segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A experiência analítica e sua direção

Na configuração do campo analítico, a transferência é o instrumento mais precioso da técnica que o psicanalista utiliza.

A existência etérea da transferência torna seu manejo particular. É essa qualidade impalpável e não generalizável que singulariza o trabalho do psicanalista: o define e o diferencia.

Define, porque situa e circunscreve o campo da análise, e particulariza a intervenção como irrepetível; diferencia, porque conota a abordagem com uma qualidade precisa, diferente dos demais profissionais.

Como uma bússola, a transferência não revela tudo, mas aponta o essencial para que certa direção seja perseguida no percurso da análise.

O temo transferência, numa acepção ampla, comporta a idéia de transporte, deslocamento, substituição. Em psicanálise, inferimos a existência de uma lógica inclusiva na própria afirmação que define o que é uma análise: não existe experiência analítica distinta da experiência transferencial.

Freud e seus seguidores fizeram uso do termo para nomear o processo no qual os desejos inconscientes referentes a objetos passam a se repetir no espaço analítico, sendo o analista colocado na posição desses objetos.

Lacan reformulou essa noção clássica e posicionou a transferência na relação entre o eu e o Outro. A transferência é aquilo que estrutura a relação ao Outro que é o analista. Todos os pensamentos que orbitam essa relação se revestem de um signo particular.

Freud afirma que o manejo da transferência é a dificuldade mais séria que o psicanalista enfrenta. Ele coloca em questão a autenticidade do amor na transferência. A exigência de amor aparece no trabalho analítico como expressão da resistência.

Propõe, como princípio, que esse anseio do paciente sirva para conduzi-lo a trabalhar analiticamente e a realizar mudanças, colocando o amor transferencial a serviço do trabalho analítico.

O amor atualiza antigas características, reedita protótipos infantis. O amor transferencial não foge a esse padrão. Ao contrário, exibe com intensidade ainda maior esse tipo de dependência.

Lacan amplia o debate: o desejo do analista é aquilo que revela a verdade do amor transferencial.
A transferência é tecida com os mesmos fios que tecem o amor. O amor transferencial é um artifício; um objeto que reflete outro.

A transferência é compreendida por Lacan como um engano. O analista ocupa o lugar do sujeito suposto saber, ao qual se atribui, como efeito da transferência, saber absoluto.

O que está em jogo aqui é a relação entre saber e amor.

O analisando transfere ao analista o seu saber. Contudo, a operação de transferência só se realiza no âmbito de uma demanda de amor.

Para Lacan, a transferência encena a própria realidade inconsciente.

Ele radicaliza essa idéia, ao dizer que a presença do analista é uma manifestação do inconsciente.

Seguindo essa formulação, somos convidados a ter acesso ao movimento do sujeito – o abrir e fechar, o contrair e expandir – que constitui a pulsação temporal desse movimento.

A presença do analista sustenta o conflito. E sua intervenção promove a manutenção do drama inicial – sua repetição.

A transferência permite o acesso à indeterminação do sujeito, atingindo o ponto primário do inconsciente.

Freud nos indica: transferência é resistência. Se nos fixarmos diante desse paradoxo - via de acesso e também ponto onde se interrompe a comunicação - apreendemos a natureza ambígua da função da transferência.

O analista acredita na força do conflito – onde há recalque, há algo que impulsiona – essa mola, quanto tocada, repete o ir e vir, o movimento essencial do conflito que se atualiza na clínica.

Ao acompanhar a trilha aberta no território beligerante, nos deparamos com o movimento pulsional, motor da atividade psíquica, que nomeamos como pulsão.

A pulsão carrega consigo um enigma. Ela marca a falta e a fragilidade do humano.

Marca a busca errante do homem e nos revela sua natureza vulnerável.

A pulsão contorna o vazio e em torno dele borda sua linha. Daí a variação de seu objeto: qualquer objeto serve; nenhum objeto serve.

Na análise, a transferência funciona como a antena que permite à pulsão emitir seus sinais, expressar sua potência. Posicionados no lugar que a transferência nos confere, podemos acompanhar a mobilidade constante da pulsão, sua flagrante inquietude.

Esta Postagem divulga a introdução de um trabalho, no qual foram apresentados e analisados quatro fragmentos clínicos, que não foram abordados aqui por motivos óbvios referentes ao sigilo clínico.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A magia da produção analítica

Rui estava dominado por uma sensação de atraso. Tinha a urgente necessidade de atualizar a experiência. Como era muito crítico, por vezes se atormentava com o sentimento de que iniciara tardiamente sua análise, assim como tudo o mais, pois demorava muito tempo para se decidir a fazer algo, a assumir um projeto, qualquer que fosse ele.

Sabia que tendia a retardar a conquista das coisas que desejava.

Temia ser surpreendido por um amigo que apresentasse repentinamente uma mudança de rumo; alguém que tivesse um projeto não revelado, o qual seria exposto apenas no momento de ser posto em prática.

Rui se lembrou de uma situação: um amigo muito próximo um dia lhe disse que ia viajar para fora do país, ia estudar no exterior. Quando o amigo lhe revelou a viagem, tudo já estava arranjado. Vinha se preparando para estudar e morar fora do país e nada lhe dissera. Rui não suspeitara que seu amigo tivesse planejando algo, que ele tivesse um plano em plena ação.

E se demorava a enumerar quantas coisas foram arranjadas com o objetivo de concretizar tal projeto, como a decisão de estudar no exterior, a pesquisa sobre lugares, professores, orientadores, a busca e a conquista da bolsa de estudos. Rui se perdia em detalhes, remoendo a deslealdade e a perda do amigo.

A traição se instalara como tema recorrente na fala dele.

Era como se ao redor as pessoas tivessem elaborando projetos às escondidas. Pessoas que agiam como se nada tivesse acontecendo.

Que coisas Rui projetava e amadurecia secretamente, longe da revelação analítica?

Por outro lado, que cartas eu poderia ter sob a manga para surpreendê-lo de uma hora para a outra tão negativamente?

Rondávamos ainda a questão da confiança? Ah, essa taça de cristal...

Creio que estávamos mais adiante. Já fertilizado, o solo transferencial em que delicadamente pisávamos guardava vasta extensão indizível, onde algo secretamente era cultivado, produzido, elaborado, inventado.