segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Cai a máscara, aparece o disfarce

Hora da audiência, momento da justiça colocar em ação a sua verdade - factual. O gabinete da diretora do Instituto, utilizado para esse fim, se transformava. Sua mesa, o púlpito em que os olhares se prendiam. Naquele lugar, iria transcorrer o núcleo da ritualística. A sala, não muito grande, comportava um sofá e algumas cadeiras, onde se acomodam as pessoas. Estava repleta. Do lado posterior da mesa estavam posicionadas as figuras centrais da liturgia judiciária: o juiz, o promotor, a defensora, o escrivão. O lado oposto ficou reservado para o acusado. Atrás dele, estavam os pais e as demais pessoas que compunham a pequena audiência pública.

Faltava entrar em cena aquele que a havia motivado. Havia certa agitação no ambiente. O ligeiro suspense, sua densidade, proporcionava a gravidade necessária à trama que iria se desenrolar. Os trejeitos inquietos do juiz ajudavam à produção desse clima, cujo estilo pessoal, às vezes imprevisível, coloria de expectativa o início da audiência. Instantes de concentração para que a autoridade escolástica encarnasse, naquele presente e naquela pessoa, o rigor milenar de sua transmissão, para que a verdade, envolta em véus, fizesse sua rápida aparição, permitindo que o representante do grande ausente, pudesse com ela jogar diante de todos: curiosos, fanáticos, incrédulos. Responsável por essa ambientação dramática, o juiz a protagonizava e dirigia.

Quando Marco entrou na sala, na mesma sincronia, o juiz preencheu o ambiente com voz grave e audível, perguntando a um de seus auxiliares se as testemunhas já estavam na sala ao lado. O funcionário confirmou com um aceno. Em seguida, inquiriu se a imprensa também estava acomodada. Disse que não queria comunicação entre as testemunhas e a imprensa; pediu atenção redobrada dos funcionários quanto a esse particular. Por fim, determinou que não houvesse interrupção a partir daquele momento.

Fiquei surpresa. Não havia visto qualquer movimentação dessa natureza na escola. Ao final da audiência compreendi o blefe e seu efeito sobre o desenrolar dos acontecimentos. Era possível que nada disso tivesse sido combinado. O juiz era uma pessoa impulsiva, e sabia garantir com desenvoltura o seu protocolo original. Driblava a ortodoxia.

Marco ensaiou dirigir um olhar para os pais que estavam sentados atrás dele. Não insistiu no gesto que lhe exigia decisivo giro de cabeça. Registrou de relance o que pesquisava: a presença do pai e da mãe. Não falara com ela desde que fora preso. Provável que ainda não tivesse definido se a atitude da mãe em denunciá-lo havia sido punitiva ou protetiva. Talvez fosse mais interessante manter a ambiguidade do gesto.

O juiz pediu que o jovem apresentasse a sequência dos fatos. Marco contou uma versão distorcida e tola, chamando para si um ar de advertência do juiz, que lhe pediu precisão no desenrolar dos fatos. Ele se mostrou reticente, modificou aqui e ali alguns elementos da história e atiçou a ira do juiz. Uma crescente inquietude tomou conta da sala. O juiz demonstrou irritação. Cerrou os punhos, jogou-os contra a mesa, falou que não admitiria encenação. Ordenou ao adolescente que contasse os fatos sem mais delongas, sem mentiras, sem rodeios. Declarou conhecer todos os detalhes.

Marco titubeou, olhou ao redor, viu-se sem chance de fuga. Dirigiu um olhar furtivo à mãe que esperava ansiosa pelo desfecho da situação.

O juiz o inquiriu ainda mais uma vez, e, percebendo a vacilação do rapaz, disse que mandaria entrar a primeira testemunha.

Marco titubeou, esboçou dois rápidos movimentos para ver a mãe, como que pedindo para que se retirasse, denotando dificuldade de se desnudar diante dela. Mas percebeu que o juiz estava a ponto de pôr um termo na tolerância que não sentia. Sem mais demora iniciou sua fala.

Com voz transfigurada, Marco trouxe à superfície da palavra, a alteração que nele se processava. Dissociação que lançou por terra sua máscara. Sem vestígios de emoção, abriu fogo lançando seu relato. Era outro que falava, a voz fanha, mecanizada, de um boneco. Des-sintonizado, como um vinil fora da rotação, revelou naquele instante o seu disfarce.

Daí em diante, expressou-se com vocabulário rude, talhando assim com nitidez a propriedade metonímica de sua dissimulação demente.

Contou o que lhe cabia revelar, sem economia de detalhes, com a linguagem chula com que tipificava seu disfarce. O conteúdo desse discurso alterado tornou-se corriqueiro em nossa cidade, por isso o que fica aqui registrado não surpreende, nem pega ninguém desavisado, embora nos incomode a feição grotesca da realidade.

Os traficantes de um morro do Rio, mandaram Marco puxar um carro com a intenção de desovar o presunto de um X9 que eles precisavam dar fim. Com o intuito de dar cabo dessa missão, Marco desceu o morro, fez contato com o outro adolescente que o acompanhou na ação. Enquadrou o homem que primeiro lhe atravessou o caminho naquele momento em que vivia o auge do seu desvario desfeito em ato. A morte desnecessária desse homem, vítima do ato, foi consequência de uma trapaça do absurdo acaso. Deu-se em virtude de um breve gesto, em que ele esboçara uma frustrada tentativa de reação.

Os dois algozes fugiram do local após a ação desastrada, com a determinação de cumprir a ordem dos traficantes. Entorpecidos pela ambição de conquistarem a confiança da bandidagem, enquadraram outro homem, taxista, que trabalhava naquelas imediações. Obrigaram-no a subir o morro e completar junto com eles a estupidez do que haviam iniciado: uma sequência de atos bestiais praticados num mesmo dia.

Marco se sentia engrandecido pelo seu desafio. Sua maior gratificação era saber-se destemido, fórmula que cultivava para se conceber respeitado.

O juiz proferiu a medida de internação na Escola João Luiz Alves, dando enfim por encerrada a audiência.

Todos pareciam incomodados. A mãe chorava, uma dor que provinha da vergonha de perceber, nas minúcias, imundas, o caráter para lá de ousado do filho, que se tornou de repente para ela, um estranho, um desconhecido. Não dava para negar a evidência de tamanho distanciamento.

Somente nessa oportunidade tive contato com a aparição do estranho em Marco. Recalcado, ele retornaria apenas envolto em véus, mascarado. E a mãe iria para sempre esquecer aquele som metalizado da voz que saia da boca daquele que ela não poderia reconhecer como filho.

A justiça havia feito valer o seu lugar. Contudo, faltava maturidade para se compreender o que se personificara ali. Tudo estava conforme os ditames da lei. O que nos escapava era que a letra morta não daria conta de todo o recado. Àquela altura, fizeram-se todos de rogados, e as coisas pareceram ter sido postas em seus devidos lugares.

Ao término daquela audiência, ao menos naquela hora,  reinava a sensação de que a justiça era um corcel aveludado e veloz que, triunfante, transportava a verdade. Mas, a virtuosa dama protegia com zelo sua fama de inatingível.