sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Des - amparo materno

Fui apresentada à mãe de Marco. Ela não havia comparecido no dia anterior para entrevista, nem justificado sua ausência, deixando-me entre intrigada e curiosa. Em geral, as mães atendem a esse tipo de chamado. Embora o meu trabalho para a audiência já estivesse concluído, sabia que aquele caso exigiria outros momentos de intervenção e poderia aproveitar o tempo de espera que antecedia à audiência para conhecê-la.
Era jovem, muito falante e simpática. Passarei a chamá-la aqui pelo nome de Carla.
Ela enfrentava uma situação delicada. Entregara Marco, e em função dessa atitude vivia muito tensa. Ainda não havia estado com ele. Sentia-se perturbada e temia vê-lo. Talvez esse temor justificasse sua ausência no dia anterior.
Entregar o filho à Justiça não foi uma decisão fácil de ser tomada. Ela esperava que Marco compreendesse suas razões. Justificou sua atitude com o argumento de que esta seria a melhor maneira de protegê-lo. Ela sabia dos perigos que rondavam o filho, embora desconhecesse as partes mais sombrias da vida que ele levava.
Mas agora que havia entregado o filho, não estava tão segura de seu ato. Sentia-se só e incompreendida. Muitas mães a condenaram alegando não entender como uma mãe podia ser capaz de denunciar o próprio filho. Sentia medo de uma retaliação por parte do tráfico. Dizia que sua casa estava cercada, e que quando saía percebia que estava sendo vigiada. Falava de homens que ficavam nos arredores da casa, que a seguiam quando se afastava mais das redondezas de onde morava.
Boa parte do tempo a conversa girou em torno desse medo que era muito presente, até chegarmos a Marco.
Revelou o quanto detestava o apelido do filho, e não conseguia compreender como ele não se importava, ao contrário, gostava. Carla não admitia que os colegas o chamassem de Ratinho dentro de sua casa. Era como se fosse uma luta apenas sua manter a identidade que havia escolhido para ele.
Contou-me sobre as dificuldades que enfrentou para cuidar sozinha dos filhos. Após a separação, Carla e os filhos foram residir num pequeno conjugado. Era tão concreta a necessidade de preservar a proximidade com os filhos, que os três dormiam muito unidos, os corpos colados, no mesmo colchão, como que selados pelo mesmo desatino de medo e solidão.
Enquanto Carla falava, eu formava a imagem de um ninho frágil e indefeso, longe da rua, os filhotes enroscados na mãe, em busca do calor de seu ventre, do cheiro afável de seu leite. A mãe, estreitada aos filhotes, em busca de conforto para a experiência de abandono que não suportava e que repartia com as crias.
Pela forma indubitável como se expressava, que essa fora a melhor forma que encontrara para viver sua maternidade e manter os filhos juntos de si, ela declarava a elisão, de sua consciência, das consequências que essa experiência poderia evocar nos filhos. A posição física de Carla na cama com os filhos, ao mesmo tempo permitia entrever seu sentimento de desamparo - a indeterminação que permeava sua existência. Acreditava que precisaria ser forte para o enfrentamento do mundo. Mas não se aceitava desempenhando a posição ativa que considerava ser masculina, que não condizia com seu ideal de contar com o homem como suporte da família.
Embebida nessa carência, essa mesma que a marcava, Carla não podia sustentar a contento a função de proteger os filhos. Antes, demandava ser protegida.

...o masoquista deseja ser tratado como uma criança pequena e desamparada, mas, particularmente, como uma criança travessa. (Freud, 1924)

Marco capturava essa falta e a incorporava como uma exigência sua. Urgia ser duro o suficiente para defender Carla. Fusionado nas malhas dessa identificação armadilha, o que nele ardia era a sensação de abandono. Feito mineral bruto que se mistura ao barro na composição da rocha, esse sentimento alhures se alojara mudo, intocável, indizível.
Marco enveredara por um caminho complicado: abandonou a escola sem completar o primeiro grau, envolveu-se com drogas e se marginalizou. Não gostava do pai, a quem de modo algum respeitava. A mãe era quem merecia seu respeito e seu carinho.
Era fácil para Carla justificar os fracassos do filho para a vida social regular. Não tinha o apoio do pai, não contava com o homem que havia escolhido para casar e ser pai dos seus filhos. Teve que se desdobrar sozinha para educar os dois filhos. Podia até indicar o momento em que Marco se evadiu de seu ninho, para expandir-se em atos desafiadores e transgressões sem limites.
Quando Marco fez treze anos acabou o regime de internato na escola. Eu os deixava na escola e ele nunca voltava para casa com o irmão. Foi aí que começou. Eu ia para o trabalho e ele ficava na rua. Comecei a receber reclamação de pichação, roubo de toca-fitas...
Marco estava excitado com a repercussão do acontecimento. Seu movimento para negar a autoria do ato se perdia num emaranhado de pequenas contradições.
Seus atos tiveram início aos treze anos, segundo ele, movido pela empolgação e a aventura. Roubava toca-fitas e revelava que não deixava de dar seus tecos. Era usuário de cocaína, tinha estreito relacionamento com algumas bocas de fumo, onde conseguia armas que utilizava em roubos. A confiança que gozava com os donos de algumas bocas, ele atribuía a sua lealdade, pois nunca dava volta em ninguém.
Sentia necessidade de demonstrar sua capacidade. Queria conquistar tudo e todos. Os carros sustentavam a ideia de que conseguia mulheres com mais facilidade. Achava que exercia fascínio sobre as pessoas, e pensava que isto se dava como fruto de suas ações desafiadoras. A seus olhos, suas ações lhe proporcionavam bens e dotes que acreditava não possuir.
Marco se considerava um jovem destemido, que ninguém e nada seria capaz de amedrontá-lo. Era preciso defender a mãe e o irmão. Mas sentia a compressão dessa responsabilidade que pesava e o amedrontava. O que dilatava nele a urgência de se metamorfosear em potência e de negar a fragilidade que minava seu íntimo. Em que Lei se apoiaria essa força da qual queria se impregnar?
Qual herói mítico, Marco partia a correr mundo em busca daquilo que lhe faltava. Quão mais indefeso se sentia, com mais urgência se entregava às exigências que havia erigido.
Sufocava seus medos nessa imagem de destemor que construíra para si, e lançava ao acaso seu apelo. Mas não sem ressentimentos.
Talvez a agressividade de Marco fosse expressão de um excesso que homogeneizava todos os perigos que ele não verbalizava. Mas o temor que parecia assombrá-lo, de perder a mãe, pelo menos esse, Marco podia manifestar em palavras.
Tê-la só para si no isolamento do ninho. Manter sobre ela a justa atenção da vigília na ação de guarda, eis a missão que considerava sua. Era preciso se prontificar para afastá-la dos perigos do mundo.
Não cansava de declarar sua devoção por Carla. Nem podia disfarçar os ciúmes que sentia. Como todo amor, o seu por Carla, emergia ambivalente, entrelaçado ao ódio. Marco não aceitava que estranhos se aproximassem dela. Carla deveria permanecer intocável à espera de seus furtivos retornos.
É possível que Carla nunca tivesse se dado conta, que a excessiva afeição com que revestia seu carinho materno alimentava e estimulava a intensidade emocional que Marco lhe dedicava. Os sentimentos que Marco nutria em relação à mãe eram fortificados pela crença de poder possuí-la, ainda que sob a constante ameaça de que outro aventureiro pudesse aparecer a qualquer momento para usurpá-la. Marco não tinha certeza se poderia se sustentar no lugar de objeto de desejo da mãe. De antemão, colocava-se na ofensiva contra a possibilidade de investida desse rival imaginário.
Marco havia construído o seu mundo de bravatas e aventuras. Era a fonte onde ia beber para revigorar suas forças, sempre necessitadas de novos tonificantes. Ele não podia manter-se em casa todo o tempo para proteger sua amada. Acreditava que se assim procedesse colocaria em risco sua família.
Marco se armou de uma identidade bárbara, mortífera, e temia por isso ser ele mesmo vítima dessa compulsão destrutiva. Tomado por certo entorpecimento do estado confusional, ia e vinha; voltava e retornava. Perseguido, em permanente fuga de si, dos outros, do Outro.
Marco quase não permanecia mais na casa de sua mãe. Adquirira uma casa no morro. Agora tinha sua própria vida. Mas quando pernoitava em casa, Carla fazia questão que dormissem bem próximos, como era habitual que fizessem. Haveria algo de excessivo nesse comportamento de Carla com os filhos?
A naturalidade com que Carla trazia o fato de dormirem juntos, de serem muito ligados, causou-me a sensação de que Marco não tinha deixado jamais de ser o pequenino bebê que ela um dia havia acalentado.
Mas Carla conhecia a precocidade sexual do filho:

Marco sempre foi um menino muito safado, desde pequeno.

Encorajado a valorizar a imagem de garanhão tão bem aceita e difundida na cultura, a palavra safado aparece no discurso da mãe, sob o tom ambíguo de uma reprimenda recheada de permissividade, e se repete no discurso de Marco, quase como um elogio.
Marco dizia ter duas namoradas. Uma, ele a tratava de playboizinha; e a outra, morava no morro com ele.
A playboizinha era do asfalto, morava na zona sul. Subia o morro atrás de drogas, aventuras, emoção... Ele a apresentava como um objeto de luxo, como um carro reluzente e possante que exibia. Ela era a sua curtição. Contrastava com a que vivia no morro, destinada ao uso diário, ordinário. Sobre as mulheres, no discurso genérico - ideal - Marco considerava:
Eu sei lidar com as pessoas, quando é preciso tratar bem, eu trato. Quando é preciso tratar mal, eu trato. Mulher a gente tem que tratar bem. Mulher não nasceu pra sofrer.
Mas Carla revelava outra versão, mais sádica, do comportamento de Marco quando se relacionava com as mulheres, fazendo valer a identificação com o pai onipotente e tirano.
Precisa ver como Marco trata a namorada. Grita com ela, manda ficar calada, puxa o cabelo dela...
No imaginário de Marco, a mulher brilhava como um objeto de consumo que o desafiava como qualquer outro, sempre a testar sua capacidade de fascínio. Era necessário submeter o objeto ao mando de sua palavra, que devia reinar imperiosa para revigorar a força de seu domínio.
A forma como Marco chegou à justiça me fazia pensar sobre como era presente a necessidade, para a família de Marco, explicitar a Lei.
Quando Marco se precipita na ação transgressiva, recorta com o ato seu objeto. Este então se distingue no terreno instável em que Marco se move, tal como a figura se desprende do fundo no ato da percepção. Carla encena o encontro de Marco com a lei: ela o entrega à justiça. O que move Carla nessa direção? Talvez fosse preciso provar a todos os seus esforços para fazer valer a lei. Com esse gesto ela finalizava o empenho iniciado por Marco de demandar uma Lei. Mas ao entregar o filho, Carla também se precipita no ato, dando início ao conflito que produz cena no palco de sua interioridade. Ela tenta, através da lei, restaurar a divisão entre certo e errado. Salta em busca da firmeza de uma lei indiscutível, deseja devolver qualquer cota de equilíbrio ao terreno movediço em que vê o filho se afundar.

Carla entrega Marco e foge da primeira entrevista. Ausenta-se daquele que seria o primeiro contato com a lei após o ato transgressor de Marco. Pressentia o perigo que rondava o filho, argumento que fortalecia ainda mais a decisão de entregá-lo. Mas também pressentia a ameaça que fizera pairar sobre si mesma. Sentia-se culpada. A fuga atestava a sua falta de convicção. A quem seu ato visava proteger, o filho ou a si mesma? Teria sido capaz de educá-lo? Teria feito todos os esforços que lhe cabia? Precisava mostrar a si mesma que reconhecia sua responsabilidade. Mas seu gesto deixava entrever a ambiguidade. Havia um movimento que insistia em buscar a força da lei, ao mesmo tempo em que em que havia um movimento de fuga da Lei.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Infelicidade de ser pai


A entrevista com o pai de Marco foi densa em conteúdo. JL colaborou de modo significativo, implicando-se na narrativa. Não era comum obter a colaboração do pai logo na primeira entrevista, por isso não contava com esse envolvimento que me soou como surpresa.
Marco era o filho primogênito e tinha um irmão. Os pais haviam se separado fazia sete anos, quando o menino estava com nove anos. A união do casal se deu em torno da gravidez inesperada da mãe de Marco.
Eram ainda muito novos quando se casaram. O pai estava com dezenove e a mãe com dezesseis anos. Eram estudantes e continuaram a ser sustentados pelo pai de JL.
Se existiam dúvidas em relação à união, elas diziam respeito aos impasses quanto às indefinições profissionais. Venceu o desejo de permanecerem juntos.
Passado a novidade que o casamento representava, a experiência foi se tornando cada vez mais conturbada. As incertezas cresciam na proporção em que aumentava o imperativo imposto sobrevivência. Situação que se agravou com o nascimento dos filhos.
As exigências da vida familiar se tornaram cruciais. Aspiravam por amor e independência, mas não atinavam que teriam que pagar e comprometer-se com esse projeto.
Os encargos da vida doméstica foram vividos como um fardo. Enfrentavam circunstâncias frustrantes e não faltavam motivos para lançarem acusações sobre o outro, com agressões físicas e ciúmes de ambas as partes.
JL buscou refúgio na bebida, culpava a mulher por não ter dado continuidade aos estudos. Chegava bêbado em casa e a submetia, juntamente com os filhos, a ofensas e agressões. Associava sua conduta violenta aos ciúmes que sentia da mulher. Achava que ela provocava situações para enciumá-lo. Não lhe era possível se confrontar a si mesmo como responsável pelas dificuldades que engendrava e que exorcizava embriagando-se com álcool e ilusões.
Tiveram alguns momentos pontuais durante a entrevista em que JL confessou que o comportamento dele como pai tivesse influenciado o ritmo de vida do filho.
Buscou defender-se como pôde. Dizia que havia mudado, que era outra pessoa, que não bebia desde o dia em que decidiu frequentar a igreja protestante. Referia-se a um processo de conversão: era evangélico, havia casado novamente e não batia na mulher, com quem mantinha uma boa relação. Queria deixar claro que não era uma pessoa ignorante. Formara-se e percebia como era importante ajudar o filho a sair das dificuldades em que se havia metido.
As lembranças que Marco evocava quando se remetia ao tempo em que os pais viviam juntos desvendavam a imagem de um pai agressivo, contra o qual ele tinha que lutar para defender a mãe. O pai não era alguém com quem pudesse contar.
Marco residia com a mãe e seu irmão de quatorze anos. Mas após a separação dos pais, o rapaz tinha a liberdade de triangular sua moradia. Ora estava com a mãe, ora com o pai, ora com os avós paternos. Quando começava a se sentir pressionado mudava de casa. Situação cômoda para ele e os familiares que nunca assumiram o problema. A família sempre deu atenção fictícia ao rapaz que era mimado pela mãe e pelo avô.
Marco era o neto preferido até se afastar em definitivo da escola. O avô o presenteava sempre. Ganhara bicicleta, mobilete, roupas e tênis de griffes famosas. O pai me contava essas coisas, porque de algum modo queria provar que o jovem não carecia de bens materiais.
A partir de certo momento da entrevista, JL começou a relatar os problemas que havia vivido. O pai de JL esperava que ele se dedicasse ao futebol. Era bom de bola. Treinou no juvenil de um conhecido clube carioca e na equipe profissional de outro não tão famoso.
Embora gostasse bastante de futebol e jogasse bem, JL não suportava a disciplina que o atletismo lhe exigia. Não gostava de acordar cedo para treinar, mas levou adiante o projeto de se tornar jogador, até o dia em que aconteceu um desacordo incontornável entre ele e o pai. JL queria continuar jogando no time juvenil onde se sentia bem enturmado, o pai queria que ele fosse para o time profissional.
Contrariado com sua impotência para fazer valer seu desejo, JL aproveitou a primeira oportunidade que teve para destruir a carreira de jogador. Após machucar-se seriamente na virilha durante um dos jogos, necessitou afastar-se dos treinos para tratamento médico. Continuou estendendo as licenças médicas até abandonar o futebol.
JL negou ao pai aquilo que ele mais queria: o sucesso do filho no futebol. O abandono da carreira futebolística foi um ataque do filho contra a autoridade paterna. Mas, deixou-o em dívida com o pai.
Ao contrariar o pai, JL abdica do lugar de filho amado, lançando-se fora da experiência com a autoridade, mantendo-se numa indefinição subjetiva. É do incômodo desse fora-de-um-lugar que JL fala ao contar sobre o naufrágio de seu casamento, o afogamento na bebida, a mulher que sempre teve que disputar com todos esses outros que excitavam sua rivalidade.
A incerteza de ser amado pela mulher exacerbava seus ciúmes e justificava seus incontidos acessos de fúria. Não era filho, nem marido, nem pai, função esta que nunca pudera assumir.
Marco reedita a história de seu pai. JL também criou expectativas em relação ao filho. Queria que ele jogasse futebol. Achava que o menino tinha talento com a bola. Mas tal como havia acontecido entre ele e seu pai, Marco o frustrara, ao assumir os riscos de sua rebeldia radical com relação a qualquer lei.
JL não difere dos pais com os quais entramos em contato na Justiça. Antes, ele se enquadra como um protótipo. A figura do pai ou padrasto na vida familiar dos jovens transgressores, na maioria das vezes, está associada a lembranças de sofrimento, omissão e ausência.
JL estava vivendo um momento de virada: considerava-se convertido. Queria ajudar o filho. Mas o momento de Marco era outro. Ele rejeitava com veemência a aproximação do pai. Não via na imagem do pai qualificativos morais que justificassem apelos de mudança.
O pai que Marco via quando JL ia lhe visitar era aquele pai imaginário da sua infância, a quem odiava. As dificuldades da relação de Marco e JL acenam para o que há de mais típico nos romances familiares que lidamos na Justiça.
Os repetidos retornos de Marco ao circuito judicial nos levavam a interrogar sobre seu apelo. Seus atos cada vez mais desafiadores se postavam como símbolos de tentativas fracassadas de provar, para si mesmo, que a Lei de fato existia.
Quando Marco rememorava as brigas constantes de seus pais, ele se colocava na cena, no papel ativo do herói que agia em favor da dama indefesa. Quixotesco, ele brandia o cabo de vassoura que tacava no pai. Na mais incontestável inversão, Marco se imaginava como o elemento ternário, capaz de pôr um termo àquela guerra sem fim. Na verdade, as investidas sádicas de JL contra a mulher nunca foram tão ameaçadoras aos olhos de Marco, que sempre intuiu a farsa do pai para provar sua força e virilidade. A dramaturgia do pai apenas atestava a sua impotência de doação ante a mulher, que ele duvidava poder de fato possuir, deixando entrever a questão edipiana que o atormentava.
A força estruturante da função paterna independe da ação moral eficaz ou ineficaz do pai real. É o caráter radicalmente exterior da função do Pai simbólico em relação ao pai real que incute a promoção estruturante. A abrangência do Pai simbólico ultrapassa qualquer contingência do homem real. O papel simbólico do pai se ordena na atribuição imaginária do objeto fálico. O que se faz necessário, é que haja um terceiro mediando o desejo da mãe e do filho, para que seja significada sua incidência legalizadora e estruturante.
O pai real é investido como pai simbólico, pela mediação do pai imaginário. Referência ao pai, que se associa à ideia do desejo da mãe, estatuto de um puro significante.
A horda primeva, que Freud descreve em Totem e Tabu, é formada por um bando de irmãos que vivem sob a liderança e repressão sexual de um pai violento, que possui e vigia todas as fêmeas contra possíveis investidas sexuais dos filhos machos. Enciumado, o pai expulsa os filhos do bando, tão logo eles se tornem grandes o suficiente para pôr em risco seu poder absoluto de líder.
Animado por sentimentos contraditórios em relação a esse pai tirano, invejado e admirado, o bando se une em torno do desejo de despojar-lhe de seu poder. Matam-no, apaziguando o ódio que por ele sentiam. O remorso pela morte do pai os enche de culpa. O que os leva a renegar seu ato e à renúncia sexual. O sentimento de culpa gera dois interditos fundamentais - a proibição de matar o pai e de obter satisfação com a mãe - que atuam na cena edípica.
O conhecimento sobre o mito do pai primitivo e dos sentimentos ambivalentes que animam seus filhos permite-nos entender a sobrevivência de uma mitologia infantil arcaica, que compõe a geografia da vida psíquica, e que resiste a modificar-se, a despeito de toda racionalidade.
A atribuição fálica feita pela criança ao pai permite-lhe reconhecê-lo como castrador. Mas o surgimento do pai simbólico se dá na medida em que a criança o investe também como um pai doador diante da mãe, porque a criança supõe que a mãe encontra junto ao companheiro o objeto desejado que ela não tem. Uma vez instaurada essa suposição, em que o pai imaginário é colocado como concorrente no jogo fálico, inscrever-se-á a dialética do ser e do ter.
Todas as vezes que Marco se refere a JL, enfatiza uma conotação de intensa rivalidade, cuja imagem paterna aparece como um homem fracassado que nada conseguiu conquistar na vida, sequer o amor do próprio pai.
O ódio que a fala revoltada de Marco revelava fazia pressentir seu aprisionamento na trama imaginária de uma identificação renegada.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Assim conheci Marco


Quando Marco entrou na sala do Padre Severino para ser por mim entrevistado, naquela inquietante manhã de segunda-feira, eu havia acabado de conversar com seu parceiro. O medo primitivo já domado, olhei para a silhueta franzina do jovem que entrava na sala.
Era difícil supor que ele fosse autor do ato que lhe imputavam. Tinha aspecto frágil, era simpático e falante. Seu corpo fino, o rosto levemente encovado, as orelhas um pouco avantajadas e os olhos vivos, pequeninos, pareciam espreitar o momento propício para a fuga ou o ataque.
Aparência que compunha perfeitamente com seu nome de guerra. Era conhecido pelo apelido de Ratinho. Nomeação que ele aderira integralmente, como um elogio.
Nome que reaparece em diferentes momentos do discurso. Imagem que povoa os sonhos de Marco: ratos que aparecem em abundância, escalam móveis, passeiam destemidos pela cama e pelo quarto. Cena de um único símbolo que se repete, que se reproduz, reaparecendo nos diferentes lugares do quarto.
Nome-significante, autônomo em relação à significação mantida inacessível; nome que adquire a função de representar e de determinar o sujeito.

Sem que o sujeito possa de modo algum se dar conta, sem que ele saiba, literalmente, nada daquilo que está fazendo, basta simplesmente que ele seja incitado ao desenvolvimento da incidência significante que ele próprio introduziu como necessário à sua sustentação psicológica para que, desenvolvendo-a, tire daí uma certa solução, que não é forçosamente uma solução normativa, nem a solução melhor(...) (Lacan, 1995, p.364-365).


O gosto pelo apelido, o quase abandono do nome próprio, coincidia com a descoberta de uma possibilidade nova de existir, com o afastamento cada vez maior da convivência familiar. Marco conta que fugia da escola. A mãe o acompanhava até o portão do colégio, onde o deixava e seguia para o trabalho. Malgrado o zelo materno, ele retornava para casa. Justificava-se dizendo que não gostava de acordar cedo, voltava para dormir até tarde.

Eu me lembro: esgotos, porões, cavernas, sótãos, túneis, galerias, fendas, sarjetas, fossos, fossas sépticas, tanques, valas, bueiros, poços, latas de lixo, monturos, armazéns, despensas, galinheiros, chiqueiros, currais, estábulos... Meu mundo de rato - uma vida submersa em sombra, em trevas, em tons cinzentos, em penumbra e em escuridão, crepúsculo e noite, afastado do dia, da luz, do sol ofuscante, da claridade, dos raios penetrantes, das superfícies reluzentes e deslumbrantes. (Zaniewski, 1995, p. 17).


A casa servia-lhe de toca onde se escondia, evitando o enfrentamento, o encontro, o Outro, a vida social que lhe esperava e que rejeitava. Casa-útero na qual buscava imaginariamente estreitar-se, aconchegado, no colo cálido de sua mãe.
Aninhou-se e aliou-se melhor onde encontrou o antídoto para sua fragilidade. Quando se apartou da vida que desprezava no asfalto, e buscou entrincheirar-se no morro, e preparou-se para a aventura do ataque. Tivera a oportunidade de consolidar certa escolha subjetiva, sua forma peculiar de dominação do mundo, modo como conquistou possibilidade de reconhecimento.

"Na rua sou respeitado, as pessoas têm medo de mim. Eu tenho fama. As pessoas sabem quem é o Ratinho."


Mas ainda assim não deixava de ser um ratinho que sempre voltava para casa, onde sua mãe, a despeito de sua própria fragilidade, o esperava disposta a protegê-lo dos perigos que não compreendia.
Certamente não era apenas do fracasso social que fugia. Embora tivesse estudado apenas até a quinta série do primeiro grau, Marco apresentava desempenho escolar mediano, e sobressaía com desenvoltura nos esportes. Havia sido campeão no futebol do colégio e ganhara medalhas de ouro e prata no judô.
Havia uma grande expectativa por parte dos homens da família em relação ao sucesso de Marco no futebol. Mas algo de muito particular aconteceu com essa trajetória. A entrevista que realizei nesse mesmo dia com seu pai, a quem chamarei de JL, lança um pouco de luz nessa questão.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

A ocorrência


O fato aqui narrado aconteceu nos anos noventa, no Rio de Janeiro. Como era de se esperar, tratou-se de um acontecimento lamentável que tomou a todos de surpresa. Naquela época, havia grande descontentamento por parte da população com a insegurança da cidade, e o assalto que culminou com a morte da vítima era um fato banal, considerando o cotidiano violento da metrópole.


Os autores da grave infração eram dois adolescentes. A intenção deles no ato era puxar um carro, ação que já havia sido encomendada por traficantes. Missão que foi levada a efeito, pois que após o homicídio, eles conseguiram roubar outro carro e levar até o morro onde os traficantes os esperavam.


Esta narrativa incide sobre o desdobramento do caso judicial de um dos rapazes, a quem dei o nome fictício de Marco, cuja história, em nada original, obriga-nos a confrontar as dificuldades de um jovem comum, como tantos outros que conhecemos e, por isto mesmo representante fiel dos anseios da geração contemporânea. Convite à reflexão sobre as interrogações em pauta nos nossos dias.


Na época em que Marco fora mantido sob custódia, modificações decisivas foram implantadas no sistema de proteção à infância e à juventude: a gerência do sistema passava da esfera federal para a estadual.


A entrada do estado na gerência desse tipo de atendimento foi muito conturbada. No início dessa passagem, funcionários federais e estaduais trabalharam lado a lado. Eles representavam visões distintas na forma de abordagem do atendimento dedicado aos jovens.


Os federais, que eram antigos, esforçavam-se por mostrar a capacidade para dominar a situação das escolas, muito debilitadas, há anos funcionando em situações precárias. Os estaduais, que eram novos, criticavam o fato dos federais só se preocuparem com a segurança. Os novos diziam estar interessados em melhorar a qualidade do atendimento. Os federais possuíam um inegável poder de liderança e tinham uma linguagem afinada com a cultura do jovem, enquanto que os estaduais começaram a perceber a dureza das condições de trabalho: instalações precárias, exigindo reparos, as exigências imediatas dos juízes, as cobranças do Ministério Público, a pressão do número de relatórios a serem apresentados, os prazos das audiências, a necessidade de manter vigilância quanto a fugas, as cobranças da sociedade... Era o imediato que pressionava, impedindo que se pusesse em prática a nova filosofia que apregoavam e que não cabia naquelas condições.


A nova filosofia não havia sido pensada para ser aplicada em escolas de grandes proporções. O modelo tinha que ser tropegamente adaptado à realidade, e vencer a rotina era o maior desafio que se colocava.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Enquanto espero...

 Eu aguardava na sala cinzenta e fria enquanto inquietações tomavam de assalto minha cabeça. A prática da psicologia na área judicial nos faz confrontar uma série infindável de questões de ordem técnica e ética.


Sempre tentei escapar do puro exercício pericial, em defesa de trabalhos que aproximassem a justiça de outras instituições, públicas e privadas, em favor da formação de uma rede que pudesse nos unir a outros profissionais, especialmente os que militavam nas áreas de educação, saúde e desenvolvimento social.


Naqueles minutos que precediam as entrevistas, eu me interrogava sobre os meios e os poderes de que dispomos, nós, profissionais da área de saúde mental, para construir o laudo que aquela circunstância exigia.


Preocupava-me com a responsabilidade colocada nas mãos do perito para explicar as motivações que levaram ao ato e para compreender a pessoa do transgressor. Matutava sobre as contradições e ambiguidades que uma perícia nos faz constatar, lançando-nos diante das fronteiras nem sempre bem definíveis entre o bem e o mal, a responsabilidade e a irresponsabilidade, o normal e o patológico.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

No início... o susto!

Era domingo, eu estava trabalhando, sentia-me envolvida pelas leituras que andava realizando para escrever um projeto que deveria apresentar em breve. Ensaiava colocar as ideias na tela quando o telefone tocou. Era a coordenadora do núcleo de psicologia do qual eu fazia parte. Ela me pedia para realizar o estudo de um caso.

Tentei me esquivar. Falei da dedicação que me estava exigindo escrever o projeto, mas ela contestou dizendo que todos estavam assoberbados. Além do mais o juiz havia pedido que eu assumisse o caso. Tentei questionar trazendo à tona nossas antigas discussões sobre a tarefa impossível de atender às inúmeras demandas dele, cujo estilo dinâmico nos impulsionava a agir em muitas direções.

Não teve jeito, ela foi irredutível:

- Amanhã cedo você vai ao Padre Severino. O estudo deve estar concluído na terça-feira. Ele quer realizar uma audiência imediata.

Na verdade senti muito medo. O que esperavam de mim? Um sentimento arcaico de temor teimava em se apoderar do meu pensamento, povoando minha imaginação com fantasmagorias...

Como seria e como se comportaria a criatura ‘desnaturada’ da qual teria que extrair algo de verossímil sobre sua humanidade?

Duvidei se poderia realizar um estudo em tempo tão exíguo. Mas não ousei negligenciar a determinação. No dia seguinte estava eu, armada com meu medo e minha solidão, a caminho do Instituto.

A diretora me aguardava e logo liberou dois jovens para que pudesse entrevistá-los. Mais tarde chegariam os pais e eu aproveitaria a oportunidade para entrevistá-los também.

Apesar da aparência decadente e precária das instalações, o Instituto mantinha uma estrutura mínima: as oficinas, a escola, os atendimentos, tudo funcionava em estado de espera... Definições políticas que nunca enfim chegariam. Eu pensava que aquela realidade penosa, a qual já estava acostumada, era o fundo do poço. Não podia imaginar o quanto ainda ela iria descer...

Naquela época, eu realizava uma pesquisa sobre a reincidência infracional. Investigava as implicações psíquicas nos atos de repetição. Fazia pouco mais de um ano que abrira o campo de pesquisa nas escolas destinadas a jovens infratores. O que me deixava muito atenta aos acontecimentos que se desenrolavam no cotidiano dessas escolas.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Apresentação do tema

Realizarei uma série de postagens, todas referidas a um caso institucional, que ilustra o que aqui chamo ‘clínica da violência’, no qual atuei e sobre o qual me detive em estudo quando trabalhei na Segunda Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

A solução

Muita água rolou ainda naquela noite.

Não se chegava a nenhuma conclusão. Até que uma voz soou macia, trazendo como oferenda outra possibilidade ainda não pensada. Talvez agora fosse a hora de desfazer o impasse.

A voz era de Margarida, a responsável pela biblioteca. Ela, em geral, se mantinha calada nas reuniões. Mas nessa noite falou. Estava um tanto aflita com a inevitável exposição pública que o ato de falar exige:

_ Acho que Eleonora tem toda razão. Contudo não sabemos o que está guardado no cofre. Cada um tem uma idéia diferente. Nós já avançamos muito no tempo. Então acho que por isto ou por aquilo é melhor mantermos o cofre fechado. Lembram do sótão? Por que não colocamos o cofre fechado lá, enquanto não temos certeza de que queremos abri-lo.

_ Como ninguém lembrou antes? O sótão. Sim, Margarida apresentou uma saída que merece ser considerada, disse Laurindo. E, brincando completou: _ Não é a toa que você se dedica à biblioteca. Sabe que a palavra biblioteca apareceu na Grécia com o significado de cofre dos livros?

Eles se lembraram de um lugar inexplorado no Teatro da Colina que também quedava esquecido. Na verdade nem chegava a ser um sótão.

Havia no teto da biblioteca um disfarçado alçapão que dava acesso a um espaço morto, um cômodo tão diminuto, mas repleto de coisas velhas: latas de tinta, pedaços de madeira, resquícios da construção do Teatro. Ele fora mesmo pensado como um quartinho para guardar entulhos, velharias. Por que o cofre não poderia ficar ali recluso, em sua recusa de abrir-se, preservando nessa nova clausura, seus segredos? Sairia da cozinha, da vista de todos, e abriria espaço para a modernização que os novos tanto queriam.

Diante dessa descoberta a abertura do cofre foi adiada. Naquela noite se resolveu seu destino. Ninguém podia garantir se a hora de abri-lo havia chegado...

O cofre foi tirado da cozinha e levado para o pequenino sótão, onde permaneceu por um tempo indefinido. Até que um dia, ele e sótão, foram novamente esquecidos. E o cofre se tornou a cápsula do tempo de Extima.

Quando Extima estiver também completamente esquecida, e o Teatro da Colina não for mais que uma ruína, vestígios de lugar nenhum, por entre matos que se alastram dominando o teatro, o cofre cápsula ainda sobreviverá fechado, intocado, em meio a restos de cimento e pedra, a céu aberto.

Um dia ele será encontrado. Solto e flutuante no inapreensível tempo, e será resgatado por curiosos visitantes que o arrombarão, desvendando a força seus segredos, na esperança de encontrar evidências históricas que possam contar-lhes sobre a forma de viver dos antigos habitantes daquele remoto e estranho lugarejo.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

O sonho de Abelardo

A discussão tomava rumos inesperados. Mais pareciam crianças que se desorientam em meio a disputas por brinquedos, que narradores experientes. Camilo pediu um tempo:

¬_ Vocês estão dominando demais. Vamos parar com esse bate e volta. Outras pessoas também querem participar. Abelardo se dirige a todos.

_ Desculpe se eu não me contenho e insisto em falar, mas é que tive um sonho na noite passada... Eu preciso contá-lo. A platéia acena com gestos de aceitação. Abelardo então contou o sonho:

_ Sonhei que eu pegava alguns objetos, um bonequinho velho de madeira que meu avô tinha me dado, uma moeda tão grande como eu nunca vi outra igual, uns recortes de jornal, e outras coisas que não sei dizer o que eram. Eu fechei todas essas coisas dentro de uma lata, e tentava enterrá-la. Não sei bem dizer onde, acho que era o quintal dos meus pais... Depois, o que consigo lembrar é que eu estava agitado, e cavava a terra apressadamente com as próprias mãos, as unhas negras. Da terra, extraí um baú com uma porção de papéis velhos, amarelados. Peguei os papéis, eu tentava ler o que estava escrito. Não conseguia entender nada. Agoniado, olhava aqueles papéis como se fossem hieróglifos. Haviam partes apagadas. Páginas inteiras que a tinta estava esmaecida. Em outras, os trechos eram incompreensíveis, como se tivessem sido escritos em uma língua que eu não conhecia. Pedi ajuda a alguém, que não sei quem... parecia um professor, um especialista, não sei, para ver se ele conseguia traduzir. Ele falava alguma coisa que eu não conseguia ouvir, pois ao mesmo tempo havia uma música que tocava alto e encobria o que ele dizia. Eu desligava a música, e tudo voltava a se repetir. Ele falava, a música tocava; ou, o contrário, a música tocava, ele falava. Mas de repente tudo me pareceu claro como dia. Eu entendi o que ele queria me dizer. Só que não sei mais o que era. Esqueci. Porque, em meio ao desassossego e a excitação que sentia, acordei com a voz irritada de minha mulher que dizia: ‘_ Desliga de uma vez a porcaria desse relógio.’ Aí eu entendi que a música que eu ouvia no sonho, e que me parecia tão melodiosa, era o som do alarme do relógio que disparava. Eu automaticamente o desligava, mas não conseguia desligar o mecanismo que acionava o alarme. E ele voltava a tocar minutos depois com maior insistência. Depois, no banho, comecei a lembrar do sonho e a pensar na reunião que a gente teria hoje à noite, na decisão que a gente precisava tomar. Talvez tenha ido dormir um pouco preocupado com isso. Mas para mim, o sonho trouxe a seguinte revelação: O cofre é uma cápsula do tempo. A nossa cápsula do tempo. Só que não adianta agora querermos conhecer seu conteúdo.

_ O sonho de Abelardo me leva a pensar sobre a arte da decifração. Cada pessoa carrega consigo um cofre onde guarda e protege seus segredos. Só que algumas perdem a chave de acesso, ou esquecem o segredo. Não é fácil ter acesso ao que se quer fechado. A abertura do cofre é sempre uma ação muito delicada. O cofre fechado instiga. O cofre aberto revela o que se queria secreto e, nesse ato, esvazia todo o seu sentido, disse Inácio.

_ Se pensarmos nas aventuras que os homens são capazes de se lançar em busca de um cofre fechado... Onde pode levá-los apenas a suposição de tesouros escondidos... O cofre fechado aguça a ambição e proclama os riscos das disputas sem fim; incita lutas fatais entre irmãos; justifica ou serve de pretexto para combates bíblicos sangrentos, disse Eleonora. O cofre fechado representava para Eleonora o que permanecia intocado e que precisava ser mexido, desmistificado. E completou sua fala dizendo: _ Vocês não acham que é preciso acabar de vez com as velharias e com as superstições que nos rondam? O cofre está oxidado. Vocês não vêem que ele se degenera a cada dia?

Seria possível em um encontro desatar o novelo das disparidades? O destino do cofre pendia suspenso. O tempo entrava em agonia como o cofre que se paralisara, como que incorporando em seu corpo metálico a atemporalidade da paisagem que cercava a vila. O cofre era o que estancara. E mostrava a todos o feitiço do tempo: o processo de tornar-se aquilo que não se é, perpetuando a repetição e, assim, a agonia que petrifica e sustenta a paralisia.