segunda-feira, 29 de março de 2010

A violação do tabu

O transgressor no ato da violação se transforma em tabu, porque assimila a tentadora qualidade de influenciar os outros.
Convertendo-se em exemplo, o tabu torna-se contagioso, porque todo exemplo incita a imitação e, por conseguinte, ele próprio deve ser evitado.
O perigo está na probabilidade da imitação. É para não se dar conta do desejo de agir como o transgressor que a violação é vingada pelos demais membros da coletividade.
A obediência à imposição do tabu redunda em renúncia a algo desejável, e aqueles que o obedecem preservam atitude ambivalente em relação ao que é mantido como proibido pelo tabu. Há uma relação de similaridade entre as proibições impostas pelo tabu e as interdições morais.
Ao longo da história, o tabu vai adquirindo força própria, articulando-se nas normas da tradição e dos costumes, sendo a fonte dos preceitos morais e das leis.
Por ser uma criação cultural, o tabu é, em si, uma instituição social. Quando a violação de um tabu é vingada automaticamente na pessoa do transgressor surge o sentimento coletivo de que todos estão ameaçados pelo insulto.
Esse sentimento explica a urgência em antecipar a punição ao transgressor. A ação violadora aparece como um exemplo contagioso, como uma tentação e risco de ser imitada.
O desejo de violação não diz respeito apenas ao transgressor. Antes, está presente em todos da comunidade, resultando na necessidade de punir o transgressor, de criar dispositivos ritualísticos para expiação e reparação do mal.

segunda-feira, 22 de março de 2010

O mais arcaico código de leis

As restrições do tabu têm origem desconhecida e não dizem respeito a um sistema definido de regras religiosas ou morais.
O tabu é o mais arcaico código de leis não escrito que o homem produziu. Ele remonta a um período anterior ao nascimento da religião e dos deuses.
O tabu visa atingir numerosos objetivos, dentre eles destaco o de proteger autoridades como chefes e sacerdotes contra o mal e a defender os fracos, pessoas comuns em geral, do poderio do mana, que significa o poder misterioso, a influência mágica inerente aos chefes e sacerdotes.
O tabu salvaguarda os homens contra a cólera dos deuses, e tem ainda a função de proteger os bens que um indivíduo possui contra ladrões, por exemplo.
No caso da violação de um tabu, o processo punitivo é de ordem simbólica: o tabu violado, como um agente interno automático, ele mesmo se vinga.
A violação de um tabu provoca a transmutação do transgressor, ele também, em tabu. Isto quer dizer que o transgressor incorpora o poder perigoso do tabu, o seu aspecto proibido.
A carga que se supõe recair sobre o transgressor é considerada contagiosa e, como um doença, pode contagiar outras pessoas que com ele mantém contato, recebendo parte desse atributo perigoso.
Contudo, certos perigos provocados pela violação podem ser evitados através de atos de expiação e purificação.
A violação do tabu envolve por um lado a força da influência mágica inerente ao objeto ou pessoa tabu e, por outro, a força mágica antagônica do violador do tabu.
As duas leis do totemismo - não destruir o totem e não manter relação sexual com membros do mesmo clã totêmico – constituem as mais remotas e importantes proibições associadas ao tabu. Por esta razão, pode-se supor que estes são os mais arcaicos desejos do homem.
O tabu conserva a possibilidade de excitar a ambivalência dos homens, de acender o desejo de violar o proibido. Nas palavras de Freud:
“A base do tabu é uma ação proibida, para cuja realização existe forte inclinação do inconsciente.” (1913)
O tabu é a expressão de forças em sentidos opostos: a força da lei e a força do desejo. É nesse espaço lacunar em que se fundem as oposições, que se aloja o tabu. Nele, o proibido e o desejado permanecem absolutamente indissociáveis.

quinta-feira, 18 de março de 2010

O que é tabu

Em O futuro de uma ilusão, 1927, Freud debate sobre o valor das idéias religiosas. Diz-nos que o sentimento de desamparo do homem ante às forças da natureza e às imposições da sociedade não diferem do desamparo infantil que experimentamos em tenra idade, quando os pais ainda nos parecem poderosos, gigantes.
Há um temor a esse pai poderoso, e este sentimento convive com a certeza de contar com sua proteção contra os perigos de toda ordem. As crenças, as explicações míticas sobre o mundo, sobre as forças naturais, a criação dos deuses e de dispositivos de interdição como os tabus surgem para fazer frente a esse sentimento primitivo em que se emaranham as ameaças fundamentais.
Esses sentimentos ancestrais que atuam no homem levam-no a ansiar pelo pai e pelos deuses.
Tanto as crenças quanto os mecanismos de controle são fabricados no interior desse universo mais íntimo, onde se pode vislumbrar as mais arcaicas fragilidades humanas.
O sentimento primitivo de onipotência que se projeta nas crenças e na adoração aos deuses, se repercute na gestação de interditos culturais como são os tabus.
O tabu cifra-se no mais remoto código de leis elaborado pelo homem, em época anterior ao surgimento das concepções religiosas.
O tabu sempre porta uma ambigüidade. E esta aponta uma divergência de sentidos que se opõem entre si. Como uma moeda de duas faces, o tabu num sentido representa o sagrado, o consagrado e, no outro, representa o misterioso, o perigoso, o proibido, o impuro.
O tabu carrega em si um sentido de coisa inabordável, expresso em proibições e restrições culturais.

sexta-feira, 12 de março de 2010

A horda primeva

A horda primeva, que Freud descreve em Totem e Tabu, é formada por um bando de irmãos que vivem sob a liderança e repressão sexual de um pai violento, que possui e vigia todas a fêmeas contra as possíveis investidas sexuais dos filhos machos, e enciumado os expulsa do bando, tão logo eles se tornem grandes o suficiente para pôr em risco o poder absoluto do pai.
Animado por sentimentos contraditórios em relação a esse pai tirano, invejado e admirado, o bando se une em torno do desejo de despojar-lhe de seu poder. Matam-no, apaziguando o ódio que sentiam por ele.
Mas o remorso pela morte do pai enche-os de culpa, sentimento este que os faz renegar o ato homicida e leva-os à renúncia sexual.
O sentimento de culpa gera duas proibições fundamentais: matar o pai e obter satisfação sexual com a mãe.
Estes são os dois interditos ativos que atuam na cena edípica.O conhecimento sobre o mito freudiano do pai primitivo e dos sentimentos ambivalentes que animam os filhos - admiração e ódio, ajuda-nos a entender a sobrevivência de uma mitologia infantil arcaica que compõe a geografia da vida psíquica.

segunda-feira, 1 de março de 2010

O discurso demonológico e a palavra do transgressor

Michel de Certeau constrói uma lógica relacional entre o discurso demonológico e a palavra da possuída ao estudar um célebre caso de possessão ocorrido na Idade Média.
Seu estudo serve-nos de instrumento para pensarmos sobre as relações entre o discurso autorizado (jurídico, médico, psicológico etc.) por um saber constituído e a palavra do transgressor.
Transgredir significa atravessar, diz Certeau. Com esta afirmação, ele circunscreve o problema de uma distorção entre a firmeza do discurso autorizado por um saber constituído e a função de limite exercida pela palavra do transgressor.
Como numa peça teatral, podemos analisar o ajuste assimétrico de duas posições: a do juiz (ou a dos demais profissionais da justiça) e a do transgressor.
De que lugar fala o transgressor?
Ele fala do lugar de uma indeterminação, que se dá como um alhures que nele fala. O juiz e os profissionais que trabalham na justiça respondem por uma tarefa terapêutica de nominação.
O essencial dessa terapêutica consiste em dar um nome ao sujeito que se manifesta do íntimo de sua incerteza, como falante.
À alteração que o transgressor traz à tona com sua palavra incerta, a sociedade responde com a terapêutica de nominação prevista nos seus códigos.
O tarefa do juiz e ou dos profissionais que gravitam em torno dele, consiste em classificar os falantes num lugar determinado pelo saber que esses discursos autorizados detêm.
O transgressor se distancia da linguagem que permite organizar a ordem social. Ao passo que os juízes e os demais técnicos combatem o fora-do-texto onde se coloca o transgressor, buscando reavê-lo de sua fuga para fora dos campos do discurso estabelecido.
Esta forma de abordar a questão da transgressão se apóia na afirmação sustentada por Certeau de que existe uma distinção entre o discurso do transgressor e o discurso autorizado pelo saber constituído.
De tal modo que podemos falar de um corte entre o que diz o transgressor e o que diz o discurso autorizado.
Existe um discurso do Outro na transgressão?
A cena da instituição de custódia prepara a linguagem na qual irá se inserir a palavra do transgressor.
E como a experiência da transgressão não tem linguagem própria, ela se inscreve no discurso da tradição de saber: eu sei melhor que tu aquilo que dizes.
Quando o transgressor assume em sua fala esta linguagem imposta, o seu discurso alienado comporta o vestígio da alteridade que o discurso autorizado pretende recobrir.
A alteração do discurso pela palavra traz a imagem da ambivalência dos procedimentos repressivos.
O papel da citação, por exemplo, que é uma técnica literária do processo e do julgamento, serve para colocar o discurso numa posição de saber de onde ele pode dizer o outro.
Na citação do outro, alguma coisa de diferente, ambivalente, retorna no discurso, e mantém o risco de uma estranheza que altera o saber tradutor ou comentador.
A alteridade dominada no discurso formatado resguarda em latência um fantasma, como nos sonhos, revela uma estranheza inquietante: o poder alterador do recalcado.
Esses indícios estranhos excluem a possibilidade de um fechamento do texto; marcam outro lugar no discurso; inscrevem uma transgressão sub-reptícia na rede da linguagem do saber.
Funcionamento ambíguo que traça no texto uma divisão perigosa, e faz com que o texto produza uma estranheza diabólica.