segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Falta ou excesso de liberdade?

_ Todos esses problemas sempre existiram. E retornam de tempos em tempos para nos assombrar. São produtos dos excessos. Não só de liberdade, mas também do excesso de falta de liberdade. O marketing usado pelo discurso nazista se baseou na necessidade de conter a onda de liberdade que dominava o mundo das idéias e dos costumes. O que foi a estética e a higienização que propagou, senão formas ideais para produzir um novo mundo que atendesse ao homem ariano, o homem ideal? O plano de execução para varrer do planeta toda semente que pudesse aflorar qualquer diferença gerou o descrédito na autoridade nazista, que se queria absoluta, gerou a maior crise ética de todos os tempos e gerou total falta de limites no plano político. Isto era uma realidade no tempo em que Freud escreveu O mal estar na cultura. Todos os sistemas totalitários conduziram a excessos que surtiram efeitos desastrosos. Efeitos semelhantes aos que hoje se atribui ao excesso de liberalidade, disse Eleonora.

O destino do cofre momentaneamente se perdia. Percebendo o risco, Laurindo retornou ao assunto: _ Nós não sabemos o que estamos fazendo quando remexemos desígnios que estão acima de nossos entendimentos. Por isto sou contra a abertura do cofre. Ele é nossa caixa de Pandora. Um cofre fechado vale mais do que um cofre aberto. O que é um cofre aberto senão um baú vazio. Sem fantasias. O que seria de nós sem as sementes que a imaginação pulveriza em nosso solo, fertilizando assim nosso árido dia a dia? O que seria do tesouro que acumulamos ao longo de toda nossa trajetória, tão repleto de preciosas histórias, as quais têm brilhado como estrelas, iluminando-nos com sua luz e aquecendo com sua chama as memoráveis noites de Extima?

Abelardo queria falar. Acenava ansioso por uma oportunidade. Com sua voz doce e claudicante disse: _ Acho... Não estou certo se vocês vão entender... Acho que o cofre é uma cápsula do tempo. Vocês sabem o que é uma cápsula do tempo, não? A cápsula do tempo é como a pedra fundamental que os faraós usavam para transmitir às gerações futuras a paternidade de suas obras. Em geral, cápsulas do tempo são recipientes metálicos, enterrados com objetos representativos de uma época para que gerações seguintes saibam como era a vida na época em que foram enterradas. Não acham que é uma forma de comunicação com o inusitado que mora no futuro? Pois eu acho que o nosso cofre é uma cápsula do tempo que ficou... não enterrada, mas esquecida na cozinha embaixo do fogão. Deve haver dentro dele uma mensagem reveladora! Vocês não ficam curiosos com o que pode haver dentro do cofre?

_ Eu também vou vibrar se encontrarmos dentro do cofre um precioso manuscrito... ou o rascunho de uma revolucionária teoria, falou Eleonora com seu jeito irônico. _ Ou um frasco contendo uma substância com poder de iluminar a verdade escondida na barafunda incognoscível do inconsciente, disse Inácio. Abelardo se empolga: _ Isso! Alguma coisa inovadora. Como... uma história inédita que poderá surpreender o povo de Extima. Porque não? Quem nos garante que não haja dentro dele uma revelação? Só não sei se este é o momento certo para abrirmos o cofre... Será que estamos preparados para a mensagem que ele contém? Será que não estaremos com este ato abortando a comunicação com o futuro? Talvez ainda não sejamos o futuro que os antigos esperavam... e nossa missão seja preservar a cápsula do tempo tal como está para o tempo que ainda está por vir? Prefiro acreditar que o cofre é a nossa coisinha tão bonitinha que o papai passado nos encarregou de conservar.

_ Os antigos costumavam dizer que o futuro a Deus pertence. O que significa que o futuro está muito além da competência dos homens. O homem sempre creditou às divindades o poder de falar sobre o futuro. Por esta razão criou oráculos, poços, cofres, vasos, arcas, sarcófagos para se proteger da ação corrosiva do tempo que tudo deteriora, e para encontrar a sonhada chave da imortalidade que se supõe perdida no futuro, disse Laurindo.

_ Então você acha que somos apenas uma geração intermediária entre o passado e o futuro, e que a nós nada cabe fazer, senão preservar o passado? Disse Eleonora a Abelardo, que perde a calma: _ Não foi bem isso que eu disse. Você está distorcendo. É claro que a gente tem coisas a fazer. Mas o que somos senão o presente? E a nós cabe preservar a mensagem do passado destinada ao futuro. Esta é a missão ética do presente. O presente é a passagem, e nós, viventes deste tempo, os passadores, disse. _ Porque então o papai passado não nos deixou este aviso, ou esta mensagem fora do cofre, explicitando para nós quando ele queria que o cofre fosse aberto? Retrucou Eleonora. _ Se você insiste em saber, acho que este momento não é o tempo certo de abrir o cofre. E isto não é uma coisa que precisa estar determinada em decreto. É para ser intuída, sentida... - falou Abelardo.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Pandora

Com o mito da caixa de Pandora, Laurindo queria alertar sobre perigos que rondavam o ato de abrir o cofre. Acaso ele achava que a vila corria riscos com a abertura do cofre?

_ Isso não é digno de ser levado a sério. Não acredito que ainda hoje existam pessoas que creditem valor a essas invencionices primitivas, disse Eleonora bruscamente.

_ Eu Invejo seu entusiasmo. Verdade. Quando digo isso, refiro-me ao sentido grego da palavra, que quer dizer sopro divino. O entusiasmado vive a exaltação extrema da inspiração divina; traz um deus dentro de si. Você é uma ótima narradora, disso ninguém duvida. Mas tem ainda muito que aprender, retrucou Laurindo.

_ Apenas sigo o meu caminho de filha da narração. Sim. Fiel aprendiz de meu destino. Mas não sou escudeira das tradições, disse Eleonora orgulhosa.

_ A verdade do mito segue a lógica do inconsciente. Todo mito encerra uma intuição compreensiva que não requer provas para ser aceita, interveio Inácio, outro respeitado narrador. Toda vez que tinha oportunidade, Inácio introduzia nos debates conceitos psicanalíticos que devorava em livros especializados. Interessava-o as particularidades que cada situação apresentava, e costumava dizer que queria entender o que movia os homens.

_ Não acham que o vaso de Pandora se assemelha ao psiquismo humano? Pandora, uma semideusa, ambiciona se realizar como mulher de Zeus, tornando-se uma deusa. Deseja realizar-se na plenitude do Olimpo. Eu a imagino como símbolo da pura pulsão que também anseia pela realização através de sua descarga. A esperança é o resto que sobra da eclosão pulsional. Ela permanece presa à borda do vaso, como o representante da pulsão se mantém no limiar do psiquismo. No cofre, na caixa ou, se preferirem, no inconsciente, residem forças pulsionais que ameaçam o eu, simbolizado no mito pelo simples e mortal homem. Quando a caixa é inesperadamente aberta por Pandora - por forças pulsionais irreprimíveis - os malefícios dominam a vida do homem. Os malefícios representam o desprazer que o eu se esforça por evitar, muitas vezes inutilmente, mantendo-se no fogo cruzado da pressão do conflito que está além de seu entendimento. No mito, o homem age movido por forças que o transcendem, desígnios dos deuses. Teme que sua ação possa provocar a ira dos deuses que, a rigor, se vingam impiedosamente. No psiquismo, o eu também teme as represálias do terrível pai, forma que algumas vezes assume o vigoroso supereu. O recalque é tal como a força que mantém bem fechada a tampa da caixa. Funciona como uma barra que assegura ao eu limites que o mantém distante da ameaça da descarga pulsional, evitando assim o desprazer. Não estou seguro se todos vocês têm noção do que seja o recalque. Vou apenas lhes dizer que se trata de um conceito tão importante, que chega a ser considerado por muitos o pilar sobre o qual se sustenta toda a construção da psicanálise. Para início de conversa, o recalque constitui o núcleo original do inconsciente. Este conceito vocês não podem dizer que desconhecem. Porque já falei sobre isso muitas e muitas vezes. O inconsciente, como um saber que não se sabe, remete-nos à idéia de um lugar desconhecido, à outra cena, como... como acontece na história de Alice no país das maravilhas. Pois bem, o recalque designa o ato de fazer recuar alguma coisa, como uma repulsa em admitir algum aspecto penoso da realidade. Por isto diz respeito ao processo de manter no inconsciente tanto idéias quanto representações ligadas às pulsões, cuja realização pode afetar o equilíbrio do funcionamento psíquico. Podemos falar em recalque quando, por exemplo, uma história vivida, uma situação, um pensamento ou algo imaginado não encontra tradução, quer dizer, não pode ser expresso em palavras, e se mantém inacessível, porquanto sua tradução produziria desprazer. Como se o desprazer perturbasse o pensamento e, com isso, emperrasse o processo da tradução, disse Inácio.

_ A caixa de Pandora significa que uma ação pequena e bem-intencionada pode liberar uma avalanche de repercussões negativas. A linguagem mitológica com todos os seus paradoxos nasce da necessidade de se conhecer mais. Lembro aos amigos que na narração mitológica, os significados são muito ampliados e sua redução explicativa pode destruir a compreensão holística do mito. O bom ouvinte é aquele que entra na narrativa sem preconceitos e sem a racionalidade das teorias, para acompanhar o que a história tenta criar. Disse Laurindo dirigindo rápidos olhares a Eleonora e a Inácio. Laurindo mantinha intacta sua crença no mito. Achava que a transcendência temporal dessas histórias resguardava em si o aspecto de universalidade que era a essência da atemporalidade que tanto prezava.

Enquanto isso, nas conversinhas, as dúvidas apareciam e, dissonantes, se multiplicavam: _ Não acha que ele está querendo nos amedrontar, impedir que a gente abra o cofre? _ Não sei não, o cofre fechado pode ser um sinal... merece respeito. _ Se o cofre está fechado durante tanto tempo e ninguém sabe dizer por que isso se deu, é a hora de sabermos o que tem nele.

_ Pandora destampa a ânfora e a civilização inicia uma era de mazelas sem fim. Esse traumático retorno pulsional atinge frontalmente o homem, formatando, seus traumas, sua vida psíquica. Males de diversas ordens aguardam pelo homem no mundo. Em todos os tempos sempre foi assim. Este é o enredo desta história que pode nos ajudar a refletir sobre as mazelas e os traumas dos novos tempos. Se não sofremos mais a ação compressora da severidade normativa, monstro neurotizante da época vitoriana, nem por isso deixamos de fabricar loucuras, neuroses. Estudiosos da cultura nos ajudam a enumerar algumas mazelas, essência dos traumas psíquicos de nossa época. Dentre as mais discutidas estão: a falta de referência, o descrédito na autoridade, o enfraquecimento dos laços comunais, a morte do pai, a crise ética da cultura, a ausência de limites no plano político. Muitos acreditam que elas são efeitos da liberalização excessiva que reina no mundo atual. Isso nos preocupa. Que é feito do homem sem ideais para cultuar? Os ideais são as fronteiras da humanidade do homem – alicerces morais de seu eu. Ideais são as barreiras construtoras da vida coletiva. Sem ideais, o que resta ao homem senão se transformar num joguete nas mãos de suas filhas, deusas de nosso tempo - a ciência e a tecnologia? Estas, suas crias, são indiferentes ao homem. Não lhes importa as crueldades que o homem perpetua no mundo, tampouco lhes sensibiliza, se no caminho árido e escuro que precisa trilhar, ele não se encontra feliz. Fazem do homem um ser alienígena de si; escravo do Outro devorador. Estar aprisionado no tempo presente, sem passado para reverenciar, à espera de um futuro cada vez mais incerto, isto é o que queremos para nossos filhos e netos? Disse Camilo, com sua voz encorpada.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A caixa de Pandora

Laurindo fez menção de voltar a falar. Em seguida a uma rápida pausa para imprimir um tom mais grave a sua fala, disse: _ Eleonora tem feito um trabalho admirável aqui, mas é inexperiente. Não conhece as velhas histórias do mundo. Seria inconseqüente nos deixarmos levar pelo o que ela quer. Acaso não nos recordamos da história de Pandora e dos transtornos que seu ato provocou à vida no início dos tempos? Vou relembrar-lhes a história da caixa de Pandora, caso a tenham esquecido.

Ele tinha especial apego à mitologia. Conhecia os mitos como poucos. Considerava-se um estudioso do assunto, e de fato o era. Gostava da atemporalidade dos mitos. Seu olhar se perdia no passado em busca da explicação que não encontrava no presente para entender o futuro. Era o caráter universal das coisas que na verdade buscava, e tinha sempre na manga uma história mítica para contar. Quanto a isto nunca estava desprevenido. Era previsível que trouxesse um mito para reinar no centro da discussão. Iniciou seu relato, enquanto todos se remexiam em seus lugares em busca de uma posição mais confortável.

_ Pandora, a detentora de todos os dons, foi a primeira mulher que existiu. Eis a origem desta palavra composta por: pan, que traduzo por todo e doron que significa dom. Zeus ordenou a Hefesto, deus das artes, que modelasse uma mulher semelhante às deusas imortais. Hefesto criou então uma belíssima estátua de pedra, clara como a neve. Com um sopro, Atená animou-a com vida e ensinou-lhe a arte da tecelagem, e os outros deuses dotaram-na de todos os encantos. Afrodite deu-lhe a beleza, o desejo indomável que atormenta os sentidos e encantos que são fatais para os homens. Hermes deu-lhe a fala graciosa e encheu seu coração de artimanhas, ardis e astúcia. A história de Pandora nos remete à origem dos tempos, quando a terra, a água e o ar eram um só, e os deuses ainda não haviam interferido para separá-los. Antes que o céu e a terra fossem criados, tudo era Um, o Caos. Coube a Prometeu (aquele que prevê) e seu irmão Epimeteu (aquele que pensa depois, ou tardiamente) povoar a terra. Ambos foram poupados da prisão por não terem lutado contra os deuses nas disputas por territórios. Descendiam da primeira geração dos gigantes destronados por Zeus, os Titãs. Prometeu sabia que nas entranhas da terra dormiam sementes dos céus. Assim, pegou em suas mãos um punhado de terra, molhou-a no rio e obteve argila. Moldou-a carinhosamente até discernir uma imagem que fosse semelhante aos deuses. Assim deu forma ao homem, dotando-o com características boas e más retiradas das almas dos animais que já haviam sido criados por Epimeteu. Atená, deusa da sabedoria, ao ver a imagem semi-animada criada por Prometeu, admirou-a, e insuflou-lhe um espírito, humanizando-a. Mas esse homem humanizado, saído das mãos de Prometeu, ainda assim estava nu, vulnerável, indefeso, sem recursos. Sabedor das carências do homem, Zeus aproveitou-se disso. Voltou-se para a humanidade exigindo honras e sacrifícios em troca de proteção, instigando desconfianças e disputas entre eles. O que fez com que Prometeu intercedesse como advogado em favor das criaturas que havia criado. Ocorreu-lhe a idéia de por à prova o poder divino. Sacrificou um touro e dividiu-o em duas partes. Disse em seguida aos deuses que escolhessem uma parte e a outra caberia aos homens. Mas antes, colocou em um dos montes somente ossos, cobrindo-o com sebo, fazendo-o parecer maior que o outro, onde estava a carne e a pele do touro. Zeus escolheu o monte maior e ao descobrir que fora enganado, vingou-se recusando aos homens o fogo que poderia mantê-los vivos. Privou assim o homem de possuir luz na alma. Sentindo pena dos homens, Prometeu ensinou-lhes a enfrentar a vida diária e a cuidar de suas feridas. Para tanto, roubou uma centelha do fogo celeste e a trouxe a terra. Ao ver o brilho celestial que emanava da terra, Zeus, irado, arquitetou um plano de malefícios. Ordenou a Hefesto que criasse Pandora e a enviasse de presente a Epimeteu, a quem Prometeu havia avisado que não aceitasse nenhum presente dos deuses. Mas encantado com a beleza de Pandora, Epimeteu esqueceu as recomendações do irmão e a aceitou. Só compreendeu o que aconteceu, mais tarde, quando o infortúnio o atingiu. Pandora chegou a terra trazendo em seus braços um grande vaso fechado como presente de casamento a Epimeteu. Ela abre o vaso diante dele, e de dentro, como uma nuvem negra, escapam todas as maldiçoes e pragas. Desgraças que até hoje atormentam a humanidade. Pandora se apressa em fechar a ânfora que, entretanto, já se encontrava vazia. Com exceção da esperança que permaneceu presa junto à borda do vaso. Deste mito nos ficou a expressão caixa de Pandora que se usa em sentido figurado quando se quer dizer que alguma coisa, sob uma aparência inocente ou bela, é uma fonte de calamidades.