro. Ele tem que dar certo. Ele sente que está dando certo. Sua juventude transcorreu sem grandes atropelos, cursou a universidade, conseguiu bom estágio e emprego.
Não foi fácil para Rui revelar sua história com o pai. Envergonha-se dele ser um homem humilde, não tem um projeto de vida propriamente, vive entregue à tarefa de bem servir a outros.
Um pai incapaz de laçar com audácia seus desejos e de reconhecê-los.
Rui deseja viver sua própria vida. Namorar, morar só, ser independente...
Como deixar esse pai que vive exclusivamente devotado a ele? Um pai que nunca o abandonou.
Um pai socialmente pobre, sem projetos e palavras; um sujeito com poucos recursos, que soube desempenhar da melhor forma sua função de pai. Um pai provedor, que mantém o excesso materno de dedicar-se incondicionalmente ao filho. Alimentando-o, educando-o, presenteando-o.
Um pai que não foge da luta e enfrenta os pesados encargos de sua função.
Ora, esse pai encarna boa medida da fortaleza do pai simbólico.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

O pai: um rival admirado e invejado

Rui preserva uma imagem muito idealizada da namorada. Amanda é para ele como uma mestra querida. É ela quem o inicia no maravilhoso mundo das idéias.
Ela é vista por ele como uma expositora desenvolta e segura, capaz de solucionar intrincados enigmas.
Ao contrário de Rui, ela é independente, mora sozinha...
Amanda é a mulher perfeita.
O pai dela aparece na fala de Rui como um homem sábio; um pai fascinante que exerce sobre a filha enorme poder de influência; um pai que tem o que dar à Amanda.
Um pai que se apresenta ante aos olhos dele como indubitavelmente forte; um pai poderoso.
Rui admira a vida de Amanda, o pai que ela tem.
E inveja a vida intelectual e material que aquele pai é capaz de oferecer.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

A desconfiança e o ciúme

Tudo vai bem para Rui, desde que esteja a sós com Amanda. O que o incomoda é o risco de abandono de todo o resto que o encontro deles implica. Essa situação se torna insustentável quando eventualmente saem com amigos.
Não raro Rui esboça comportamentos desconcertantes nessas ocasiões. Não sabe como agir. Então, torna-se taciturno e ensimesmado.
Intimidado, mantém-se em excessiva reserva. Não participa das conversas com naturalidade. Fica distante, apático, distraído.
Não se sente à vontade com ela na frente de outras pessoas. Sente ciúmes incontroláveis. Acha que Amanda está sendo paquerada na sua frente. Queixa-se de não controlar os sentimentos dela.
Não sabe quando será abandonado por ela, isto lhe parece ser apenas uma questão de tempo. A qualquer momento Amanda poderá encontrar outro homem por quem se encantará. Tortura-lhe essa certeza – da traição. Quer de novo sua mulher exclusivamente para si.
Quando voltam para casa, conversam sobre o que acontece. Invariavelmente Rui se sente arrependido. Ansioso e culpado, ele necessita da compreensão dela.
Então pede desculpas, promete se redimir e sofre porque sabe que esse comportamento, que insiste, ameaça a continuidade da relação que tanto preza.
Daí, ele a cobre de mimos e de atenção. E, quanto mais solícito se torna, mais se sente submisso e dependente dela.
Angustia-se ante a provável e até mesmo inevitável perda de Amanda. Ele precisa de justificativas, nem sempre convincentes, para as dificuldades no relacionamento social e para os seus ciúmes infundados.
Amanda não suporta mais as desconfianças de Rui, de sempre imaginar que ela está interessada em outro. E esse outro o acossa.
Quando estão em grupo, é ele quem denuncia, com um comportamento inconformado, o par perfeito que eles ensaiam formar, jogando para escanteio a presença ameaçadora do Outro à cumplicidade primitiva que ambos adoram manter.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

A mulher ideal

Rui e Amanda voltaram a namorar recentemente. Ainda se gostam muito. A relação flui com intensidade, expressa nos papos intermináveis que varam a noite e no encontro alquímico da boa interação sexual.
A intimidade entre eles é completa quando estão a sós. O que os leva a prescindir da presença de outras pessoas. Eles se bastam, é o que lhes parece.
Contudo, Rui estranha sua falta de energia para fazer outras coisas. Reclama que está cada dia mais preguiçoso, improdutivo e que se isola de tudo.
Está seduzido pela imagem ilusória dessa relação dual perfeita; cooptado, atraído pela beleza oceânica desse encontro perfeito entre duas metades que se aninham e se fundem.
Freud nos lembra:
A mãe é o primeiro objeto de amor da criança.

A palavra amor, aqui, se refere ao aspecto mental da pulsão, pois quando a mãe se torna o objeto de amor da criança o trabalho psíquico do recalque já se instalou.
Há que se considerar a complexidade do processo em questão no reencontro do objeto.
No período anterior à puberdade, o objeto encontrado é quase idêntico ao primeiro objeto de prazer, a mãe.
E vincula-se a essa escolha tudo o que se entende sob o nome de complexo de Édipo.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Confiar ou não confiar

Rui – que significa rei – é o nome fictício que usarei ao apresentar fragmentos de construções clínicas, cujo personagem central seja masculino. É também uma homenagem a ‘sua majestade o bebê’, expressão usada por Freud ao falar do narcisismo presente em nossa tenra infância. Afinal, a análise é recheada de momentos em que o sujeito se mira em sua imagem especular.
Desde o início Rui trouxe-me a imagem de Édipo: uma criança abandonada que se deseja acolher; um ser em busca de refúgio; um andarilho imerso na ignorância de seu infortúnio que se põe em fuga... do imponderável.
Ele fora avisado à noite da entrevista marcada comigo para a manhã do dia seguinte. Chega meio intrigado e se revela surpreso com a consulta. Percebe-se sem chances, insinuando assim sua impossibilidade de escapar, como se estivesse sendo obrigado a realizá-la e não que ela fosse fruto de sua livre escolha ao procurar-me.
Não obstante, estava ali diante de mim formulando sua primeira queixa: via-se vítima de um telefonema que o deixara sem escolha.
Seu questionamento inicial, em que se revela sua contradição – de se sentir sem escolha, submisso à ordem do Outro, movimento em que esconde seu desejo - retornará muitas outras vezes.
Rui fala da sua falta de jeito para iniciar a análise. Não está acostumado a falar, ainda mais sendo ele o assunto, por outro lado expressa sua dificuldade para se comunicar com as pessoas. Por fim, mostra-se curioso sobre como seria falar de si mesmo.
Conta-me sobre seu hábito de desenhar num caderno, companheiro inseparável – um objeto transicional - a quem confidencia o que lhe sucede. No caderno compõe um diário de imagens sobre suas impressões e emoções do dia.
Mostra-me o caderno. Trouxe-o a mim como uma radiografia das imagens que percorrem seu imaginário. Vejo desenhos, colagens, signos de sua arte particular para evocar experiências, ponte para seu isolamento, refúgio para se evadir do presente.
Havia tropeços na sua chegada, errava o ponto em que devia saltar, o que o obrigava a andar mais e a se atrasar. Sua resistência cedeu mais quando pôde expressar a necessidade que sentia de confiar.
Rui precisava acreditar em alguém para poder revelar coisas que o afligiam. Aflorava nele a certeza de que precisava de ajuda para enfrentar suas dificuldades. Angustiava-o justo sua impossibilidade de confiar.
Qual seria a origem dessa impossibilidade?

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Édipo: símbolo da revelação

Em todo longo percurso da obra freudiana, a figura de Édipo paira como o símbolo de uma grande revelação: do desejo incestuoso da criança. Na imaginação para sempre infantil, somos como o antigo herói Édipo.

A primeira escolha amorosa do homem é, portanto, incestuosa. E essa escolha necessita de severas proibições, por parte da cultura, para que se impeça que ela se realize.
Édipo simboliza o inconsciente que nos aparece travestido de destino. Ao focalizarmos a questão do Édipo sob o ponto de vista do complexo – de Édipo – remetemo-nos à soberania da clínica, a qual incide sobre os romances familiares em todas as suas facetas.
Classicamente, o complexo de Édipo está relacionado à fase fálica da sexualidade infantil: quando a criança experimenta sensações voluptuosas em relação à mãe.
Apaixonada pela mãe, a criança a quer inteiramente para si, colocando-se nesse particular como rival do pai, a quem admira, embora não deixe de sentir sua presença como um obstáculo a seu desejo em relação à mãe.
Reagimos ao sentido secreto da lenda de Édipo, como se tivéssemos reconhecido o complexo de Édipo em nós mesmos, como se fossemos compelidos a recordar os dois desejos – o de eliminar o pai e desposar a mãe – e, ao mesmo tempo, nos horrorizamos com eles.
A responsabilidade sobre esses impulsos pulsionais recalcados reaparece sob a forma de sentimento de culpa.
Que ajuda proporciona a análise no que concerne ao complexo de Édipo?
A análise confirma tudo o que a lenda descreve e mostra que cada um de nós tende a repetir de alguma maneira o drama de Édipo.
Na puberdade, quando as pulsões sexuais fazem suas exigências, os objetos incestuosos familiares são retomados e investidos com a libido.
Nesse período se desenrolam intensos processos emocionais que seguem a direção do complexo de Édipo ou reagem contra ele.
O jovem é então convocado a se desvincular de seus pais. E enquanto essa tarefa não for cumprida ele não pode deixar de ser uma criança.
Para o filho, a tarefa de se tornar emocionalmente independente dos pais implica no desligamento de seus desejos libidinais dirigidos à mãe, para empregá-los na escolha de outro objeto amoroso.
Algumas vezes o jovem não chega a nenhuma solução do conflito edípico, permanecendo subjugado à autoridade do pai e incapaz de transferir sua libido a outro objeto de amor.
Quando se forma um nó no romance familiar, marca essencial do impasse afetivo, consideramos que o complexo de Édipo se cristaliza como o núcleo da neurose propriamente dita.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

A lenda de Édipo

Todos nós conhecemos a lenda de Édipo e seus antecedentes que serviram de inspiração a Sófocles. Para abrir este assunto que versará sobre questões clínicas, escolhi relembrar o mito por considerá-lo o romance primordial do destino do homem que a clínica busca re-significar.

Laio, príncipe de Tebas, ainda criança, é exilado na Frigia, corte do rei Pélope, quando Tebas foi tomada pelos tiranos Anfião e Zeto, após a morte de seu pai Lábdaco, rei de Tebas, o qual fora morto por bacantes como ato de vingança à repressão imposta por ele ao tradicional culto a Dionísio.
Durante sua estada na Frigia, Laio enamora-se de Crisipo, filho de Pélope. Para viver seu amor, rapta Crisipo e foge para Tebas, pois pretendia recuperar o trono de seu pai.
Furioso, Pélope persegue-os. Crisipo, temendo a humilhação e a punição do pai, comete suicídio. O rei culpa Laio por ter perdido o filho primogênito e lança sobre ele uma maldição: se tivesse um filho, seria morto pelo próprio e sua descendência sofreria conseqüências trágicas.
Laio continua vivendo em Tebas, conhece Jocasta e se casa com ela. Após a morte dos tiranos Anfião e Zeto, Laio é chamado pelos cidadãos a assumir o trono. Assim consegue reconduzir a dinastia de seu pai ao poder.
Mas temendo a maldição, Laio tenta evitar ter filhos. Quando nasce o primogênito entrega a criança a um criado para que a abandone no Monte Citéron, depois de furar-lhe os pés.
O criado salva o bebê entregando-o a um pastor de ovelhas. Este o conduz a Corinto, onde é criado como filho adotivo pelo rei Pólipo e sua mulher Mérope, sendo batizado com o nome de Édipo, do grego Oidipous, que significa ‘pés inchados’.
Édipo cresce e ouve boatos de que não seria filho de seus pais. Quando atinge a maioridade, deixa Corinto em busca da verdade sobre sua ascendência. Procura Delfos para consultar o oráculo de Apolo. O deus lhe revela, de modo enigmático, que um dia ele mataria seu pai e se casaria com sua mãe.
Ante tal revelação estarrecedora, Édipo resolve ir embora de Corinto e jamais voltar, na vã tentativa de escapar da previsão.
Seguindo o cruso de seu destino, cruza por acaso com Laio, a quem não conhece. Eles brigam e Édipo o mata.
Entronado como rei de Tebas por ter decifrado o enigma da Esfinge, ao descobrir que acabou cometendo ambos os crimes, sem o saber, Édipo pune severamente a si mesmo cegando-se.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Condições necessárias ao amor

A escolha amorosa tem origem na fixação infantil dos sentimentos de ternura pela mãe. Representa uma conseqüência dessa fixação.
A corrente pulsional que resgata a possibilidade de amar se encontra na zona de confluência entre a ternura e a sensualidade.
O amor contém em si o protótipo materno, que pode ser exemplificado pela preferência dos jovens por mulheres maduras.
Na primeira parte das Contribuições à psicologia do amor, Freud descreve os tipos de escolha amorosa, caracterizadas por ele como condições necessárias ao amor.
A primeira dessas condições é a idéia que deve existir, como precondição, uma terceira pessoa prejudicada que gratifica impulsos de agressividade do terceiro excluído.
O amante dificilmente escolhe uma mulher sem compromisso como objeto amoroso. Seu amor recai sobre aquela a quem outro homem pode reivindicar direitos de posse.
Essa condição fornece a oportunidade para o surgimento de impulsos de rivalidade e de hostilidade dirigidos ao homem com quem a mulher está comprometida.
A segunda condição destaca o amor à cortesã. Essa condição favorece o aparecimento do ciúme apaixonado. Enquanto que a mulher de reputação irrepreensível dificilmente exerce atração.
É na puberdade que a corrente sensual se separa da corrente afetuosa. O homem pode mostrar-se entusiasmado por mulheres a quem dedica respeito, embora não o excitem sexualmente; e mostrar-se potente com mulheres a quem não ama ou até mesmo despreza.
Em geral, o jovem efetua certa síntese entre o amor celeste e o sensual. A relação com o objeto sexual se caracteriza pela interação de uma desinibição e inibição em seu objetivo.
O amado desfruta de uma supervalorização que supera qualquer crítica. Com a sensualidade reprimida, produz-se a ilusão de que o objeto passou a ser amado graças aos seus méritos intelectuais. O objeto passa a ser tratado como o próprio eu.
No amor, um quantum de libido narcisista transborda para o objeto. Amamos as perfeições que gostaríamos de conquistar para o próprio eu que, por sua vez, se mostra cada vez mais modesto. Em contraposição, o objeto passa a ser visto como sublime e precioso.
No amor infeliz, cego, insatisfeito, o objeto se coloca no lugar do ideal do eu. O eu introjeta o amado em si próprio. O objeto se perde nessa identificação, ao passo que eu promove em si mesmo uma alteração conforme o modelo do objeto perdido.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Mito e poder

O jogo intrínseco à fala mítica revela como o mito resguarda seu poder naturalizado, permanecendo congelado.
Se o mito possui uma intenção, o propósito de notificar algo, isto ocorre porque ele é pleno de motivação, ou seja, de um interesse ideológico que dele se serve para passar uma mensagem sem apresentar claramente sua intenção.
O mito instrumentaliza o poder justamente por força de seu poder de de fixar um sentido dado como natural.
O tabu é a forma como o interdito adquire presença nos costumes, ou melhor, é o dispositivo que o coletivo criou para impor suas proibições, dizendo o que pode e o que não pode ser dito e feito.
O mito imanta o tabu de uma fala capacitada a tornar a interdição algo naturalizado; dissocia na sua forma ambígua, a intencionalidade de que é pleno.
A eficiência instrumental do jogo mítico derramada sobre o tabu faz com que este se transborde em eficácia simbólica.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Duplicidade do mito

O mito é um sistema que apresenta perpétua duplicidade. O seu ponto de partida coincide com o ponto onde termina um sentido.
Essa característica, inerente ao mito, é aquilo que o capacita a encarnar o jogo. Onipresença que se reproduz como um álibi.
Também no álibi, há um lugar pleno e um lugar vazio, que permanecem ligados por uma relação de identidade negativa (não estou onde vocês pensam que estou, estou onde vocês pensam que não estou).
O mito se presta a ser um eterno álibi: o sentido existe para apresentar a forma; a forma existe para disfarçar o sentido.
Seguindo a compreensão de Barthes, a regra desse jogo se esclarece pela decifração do mito, quando se estanca o fluxo contraditório e dinâmico entre forma vazia e presente; sentido pleno e ausente, para se poder centralizar a atenção em cada um deles separadamente, encarando-os como objetos distintos.
Sabe-se, de antemão, que o discurso mítico guarda sempre uma intencionalidade e uma literalidade, características de seu jogar ambíguo.
A intenção petrificada, purificada, eternizada, está pronta para permanecer congelada, ausente, na literalidade.
O formato vazio da literalidade nos leva a uma constatação que faz passar, meio transparente no discurso, uma notificação imperativa.
A força da interpelação mítica está contida na morte da história. É a suspensão das circunstâncias, dos detalhes, das particularidades, que dota a fala de uma generalidade a-histórica.
Ao contrário do princípio lingüístico, no qual o signo é arbitrário, a significação do mito é sempre motivada. Sua intenção aparenta uma utilidade natural e necessária.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

O conceito do mito

Na passagem do sentido à forma, a imagem se destitui de seu saber para ficar disponível ao saber do conceito, através do qual uma nova história se implanta no mito, investindo-se assim o conceito de um dado conhecimento da realidade.
O saber do conceito mítico é aberto e confuso porque é formado por associações ilimitadas, originando uma condensação instável.
O conceito do mito e o sentido são unidos por uma relação de deformação, É na produção dessa relação que se encontra a função do mito.
A deformação que ocorre no míto se assemelha ao processo descrito pela psicanálise, onde o sentido latente deforma o sentido manifesto.
No mito, é o conceito que deforma o sentido. Isso é possível porque o significante adquire duas faces: uma plena, que é o sentido; e uma vazia, que é a forma. A deformação se dá na face plena, no sentido.
O conceito não prescinde do sentido, mas torna-o quase apagado. Retira-lhe a memória e preserva-lhe a existência. De modo que o conceito deforma, mas não elimina o sentido, apenas o aliena de sua história.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

O significante do mito

Roland Barthes propõe um tipo de análise para decifração dos mitos, na qual ele estabelece uma correlação entre os termos do sistema mítico com os termos do sistema lingüístico de Saussure, a saber: significante, significado e signo lingüístico.
Segundo o esquema proposto por Barthes, no plano do mito, o significante passa a ser chamado de forma, ocupando o primeiro lugar do sistema mítico. Ao significado ele chama de conceito; e o terceiro termo, o signo lingüístico, ele chama de significação.
Assim, temos: a forma, como primeiro termo, que corresponde ao significante lingüístico; o conceito, como segundo termo, que corresponde ao significado lingüístico; e a significação, como terceiro termo, que corresponde ao signo lingüístico.
A significação compreende o próprio mito, da mesma forma como o signo de Saussure é a palavra, ou seja, uma entidade concreta.
A significação serve para nomear a dupla função contida no mito: por um lado, torna-o compreensível; por outro, impõe-lhe um sentido, através de sua força intencional, de seu caráter imperativo.
O significante do mito é, portanto, simultaneamente sentido e forma. Como sentido, apresenta a leitura de uma dada realidade sensorial que comporta uma racionalidade própria, isto é, uma história cuja significação já está construída.
O sentido é pleno de saber, memória, moral... Mas o mito torna esse sentido uma forma vazia. Efetua uma permuta: do sentido à forma; do signo lingüístico ao significante mítico. O sentido evacua seu valor, e mantém-se como forma viva, porém submissa, com a função de sedimentar o mito.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Mitologia e semiologia

Tal como a psicanálise, a mitologia pode ser definida a partir de seu interesse especial pela fala. Inclusive pode ser compreendida como parte da ciência semiológica.
A semiologia, requerida por Ferdinand Saussure, nos ensina a relacionar três termos de ordens diferentes: o significante, o significado e o signo, sendo este último considerado a totalidade associativa dos dois primeiros.
Podemos então observar que encontramos no mito o mesmo esquema tridimensional do sistema lingüístico.
Contudo devemos levar em conta que o mito se constrói em função da cadeia semiológica preexistente.
No mito, o signo lingüístico, que é o terceiro termo da tríade, se transforma em significante, ou seja, ele assume o lugar do primeiro termo lingüístico.

terça-feira, 20 de abril de 2010

O que é mito?

O mito é uma forma de narrativa, na qual a sociedade imprime suas inquietações, reflete seus paradoxos, indica seus caminhos.
Os mitos são representações que expressam numa linguagem singular as contradições das relações existenciais. Ele nos fornece um modelo lógico para equacionar nossas contradições.
O mito faz parte da língua. É conhecido pela palavra, pelo discurso.
Por isto o universo mítico está presente na linguagem e além dela. Seu conteúdo é o relato, a história contada; diz respeito a acontecimentos passados, mas forma uma estrutura permanente que lhe permite ultrapassar o tempo.
O mito tem também um sentido histórico na medida em que pode estar situado num tempo determinado e serve para levantar questões sobre as relações sociais. Porém ele transcende a história na medida em que permanece vivo.
Ao contrário da poesia que dificilmente se presta a traduções, o mito preserva o valor do conteúdo do relato em qualquer referência lingüística.
Então podemos dizer que o mito é uma fala. Contudo de uma ordem específica porque comporta uma mensagem, funcionando como um sistema de comunicação, uma forma de significação, mas que não se define pelo objeto da sua mensagem, e sim pela forma como a enuncia.
Pode apresentar-se sob diversas formas não orais que servem de suporte a sua estrutura. Como a imagem, por exemplo, que é imperativa quando comparada com a escrita; impõe a significação de uma só vez sem necessidade de análise.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Tabu e poder

Há no tabu uma tensão ambivalente que torna especial o contato, a aproximação com ele. As formações culturais fundamentam-se em sentimentos que envolvem ao mesmo tempo impulsos egoístas e eróticos, de afirmação e de disputa de poder.
A instituição do tabu e os ritos de reparação que o acompanham são peças de um jogo onde se estruturam as complexas relações que se movem no âmbito social.
O tabu protege o que na ordem social parece inefável e que adquire expressão através das interdições, das restrições impostas pela cultura.
Contradição e poder coabitam o mesmo espaço na cultura. O tabu resguarda o lugar do poder, reveste-o de magia, torna-o sacro e, assim, naturaliza-o. Forma eficaz de mistificar e camuflar sua abrangência ideológica e política.
No limiar desse jogo o poder garante sua potência: força que advém do inapreensível. Advertido sobre a natureza impura do sagrado, o homem se apercebe dos perigos envoltos nas tentativas de proximidade física que se dão numa zona onde nada é dado como certo.
Por isso o homem tateia o contato com cuidadosas reverências e produz rituais para realizar essa aproximação. Mas se o poder envolve riscos e perigos, é melhor se afastar dele e manter uma distância respeitosa. Eis o véu de mistério do sagrado.
O que é poder senão a expressão e o uso de uma força de algum modo autorizada pelo coletivo?
Entendido como um dispositivo de controle cultural, quando observamos a aparição de um tabu notamos que esta se dá por meio da crença supersticiosa na histórica contada, no causo, na lenda carregada de magnetismo lingüístico que recobre o tabu de poder mítico.

segunda-feira, 29 de março de 2010

A violação do tabu

O transgressor no ato da violação se transforma em tabu, porque assimila a tentadora qualidade de influenciar os outros.
Convertendo-se em exemplo, o tabu torna-se contagioso, porque todo exemplo incita a imitação e, por conseguinte, ele próprio deve ser evitado.
O perigo está na probabilidade da imitação. É para não se dar conta do desejo de agir como o transgressor que a violação é vingada pelos demais membros da coletividade.
A obediência à imposição do tabu redunda em renúncia a algo desejável, e aqueles que o obedecem preservam atitude ambivalente em relação ao que é mantido como proibido pelo tabu. Há uma relação de similaridade entre as proibições impostas pelo tabu e as interdições morais.
Ao longo da história, o tabu vai adquirindo força própria, articulando-se nas normas da tradição e dos costumes, sendo a fonte dos preceitos morais e das leis.
Por ser uma criação cultural, o tabu é, em si, uma instituição social. Quando a violação de um tabu é vingada automaticamente na pessoa do transgressor surge o sentimento coletivo de que todos estão ameaçados pelo insulto.
Esse sentimento explica a urgência em antecipar a punição ao transgressor. A ação violadora aparece como um exemplo contagioso, como uma tentação e risco de ser imitada.
O desejo de violação não diz respeito apenas ao transgressor. Antes, está presente em todos da comunidade, resultando na necessidade de punir o transgressor, de criar dispositivos ritualísticos para expiação e reparação do mal.

segunda-feira, 22 de março de 2010

O mais arcaico código de leis

As restrições do tabu têm origem desconhecida e não dizem respeito a um sistema definido de regras religiosas ou morais.
O tabu é o mais arcaico código de leis não escrito que o homem produziu. Ele remonta a um período anterior ao nascimento da religião e dos deuses.
O tabu visa atingir numerosos objetivos, dentre eles destaco o de proteger autoridades como chefes e sacerdotes contra o mal e a defender os fracos, pessoas comuns em geral, do poderio do mana, que significa o poder misterioso, a influência mágica inerente aos chefes e sacerdotes.
O tabu salvaguarda os homens contra a cólera dos deuses, e tem ainda a função de proteger os bens que um indivíduo possui contra ladrões, por exemplo.
No caso da violação de um tabu, o processo punitivo é de ordem simbólica: o tabu violado, como um agente interno automático, ele mesmo se vinga.
A violação de um tabu provoca a transmutação do transgressor, ele também, em tabu. Isto quer dizer que o transgressor incorpora o poder perigoso do tabu, o seu aspecto proibido.
A carga que se supõe recair sobre o transgressor é considerada contagiosa e, como um doença, pode contagiar outras pessoas que com ele mantém contato, recebendo parte desse atributo perigoso.
Contudo, certos perigos provocados pela violação podem ser evitados através de atos de expiação e purificação.
A violação do tabu envolve por um lado a força da influência mágica inerente ao objeto ou pessoa tabu e, por outro, a força mágica antagônica do violador do tabu.
As duas leis do totemismo - não destruir o totem e não manter relação sexual com membros do mesmo clã totêmico – constituem as mais remotas e importantes proibições associadas ao tabu. Por esta razão, pode-se supor que estes são os mais arcaicos desejos do homem.
O tabu conserva a possibilidade de excitar a ambivalência dos homens, de acender o desejo de violar o proibido. Nas palavras de Freud:
“A base do tabu é uma ação proibida, para cuja realização existe forte inclinação do inconsciente.” (1913)
O tabu é a expressão de forças em sentidos opostos: a força da lei e a força do desejo. É nesse espaço lacunar em que se fundem as oposições, que se aloja o tabu. Nele, o proibido e o desejado permanecem absolutamente indissociáveis.

quinta-feira, 18 de março de 2010

O que é tabu

Em O futuro de uma ilusão, 1927, Freud debate sobre o valor das idéias religiosas. Diz-nos que o sentimento de desamparo do homem ante às forças da natureza e às imposições da sociedade não diferem do desamparo infantil que experimentamos em tenra idade, quando os pais ainda nos parecem poderosos, gigantes.
Há um temor a esse pai poderoso, e este sentimento convive com a certeza de contar com sua proteção contra os perigos de toda ordem. As crenças, as explicações míticas sobre o mundo, sobre as forças naturais, a criação dos deuses e de dispositivos de interdição como os tabus surgem para fazer frente a esse sentimento primitivo em que se emaranham as ameaças fundamentais.
Esses sentimentos ancestrais que atuam no homem levam-no a ansiar pelo pai e pelos deuses.
Tanto as crenças quanto os mecanismos de controle são fabricados no interior desse universo mais íntimo, onde se pode vislumbrar as mais arcaicas fragilidades humanas.
O sentimento primitivo de onipotência que se projeta nas crenças e na adoração aos deuses, se repercute na gestação de interditos culturais como são os tabus.
O tabu cifra-se no mais remoto código de leis elaborado pelo homem, em época anterior ao surgimento das concepções religiosas.
O tabu sempre porta uma ambigüidade. E esta aponta uma divergência de sentidos que se opõem entre si. Como uma moeda de duas faces, o tabu num sentido representa o sagrado, o consagrado e, no outro, representa o misterioso, o perigoso, o proibido, o impuro.
O tabu carrega em si um sentido de coisa inabordável, expresso em proibições e restrições culturais.

sexta-feira, 12 de março de 2010

A horda primeva

A horda primeva, que Freud descreve em Totem e Tabu, é formada por um bando de irmãos que vivem sob a liderança e repressão sexual de um pai violento, que possui e vigia todas a fêmeas contra as possíveis investidas sexuais dos filhos machos, e enciumado os expulsa do bando, tão logo eles se tornem grandes o suficiente para pôr em risco o poder absoluto do pai.
Animado por sentimentos contraditórios em relação a esse pai tirano, invejado e admirado, o bando se une em torno do desejo de despojar-lhe de seu poder. Matam-no, apaziguando o ódio que sentiam por ele.
Mas o remorso pela morte do pai enche-os de culpa, sentimento este que os faz renegar o ato homicida e leva-os à renúncia sexual.
O sentimento de culpa gera duas proibições fundamentais: matar o pai e obter satisfação sexual com a mãe.
Estes são os dois interditos ativos que atuam na cena edípica.O conhecimento sobre o mito freudiano do pai primitivo e dos sentimentos ambivalentes que animam os filhos - admiração e ódio, ajuda-nos a entender a sobrevivência de uma mitologia infantil arcaica que compõe a geografia da vida psíquica.

segunda-feira, 1 de março de 2010

O discurso demonológico e a palavra do transgressor

Michel de Certeau constrói uma lógica relacional entre o discurso demonológico e a palavra da possuída ao estudar um célebre caso de possessão ocorrido na Idade Média.
Seu estudo serve-nos de instrumento para pensarmos sobre as relações entre o discurso autorizado (jurídico, médico, psicológico etc.) por um saber constituído e a palavra do transgressor.
Transgredir significa atravessar, diz Certeau. Com esta afirmação, ele circunscreve o problema de uma distorção entre a firmeza do discurso autorizado por um saber constituído e a função de limite exercida pela palavra do transgressor.
Como numa peça teatral, podemos analisar o ajuste assimétrico de duas posições: a do juiz (ou a dos demais profissionais da justiça) e a do transgressor.
De que lugar fala o transgressor?
Ele fala do lugar de uma indeterminação, que se dá como um alhures que nele fala. O juiz e os profissionais que trabalham na justiça respondem por uma tarefa terapêutica de nominação.
O essencial dessa terapêutica consiste em dar um nome ao sujeito que se manifesta do íntimo de sua incerteza, como falante.
À alteração que o transgressor traz à tona com sua palavra incerta, a sociedade responde com a terapêutica de nominação prevista nos seus códigos.
O tarefa do juiz e ou dos profissionais que gravitam em torno dele, consiste em classificar os falantes num lugar determinado pelo saber que esses discursos autorizados detêm.
O transgressor se distancia da linguagem que permite organizar a ordem social. Ao passo que os juízes e os demais técnicos combatem o fora-do-texto onde se coloca o transgressor, buscando reavê-lo de sua fuga para fora dos campos do discurso estabelecido.
Esta forma de abordar a questão da transgressão se apóia na afirmação sustentada por Certeau de que existe uma distinção entre o discurso do transgressor e o discurso autorizado pelo saber constituído.
De tal modo que podemos falar de um corte entre o que diz o transgressor e o que diz o discurso autorizado.
Existe um discurso do Outro na transgressão?
A cena da instituição de custódia prepara a linguagem na qual irá se inserir a palavra do transgressor.
E como a experiência da transgressão não tem linguagem própria, ela se inscreve no discurso da tradição de saber: eu sei melhor que tu aquilo que dizes.
Quando o transgressor assume em sua fala esta linguagem imposta, o seu discurso alienado comporta o vestígio da alteridade que o discurso autorizado pretende recobrir.
A alteração do discurso pela palavra traz a imagem da ambivalência dos procedimentos repressivos.
O papel da citação, por exemplo, que é uma técnica literária do processo e do julgamento, serve para colocar o discurso numa posição de saber de onde ele pode dizer o outro.
Na citação do outro, alguma coisa de diferente, ambivalente, retorna no discurso, e mantém o risco de uma estranheza que altera o saber tradutor ou comentador.
A alteridade dominada no discurso formatado resguarda em latência um fantasma, como nos sonhos, revela uma estranheza inquietante: o poder alterador do recalcado.
Esses indícios estranhos excluem a possibilidade de um fechamento do texto; marcam outro lugar no discurso; inscrevem uma transgressão sub-reptícia na rede da linguagem do saber.
Funcionamento ambíguo que traça no texto uma divisão perigosa, e faz com que o texto produza uma estranheza diabólica.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O rito processual

Nas apresentações judiciárias medievais, o processo civil serve de modelo a todos os processos. O ato jurídico é encenado entre três personagens: o juiz, o acusador e o defensor. Cada um conhece o desempenho de seus papéis e sabe de cor as palavras que devem ser proferidas.
No curso processual os personagens repisam a lei, e assim se reconhecem como sujeitos da instituição.
O procedimento é um jogo ritual, uma técnica de recuperação dos sujeitos. Em consonância com a ciência do mestre, desenvolve-se um combate conforme a lógica da lei.
Cada um dos personagens enuncia ter a lei a seu favor, a argumentação casuística avança até a conclusão.
Há uma dupla figuração na ordem escolástica. Na primeira, encontra-se a lógica do processo, envolve o ato das três pessoas que assumem os papéis: de juiz, de requerente e de réu. Na segunda, há a figuração mítica: o juiz diz o direito às partes do processo, ao requerente e ao réu.
Na encenação do rito processual, o juiz detém a máscara do sacerdote. Ele assume o lugar sacro do intocável porque representa o Outro, o onipotente, o ausente.
Quando o juiz profere a sentença, sua consciência leiga desaparece. Ele faz falar a Lei, porque sua enunciação se positiviza nas alegações.
Ao julgar, o juiz se apaga em favor da verdade da Lei. E o julgamento se ajusta no lugar da verdade: res judicata pro veritate habetur.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

A dimensão da incerteza

A dimensão ilimitada da incerteza é inerente ao universo do mito antigo, que posiciona os sujeitos numa espera da palavra temível, da qual o mestre será o portador, e o responsável pela repetição da lei.
Como legítimo intérprete da lei, o doutor faz funcionar essa casuística, formatando o conflito particular, trazido por cada um, aos ditames da lei.
Esse jogo mantém relação com o conjunto do sistema, isto é, com a ampla teoria da Lei. Ele opera no interior de linhas traçadas pelo dogmatismo.
O direito se constitui pelo conjunto do texto, da glosa e da jurisprudência.
A jurisprudência é a ciência dos casos que está sob poder exclusivo do mestre; é a via por onde se efetiva a censura. Como técnica de manipulação, sua eficácia será comprovada quando os sujeitos declararem seu amor à lei em substituição ao desejo.
Na instituição o doutor assume um papel de transparência; personifica o instrumento de acesso ao saber.
O mestre representa a posição do sujeito em extrema incerteza, que deve galgar a posição oposta onde se encontra a regra.
O percurso dessa lógica se constrói na argumentação dos contrários, os prós e os contras se contrapõem ante uma questão lançada pelo doutor.
Ao desenhar os traços desse caminho em direção à submissão, no interior de uma casuística, o doutor produz seu cerimonial obsessivo.
Estágio em que se presencia o caráter formal e perfeccionista do pensamento jurídico.
Toda instituição busca se respaldar numa segurança essencial que se funda no ritual de exclusão de um culpado, personagem que encarna o mal a ser extirpado.
Ao encenar a liturgia de sua prática, a dogmática jurídica organiza a dramaturgia da regra.
Aproxima-nos dos rituais que expressam a fé jurídica, e aponta-nos como a instituição se comunica no interior da sociedade e no percurso da história.
O processo forja uma ação onde o conflito é novamente dramatizado. E no centro dessa encenação, a Lei se explicita.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Lógica da Lei

Os romanos foram os primeiros a descobrir que existe uma lógica da lei que atravessa os tempos. Eles nos conduziram à produção de uma ciência universal do poder.
O direito romano originário exprime a sentença lógica pertinente ao direito civil: res sanctissima civilis sapientia. Máxima que esboça a proximidade entre religião e ciência jurídica; e a simetria entre direito romano e teologia latina.
Em contrapartida, a igreja se apropriou do texto jurídico civil para ancorar sua ordem interna.
O discurso do mestre, assentado no mito pontifício e na legendária história dos romanos, está apto a desdobrar suas técnicas.
Em todo comentário transita uma incerteza. E esta permite versões diversas da regra, que é apresentada como clarificação da obscuridade do texto.
A lei espalha suas raízes no terreno mais ou menos insondável da dúvida. Enquanto o intérprete surge como aquele capaz de identificar a boa raiz, diferenciando-a da ruim.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O Decreto

O Decreto, escrito pelo monge Graciano, é considerado a obra medieval por excelência, o livro jurídico de maior importância.
Os decretos baixados pelos papas foram sendo acrescentados ao texto original através dos séculos.
A importância do texto não é dada por um ou outro papa individualmente, mas pela autoridade pontifícia que atravessa a existência pessoal dos papas e as circunstâncias históricas que determinam o surgimento da regra.
Assim se produziu a escritura sagrada, cuja função é declarar a potência do Uno que o pontífice representa: o pai onipotente.
Graciano compôs esse texto a partir de extratos destacados de seus contextos imediatos e os dotou de homogeneidade, e este método de composição ilustra o que se pode chamar de verdade do dogma. Ou seja, aquela verdade que sobrevive ao apagamento da história.
Quando o dogmatismo enuncia a regra jurídica, ele exige que ela seja percebida como dissociada do comentador, fazendo crer que a ação do comentador contém um tipo de operação lógica capaz de restaurar o texto.
Como se no momento em que se instaura a manifestação da Lei, o jurista fosse capaz de captar a lógica do texto, e dar-lhe sentido.
O resultado não é tanto o que importa, pois a verdade se apresenta na anterioridade, na trajetória escolhida pelo intérprete, no rito metódico, na casuística que fornece ao símbolo a potência de respostas, contraditórias, que variam ao infinito, mas permanecem legais, em razão dos poderes conferidos ao comentário.
Influenciada diretamente pelo direito romano, a Idade Média resgatou a hierarquia que distinguia o lugar dos intérpretes.
No topo, o imperador, abaixo dele, os doutores e a última palavra ficava a cargo da instituição. A única interpretação, superior e necessária, tinha o poder de calar qualquer manifestação interpretativa inferior. Lógica que se expressa como interpretatio necessaria.
Nesse processo, o doutor era considerado um subalterno que jamais devia pôr em dúvida o julgamento do Chefe, sob pena de cometer um sacrilégio.
Mas o doutor era um intérprete privilegiado, portador autônomo do texto, a quem era delegada a tarefa de fazer falar a Lei.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

A importância do livro medieval

A capacidade operativa do dogmatismo se abastece da crença no poder que emana do texto. Este deve possuir o poder de iludir, produzindo a certeza de que nele está contida a verdade.
O papel do intérprete/transmissor do texto se assemelha ao do ilusionista que sustenta o jogo institucional com seu manejo técnico do engano ilusório.
O peso da coletânea do texto indica a existência de uma reserva potencial de autoridade, legitimada na potência mítica do livro.
A massa dessas obras antigas constitui a matéria-prima que dá forma a um texto morto, no qual se pode pesquisar e isolar um corpus júris.
O livro medieval é um objeto simbólico encerrado em si mesmo, do qual o comentador extrai palavras isoladas e as faz trabalhar para dizer algo, para dar sentido, para autorizar o discurso da autoridade.
O texto que o livro encerra tem um núcleo que envolve perigos e, portanto, deve ser desbravado apenas por aqueles detentores das chaves místicas, aqueles que irão compor os comentários a partir de uma lógica estrita.
A Lei figura no texto e é garantida pela posição do pontífice. Eis a origem da superioridade do texto no direito canônico.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

O mito canônico

Presa à rede de significação da Escolástica, a mítica encarnação da Lei, na dimensão imaginária, fornece o modelo de referência sexual.
Esse modelo permite à instituição garantir a sua verdade, a qual emana do jogo em que o erótico é desviado de sua finalidade.
Na ordem da pré-constituição, o texto canônico forja a verdade e estende a toda a sociedade o seu mito.
Instala-se aí o poder do instituído, na capacidade de implantar o modelo de um sujeito humano ideal que projeta seu conflito em um eu ideal dilatado.
O texto canônico produz a submissão a regras, cujo caráter de certeza não difere daquelas regras promulgadas pela criança e ou pelo neurótico, quando atormentados pelas crenças primitivas do desejo.
Por ser tida como certa e inevitável, a Lei se impõe, esquadrinhando a crença de um amor original.
A regra dessa dogmática se generaliza. E o bem-sucedido mito contido no texto canônico abrange toda a sociedade.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

O lugar do papa

O reconhecimento do papa enuncia uma representação simbólica fundamental: o seu lugar é determinado de modo textualmente normativo e preserva a autenticidade da representação de Outro, ausente, em nome de quem o pontífice se pronuncia.
Ele é o transmissor da Lei, o senhor da doutrina, o mantenedor da chave que abre as portas da mística.
É apresentado pelos dogmáticos como o escravo que recebeu a missão de representar seu mestre ausente, e administrar seus negócios.
A lógica católica dividiu a sociedade em dois mundos: o mundo do clero e o mundo leigo. Essa lógica se assentou no interdito máximo: a castidade. Norma que particulariza o lugar do sacerdócio.
Na escala vertical da hierarquia que divide o mundo entre puros e impuros, o papa desponta como o primeiríssimo da primeira ordem.
Ele representa a síntese de uma antinomia: a onipotência e a privação sexual. Ele é o pai, portador do falo, mas está impedido de atualizar a potência sexual.
Desapossado de seus desejos em nome da tarefa de pastor, o pontífice se coloca como um servo do supremo sacerdócio, e transforma a si mesmo na primeira vítima da regra. Deve se subjugar para submeter a todos.
Como principal intérprete do texto canônico, sua mestria é a transmissão do subjugar. Mas ele não é nada mais que o representante do Outro, o Inspirador.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

O teológico e o jurídico

A instituição, no Ocidente, está calcada na definição da norma e no exercício do sacerdócio. No interior desse território, duas regiões se articulam, delimitadas por dois tipos de saber: o teológico e o jurídico.
Estes saberes se harmonizam num único percurso para nomear o campo referencial da censura: de um lado, leis divinas e naturais, de outro, leis humanas.
A escolástica colocava em pauta o jogo lógico do direito romano, determinado este pelas instâncias que proferiam a palavra legítima originada no discurso canônico, conforme a seguinte relação vertical: no alto, o pontífice romano, auctoritas sacra pontificum; em baixo, o imperador romano, regalis potestas.
Essa monarquia sacerdotal estratificava a sociedade em dois gêneros de cristãos: os clérigos e os leigos. Segmentação em dois estatutos que nos indica como o direito canônico ao mesmo tempo englobou e diferenciou o humano.
No intervalo medieval a história aparece como morta. Reino do absoluto, esse momento se interpõe em anterioridade ao sujeito e funda o instituído. Na ordem desse simbolismo preestabelecido, cabe à instituição perpetuar-se através da transmissão, mantendo enigmática a potência de repetição do dogma.