quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Bicho solto


Marco queria acreditar que alcançara o ideal, de bandido. Viveu naquele morro dias de aclamação de sua glória: pelo invejável destemor, pela submissão incondicional à autoridade daquela confraria, pelo respeito e fidelidade à lei estrita do bicho, do movimento do tráfico.
Bicho. Palavra que retém a alusão demoníaca de saber ter escolhido o mal como opção estética de vida. Não remeteria também a uma referência nostálgica aos contraventores do jogo do bicho, amigos rivais, velhos trapaceiros, a quem de alguma forma se homenageia, de quem se toma a liderança no mundo marginal?
Marco desenvolveu uma teoria particular sobre a condição de ser das coisas. A condição de ser dos objetos se coaduna com o quantum de energia que se lhes investe. Conforme essa teoria, o mundo é dividido em coisas fortes e coisas fracas, em pessoas fortes e pessoas fracas, em ações fortes e ações fracas.
Sua teoria muito bem encerra a mitologia do campo do crime. Não criara nenhum saber singular, apenas repetia o padrão, a doxa de seu grupo. Cumpliciados por essa mitologia, seduzidos pela ilusão coletiva, os membros do grupo concebem o mundo a partir dessa lógica binária.
Marco falava da confiança que havia conquistado nas bocas: não escorregava, agia dentro da moral. Dizia ser considerado e muito respeitado pelo que sabiam que ele era capaz de fazer.
O dono do morro era então concebido como um fera grande, homem forte, ideal que aspirava atingir. Marco também se considerava um fera grande. Feras pequenas eram os iniciantes, os soldados. Corajosos, sim, mas inexperientes.
Ele se considerava um modelo para os jovens iniciantes, e era reconhecido como tal. Sentia-se orgulhoso ao constatar que os feras grandes o colocavam nesse patamar.
         Colocar-se a serviço do tráfico - esse jogo mortal - implica desembaraçar-se dos propósitos individuais para lançar-se inteiro nessa cruzada.
O sentido da vida privada sede lugar à incorporação do mito. A força da interpelação mítica reside, assim, no apagamento da história pessoal: a suspensão consentida das singularidades.
Todavia, o sentido continua latente, a lembrar o desconforto da vida de menino frágil, que esconde seus temores. Sentido que se esvai para nutrir a forma do mito destemido.
Marco oferecia uma imagem reificada dos traficantes. Eles eram homens-força. Imagem mitificada na culinária do seu desejo.
Na criação dessa mitologia íntima, eles se metamorfoseavam em coisas, como homens-granada.
Fortaleza colocada inteira no ato, mas também na palavra empenhada. Desempenho cumprido com rigor religioso. Neles se pode confiar, dizia Marco. Ai daquele que se atreva a sair da linha, e faça coisa errada.
Marco não tinha inibições e convivia muito bem com essa ética que, no tráfico, encontra o ambiente propício para se enrijecer ainda mais. 
Sempre disposto a se enquadrar no modelo aceito naquele métier. Apostava suas fichas na carreira ascendente que trilhava no movimento.
Exagerava na dedicação para agradar seus chefes, realçando as qualidades valorosas que ampliavam os horizontes do negócio e o lançavam à frente na competição. Como faria qualquer jovem ambicioso que descobrisse, em si mesmo, uma inclinação, e se sentisse valorizado por realizar bem, seu ofício.

Eu via os traficantes e queria ser igual a eles. Eles têm fama, poder. Hoje eu tenho fama.

A coisa errada, de maior relevância, mais condenável no tráfico era alguém se revelar um X-9, se tornar delator. A aliança do grupo se concentra nesse mandamento básico: não trair. Único ato vedado.
Impedimento que garante a união e autoriza o atravessamento das maiores proibições como matar ou roubar. Abre o caminho à violação de todas as leis do código jurídico que sejam exteriores ao interesse do movimento.
Traição - transgressão máxima. Obediência - regra fundamental. Intencionalidades que se confundem no ato. Quem desobedece, trai. Quem trai, desobedece.
Se a obediência incondicional ao mandamento do grupo é a regra básica de sua sustentação, a traição se distingue como a transgressão intolerável. A traição, entendida como o atravessamento de um tabu, clama por vingança.
Os elementos do grupo, fervorosos seguidores desse princípio primordial da da aliança primitiva, entendem que a vingança deve recair, sem demora, sobre o transgressor. Por sua vez, ele mesmo, sabe não existir clemência para o seu ato. Requintes de crueldade, preparados sob a forma de ritos tribais, fazem parte dos dispositivos de vingança iniciados pelos membros do grupo que se sentem diretamente atingidos pela violação.
Marco conta como procedeu, certa vez, quando um parceiro, e amigo muito próximo, se revelou X-9. Fora chegada a hora de Marco pôr à prova sua fidelidade ao grupo. Não teve dúvidas quanto à missão a ele destinada.
Investiu na preparação do ritual de sacrifício para dar termo à vida do parceiro amigo. Cunhou o acontecimento de importância exemplar para os moradores e os soldados sob seu comando. Assim, encarregou-se da encenação macabra.

Nessa vida que a gente leva a gente não pode confiar em ninguém. Eu tinha um parceiro que era como se fosse meu irmão e ele me dedurou pros homens. Eu tive que dar uma grana pra eles me liberarem. Eu peguei esse cara, amarrei ele no poste na frente dos moradores e mandei um menor que é de minha confiança ir buscar uma machadinha que eu tinha trocado por cocaína na boca. Ele trouxe e eu arranquei a orelha dele, depois fui cortando parte por parte. Eu precisava fazer isso para as pessoas verem o que acontece com dedo duro. Depois peguei um copo, deixei cair o sangue dele e bebi. Fiz isso porque gostava muito dele.

Reeditou a cena mítica do assassinato e a atualizou numa cerimônia, repetindo a sequência de atos presentes nos rituais arcaicos do tribalismo: o guerreiro, rival morto, despedaçado e servido como alimento, era, justamente, o mais admirado. 
Ao contrário do tráfico, signo de força, a corporação policial era vista por ele como fraca. Formada por homens mentirosos, não cumprem o prometido. Extorquem, mineiram nas favelas e passavam a perna nos próprios colegas.
A polícia também encarnava seu mais temível perseguidor. Os policiais não ocupam posição definida: do ponto de vista estético, ético, subjetivo e social. Não assumem a escolha do crime como um caminho que abertamente possam seguir, nem se comprometem como policiais, ocupando um lugar, de fato, no controle social.
Permanecem indefinidos, numa zona obscura, ambígua, que justifica qualquer ato. Lugar que lhes permite promover as maiores inversões, sob o respaldo da oficialidade.
Que o mundo do crime e os policiais negociam, disso todos sabemos. Os traficantes dizem odiar essa indefinição da corporação policial. Ela não condiz com o ideal rígido que almejam: de extinguir toda ambiguidade.
Interessante notar como o exército serve de modelo para o tráfico administrar a organização precária do bicho. Embora seja uma instituição que não antagoniza, em organicidade, com a corporação policial, pois ambas mantêm composição estrutural semelhante: o militarismo, a hierarquia, a posição de defesa do estado, a formação do grupo em torno da liderança do pai, o comandante do batalhão.
Marco contabilizava na sua bagagem a morte de dois policiais. Trunfo que lhe rendia fama no bicho, e a cabeça a prêmio na polícia. Esse sucesso o fazia sentir-se cotado, afamado, temido, odiado, incorporando, em si mesmo, essa força mítica que amava e que buscava sorver na vida em forma de ato.
O perigo temido, que também amava, fazia dele um caçador a espreitar sua presa, e, tornava-o caça.
O pai de Marco, JL, também era percebido como um homem fraco. Marco se esforçava para esgarçar ao extremo essa diferença entre ele e o pai.
JL não era homem de se lançar a grandes desafios. Entregue ao alcoolismo, seu maior desvario, vagava como homem-menino perdido: não ambicionava substituir o pai nos negócios da contravenção, também não encontrava outro caminho.
Prisioneiro dessa história sem destino, JL se acomodou à ajuda financeira de seu pai, e ao escárnio de Marco, o qual odiava a incompetência dele, ou seja, a impossibilidade de JL para enfrentar uma vida de desafios.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

O herói globalizado



Marco era um típico representante de sua geração. Vaidoso, gostava de se vestir com roupas de marca, as quais ele considerava como fortes. Todos os seus objetos de uso pessoal precisavam ter essa mesma característica: serem fortes, custar caro.
Partilhava o gosto predominante – globalizado – sem distinção de raça ou classe e, assim, encarnava com propriedade a imagem paradoxal latino-americana.

Consumidores do século XXI, cidadãos do século XVIII, diria Canclini.

O mercado de moda jovem consolidado pela indústria têxtil data dos anos setenta do século passado. Antes, a moda era restrita a dois tipos de mercado: o da alta costura, voltado para uma clientela muito rica; e o produzido para a população em geral.
Os grupos de jovens que surgiram após os anos sessenta, cunharam formas de expressão muito próprias para comunicar o engajamento de contestação e de diferenciação social que buscavam, através do linguajar metafórico e hermético, das expressões artísticas, da forma de se vestir e de ornamentar o corpo, como modos possíveis de linguagem.
Os hippies e os punks iniciaram a criação de modelos que expressavam o estilo de vida existente no interior dessas culturas, originando a movimentação e crescimento dos mercados alternativos que se expandiram para muito além da proposta inicial, que era restrita a vendas de roupas usadas nos mercados de pulgas. 
Partiram desse mercado informal para a gestação de griffes que produzem a moda jovem, estabilizando um comércio constituído por jovens. As lojas empregam jovens e preservam a linguagem juvenil, situando esse mercado num lugar privilegiado para a criação de uma moda fina. 
Instituiu-se a tendência dúbia de criar um mercado tanto visando atingir o jovem como potencial consumidor, como produzir o signo jovem, como um objeto a ser consumido por todos, independente da faixa etária.

Marco também apreciava carros e motos, esses objetos lhe proporcionavam um algo mais para conquistar minas com facilidade. Achava que elas lhe davam mole por causa do carro e dos objetos que exibia. Divertia-se no fliperama com jogos como mortal combat, street fighter, ao som do encadeamento letrado do rap brasileiro e as jovens nos bailes funk.

  
A moda funk adaptou o senso estético dominante nas griffes mais conhecidas ao gosto peculiar da cultura desses grupos que desenvolveram interesse especial por roupas de marca: os bermudões coloridos, os bonés, os tênis, a camisa usada com os botões abertos para se vislumbrar as correntes que adornam o peito.
Esse estilo masculino, por excelência, contrastava com o gosto feminino. Moda que valorizava a forma do corpo: saias e blusas bem curtas, calças justas em tecido tipo cotton.
Vestir-se com roupas de marca, ostentar adereços e calçados importados não fazia parte da preocupação das garotas, voltadas para o despertar sensual presente no baile: o corpo propositadamente à mostra, os requebros excessivos, os corpos femininos que se tocavam entre si nas danças provocativas.
Ao contrário dessa tendência feminina, a indumentária dos rapazes tinha papel fundamental no jogo de sedução. Eles exibiam seus enfeites, signos de consumo, enquanto as jovens exibiam seus corpos, como se o corpo próprio fosse colocado em disponibilidade para o consumo.
Mercadoria posta em papel ativo, a garota era quem escolhia o consumidor que desejava. Seu olhar se voltava em busca daquele possuidor dos signos que ambos valorizavam para o homem. Uma jovem me revela:

Primeiro olho para os pés, e vejo qual o tênis ele usa. Se for uma marca legal, olho para o resto.  

Na cultura carioca, o funk inicialmente assumiu maior expressão nos bailes de subúrbio, como diversão pura, distanciada da onda de conscientização negra alimentada pelo soul, e da comercialização da música de balanço estimulada pela indústria fonográfica.
Nesses bailes, frequentados por milhares de pessoas, surgiram as danças coletivas com coreografias excitantes, passos ensaiados, tão afinados, que impressionavam pela unicidade que evocavam no olhar do espectador.
A festa servia para tudo e para nada. Diversão pura. Descarga de adrenalina, busca de uma vida sem limites, que no cerne guardava a promessa de apagamento do traço. Situava-se na fronteira do inédito. Não existem bailes como esses em nenhum outro lugar do mundo, segundo afirmou Hermano Vianna.
A qualidade da festa dependia da animação que o balanço raro da música importada, pouco conhecida, despertava. Mas a aceitação não era imediata. Antes, ela precisava ser testada, ver se servia para ser devorada. Uma vez aceita, era metamorfoseada, recriada na festa, em forma de refrões alegres e/ou obscenos.
Na festa reinava um erotismo contagiante, ora trabalhado nas coreografias espontâneas, ora apresentado como espetáculo em exibições programadas.
O clima alegre do baile se deve ao DJ, que se diverte em levar a massa ao delírio do transe, para apaziguá-lo em seguida, brincando com a domesticação do coletivo.
Na massa compacta que exacerbava excessos na pista de dança, o que pulsava latente era a possibilidade do massacre. Mas, de que massacre os DJs tinham medo?
A festa convivia com a expectativa da briga, do pânico, da morte que, às vezes, de fato acontecia. Mas o DJ apontava um perigo além que ele via como uma ameaça, porque pressentia o jogo perigoso que manipulava, ao lançar a proposta de fazer crescer a excitação libidinal até um ponto máximo, para depois dissolvê-la, tranquilizá-la no rala-rala, momento em que se formavam os pares românticos, em que se produzia uma movimentação que se assemelhava ao ato sexual, em que a fantasia de dissolução e de aniquilamento estava presente.
O DJ descrevia tal movimentação do baile como a ideal, identificando aí toda a sua maestria. Algumas vezes, a calmaria do aconchego não era alcançada e os ânimos se acirravam na explosão que transformava o baile em campo de guerra.
O que levava os jovens a buscar o baile como diversão? Muitos adolescentes ressaltavam o gosto pela música, pela dança, pela paquera. Outros diziam que eram movidos pelo prazer de brigar.
A possibilidade de haver brigas no baile era uma constante. Toda a sua organização trabalhava para manter estrito controle sobre a explosão. A empolgação excessiva era a tônica. Acalmá-la implicaria destruir o clima eufórico que melhor o caracterizava. Contudo, não era raro que a forte vibração terminasse em pancadaria.
            A emoção da luta entre galeras revelava o prazer do confronto dentro e fora do baile. A luta decidia a posição do grupo ante os demais e a reputação de cada membro dentro de sua galera.
A força da galera dependia da disposição de briga, em que a virilidade se desvelava no embate que transitava entre o lúdico e o erótico.
            Jovens moradores de bairros populares, favelas e conjuntos habitacionais uniam-se em pequenos grupos, agregavam-se em torno da proximidade espacial ou da adesão a determinado comando.
Na aparente disputa territorial, encenava-se o jogo entre grupos inimigos. As rivalidades eclodiam em diferenciações objetivas que garantiam a integridade do nós e o reconhecimento dos outros; diferenciação do eu que se encobria e se protegia, anônimo, no nós.
As galeras se reuniam nos bailes de clube, território livre onde o confronto podia ser potencializado conforme a liderança do DJ e da equipe que organizava o baile.
Na manipulação dos ritmos mixados pelo DJ a tensão se elevava e as brigas se intensificavam, momento de auge da festa. No baile chamado corredor, a orgia se traduzia no entusiasmo das brigas, comandadas pelos organizadores que dividiam o espaço físico em territórios para permitir o confronto aberto entre os diferentes grupos.
Mas, muitas letras de funk condenavam as brigas. Elas investiam contra a violência praticada nos bailes e entre as galeras, demarcando uma ideologia de classe, revolvendo a discussão politizada quase esquecida pela música popular.  

Surfista Zona Sul tem corpo morenão
Surfista Zona Norte queimado de alta tensão
Surfista Zona Sul desliza cheio de graça
Surfista Zona Norte com a mão suja de graxa
Surfista Zona Sul vai da Barra pro Havaí
Surfista Zona Norte da Central a Japeri.
(Rap do Surfista, Marlboro, Juca e Mosca)

No discurso cortante, pouco melodioso, sente-se fluir o realismo em estado bruto. A música novamente começava a se transformar em veículo de denúncia dos contrastes e das injustiças sociais.
Valorizando produções musicais, como esta aqui citada, que dramatizam a vida pobre e mundana das camadas populares, o funk abria espaço para se tornar o principal porta-voz das dificuldades cotidianas enfrentadas pelas comunidades periféricas.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Nasce o mito

 

            Marco pulou o muro da João Luiz Alves, correu, pegou um ônibus até uma favela próxima e foi direto para a boca de fumo.
Não conhecia ninguém naquele morro.
Ele se apresentou, valendo-se da fama de que se orgulhava.
Foi muito bem recebido pela confraria, que lhe garantiu:
- Sinta-se em casa.
Ofereceram-lhe comida e cocaína. Mas Marco nada aceitou. Não podia dar bobeira num morro que não era dele. A sobrevivência depende desse estado de alerta contra a autofagia que permeia as relações, mesmo as de solidariedade, entre os irmãos.
Pediu apenas dinheiro e uma muda de roupa.
Pegou um taxi e foi para o seu morro, onde se sentia seguro.
Lá, uma surpresa o aguardava.
Foi recebido com pompas de anjo 45.
Marco também gostava de acreditar que era protetor dos fracos e dos oprimidos. Tentava seguir o ideário que continha receitas de como devia agir um bom bandido: aquele que procura não entrar em conflito com a comunidade, busca sanear as necessidades; distribui aos pobres o que usurpa dos ricos.
Foi organizada uma festa em sua homenagem. Uma festança de arromba. O que implica dizer que todos os preparativos foram marcados pelo excesso.
O ambiente exalava abundância.
O som altíssimo da música funk dominava, como um chicote sonoro cortava o vento e presidia o ar, propagava-se muito além daquelas fronteiras, lutava com outros sons pela cidade até se render ao último limite.
Mas, na comunidade, o funk se viu abatido, amortecido pela queima colossal dos fogos de artifício, que lançavam ao espaço uma profusão de cores, enquanto a força explosiva amordaçava o som rítmico e grave que pulsava nos enormes alto-falantes.
Enciumados, os fuzis emitiam gemidos mortíferos, marcavam presença, gritavam à atmosfera a certeza de se saberem invencíveis.
A festa varou noites, entrou dias, enquanto houvesse força física a ser exaurida. Parceiros de comando que dominavam outros morros foram convidados para compartilhar a ocasião festiva.
A primeira noite da grande comemoração reuniu toda a galera no baile para a comunidade. Neste, não há tolerância com brigas. É um baile pacífico, de confraternização, em que não se misturam galeras.
Nos bailes de clube, ao contrário, os frequentadores sabem que se as galeras se misturarem irão guerrear. Neste, o motor da diversão não é tanto a música, a dança ou a paquera, mas o confronto que poderá ocorrer entre galeras e, entre essas e a polícia. Muitas vezes, a movimentação dos bailes de clube serve aos propósitos beligerantes das diferentes galeras e da polícia, para encobrir atos de vingança, para armar emboscadas contra os inimigos. 
O baile de comunidade é diferente, surge como uma doação do dono do morro. Por isto, cabe-lhe ditar as regras. Pode-se até dizer que se constitui como um baile ideológico. A organização conduz os participantes a saudarem os líderes do movimento, que são, afinal, os promotores do evento. Não deixa de ser um investimento de marketing, uma promoção formadora de opinião como qualquer outra.
O tráfico se assemelha a uma irmandade rudimentar em sua estrutura organizativa, gira em torno da amizade, da troca de favores; um mercado entre amigos, com regras a serem respeitadas, que se utiliza dos serviços da galera que forma. Tipo de ordem, cujas regularidades, por vezes, nos parecem mal delineadas, quase apagadas; outras, grotescamente cristalizadas.
Os limites desse campo são frouxos. Não apresenta a delimitação visível de uma instituição, de uma organização burocratizada, com estratégias definidas, metas a serem alcançadas nem a hierarquia férrea da máfia. Ele se inspira na cultura militar, com forte presença nos adereços, nas roupas, nas armas e na linguagem.
             Na força contagiante do baile, o êxtase hipnótico da galera atinge seu máximo com o aparecimento rápido, apocalíptico, das figuras centrais do comando, que oferecem aos olhos imaturos e sedentos, os signos que ostentam a exacerbação desse tipo de poder: fuzis AR-15, K-47, pistolas e granadas.
            No auge da euforia, os líderes do movimento aparecem exibindo correntes e os medalhões dourados. Instante em que incorporam personagens lendários: bandoleiros, cuja vida perigosa desafia a força e a astúcia de seus adversários - do crime e da polícia. Postam-se em cena como formas petrificadas: homens-ação, imagem pujante que compartilham com a galera atiçada.
Certa feita um jovem me contou, com exaltação, sua participação num baile, cuja maior atração fora a aparição de um líder convidado, que se apresentara com o corpo coberto de granadas.
São figuras como essas que adquirem para os jovens frequentadores conotação lendária, pelas histórias que rondam suas vidas aventureiras.
Erguem idolatrias, acalantam ilusões e embalam sonhos de onipotência.
Marco firmou presença triunfal no baile com sua indumentária arrojada. Arrumou-se a caráter para seu momento de glória: calça com estampa tipo camuflagem; duas cartucheiras cruzadas adornavam-lhe o peito nu, deixando à mostra a grossa corrente de ouro.
Do auge da fama, no topo do morro, Marco fez ecoar em sequências rítmicas algumas rajadas do fuzil AR-15.
Precisava despertar a atenção dos participantes do baile, que aguardavam por esse instante culminante.
Momento em que os jovens, ensandecidos, no ritmo do som, bradavam o nome do comando que dominava o morro. Apologia que dava o tom à festa. Era chegada a hora do clímax. A hora de sua aparição.
Os olhares se voltaram extasiados. Reconheciam-no:
_ Olha, é o Ratinho!
Era admirado, no cerne de seu magnético ser-tabu.
Era o superstar que dominava aquela noite.
Aclamado pela galera, era feito modelo; tornado mito.
A liderança mais forte o apresentava como exemplar.
Personificava o bandido-herói.
Era chegada a hora de anunciar sua maior recompensa: a promoção pela qual ansiava, depois de tantos feitos heroicos.

Marco assumiu a gerência da boca.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

A internação meteórica


Marco chegou na João Luiz Alves em agosto de noventa e quatro, em pleno período de mudanças administrativas, chamado de transição gradual. 
Era a primeira vez que atravessava os portões da Mansão. O que, de certa forma, representava para ele um elogio.
No campo em que escolhera brilhar, contar na bagagem com algumas entradas na João Luiz Alves significa um trunfo, uma carta mestra que permite lances para “boas jogadas”. 
Ele funcionou nessa direção: aproveitar a estadia para um lance que lhe fortalecesse no jogo.
O contexto institucional era propício. As regras móveis, como um terreno que se abre em decorrência de uma movimentação mais interior, e as coisas da superfície desabam antes da acomodação.
Marco não “aprontou nenhuma” por lá, sua permanência foi rápida. Meteórica. Perseguia um objetivo com clara determinação e todas as alianças que fez apenas visavam atingi-lo.
Não demorou muito para realizar sua jogada.
Fugiu. Sem estardalhaço.
Como? Pulou o muro. Simples assim.
            A fuga nada teve de espetacular. Não custou tempo nem dinheiro. Não foi preciso ser criativo, pois não precisou pôr em prática um plano engenhoso, tamanha a facilidade que encontrou. Fugiu, deixando para trás uma realidade que se esfacelou dentro de poucos meses.
            A tensão nas escolas crescia a cada dia, até culminar com o ciclo infindável de rebeliões que marcou a história da João Luiz Alves.
Uma das primeiras rebeliões aconteceu numa noite de sexta-feira, deixando um rastro irreparável de destruição na escola. Os adolescentes botaram fogo nos dormitórios, na cozinha, na administração e no refeitório. Quebraram grande parte do mobiliário. 
O incêndio durou cerca de duas horas até ser controlado pelo corpo de bombeiros, que se empenhou para que as chamas não se propagassem até o antigo posto de gasolina que existia no prédio. Houve explosões de bujões de gás e de um transformador.
O prédio foi tomado por tropas da Polícia de Choque e da Aeronáutica, que encurralaram os jovens no pátio da escola.
Era a segunda rebelião que acontecia na mesma semana, e se espelhava em outra ocorrida naquela mesma semana, no Padre Severino, de onde fugiram mais de noventa internos. 
Após as rebeliões, os corredores ficaram às escuras. Ameaçadores. No pavilhão da administração escolar, o que antes eram salas, dera lugar a enormes montes de pedras, restos do prédio onde se guardava prontuários, a história da instituição e dos alunos.
O quadro lúgubre não foi amenizado com medidas práticas por parte do estado e os adolescentes continuaram sendo mandados para lá. Exceto alguns, poucos, considerados de maior risco, que exigiam muito empenho da vigilância, passaram a ser custodiados no quartel da Polícia Militar.

segunda-feira, 11 de março de 2013

O contexto sócio-educativo da internação


 Inaugurada em outubro de 1928, um ano após ter sido aprovado o primeiro Código de Menores a vigorar na América Latina, a escola João Luiz Alves surgiu da necessidade de se desanexar o reformatório da Escola Quinze de Novembro que fora transferido e instalado na Ilha do Governador. 
            O espaço físico da João Luiz Alves era privilegiado, uma quinta enorme, num local aprazível, cuja finalidade era servir como colônia de férias. Prédio bonito, cheio de compartimentos envidraçados, difícil de ser vigiado, com diversos pontos vulneráveis, sugestivos a ocorrências de fugas (o ginásio, o auditório, a enfermaria, a unidade profissionalizante, o canto da disciplina, o galpão).
Os adolescentes gostavam da escola, chamada por eles de Mansão. Os monitores e os professores eram os mais importantes na convivência direta com os jovens porque, quando conquistavam a confiança deles, preservavam o fluxo de afetividade. Alguns se tornavam mesmo modelar e favoreciam o processo de identificação do jovem.
A passagem do atendimento da esfera federal para a estadual foi pautada na preocupação em não romper as estruturas já estabelecidas. Caracterizaram-na como gradual. Acompanharia a renovação de pessoal que deveria ocorrer no prazo de um ano. O esquema parecia bem calculado, como se as boas intenções pudessem superar todas as dificuldades impostas pela realidade.
            Logo no início ocorreu a polarização ideológica sintetizada na ideia de que os funcionários estaduais representavam o novo, uma nova filosofia de trabalho, e os federais representavam o velho, a experiência que deveria ser superada.
            Vencer a rotina era o maior desafio. 
Como eram recebidas as mudanças pela comunidade de internos? O aluno em geral é incisivo nas suas cobranças, algumas tão básicas quanto necessárias. É também muito desconfiado, nunca conquistou nada fácil, nem em casa nem na rua, a forma como aprendeu a conquistar as coisas foi no grito, na força bruta. A desconfiança é antes de tudo uma forma de sobrevivência.  
            Diante das circunstâncias instáveis que imperavam naqueles dias, as relações foram se deteriorando. Os alunos iniciaram uma série de fugas. Chegaram a exageros nas suas cobranças. Como conter os excessos era a questão que se impunha aos novos funcionários. Situação que incitou muitas revoltas e gerou um ciclo de violências incontidas.
Os conflitos se acirraram em todos os níveis: entre equipes dirigentes que rivalizavam dentro das escolas; entre políticos que estavam na arrancada derradeira para garantir suas posições no jogo político, em um ano de eleições; entre adolescentes, entre estes e a administração escolar.
Todos se aproveitaram das circunstâncias para consolidar posições nos diferentes campos em que estavam implicados.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Justiça é verdade em ação

Talhada nas fibras de madeira maciça da mesa do tribunal se destaca a inscrição: Justiça é verdade em ação. Enunciado mítico que revela o modelo lógico da liturgia judiciária, substância da narrativa jurídica.


A verdade em ação colocada nessa sentença como predicativo da justiça situa a historicidade, a circunstância, o caso particular, conduzindo a riqueza original do acontecimento para a esfera previsível dos procedimentos processuais. Eis o ritual de atualização da potência mítica que vive e se alimenta no além-histórico, na permanência imperativa da burocracia.


No significante mítico se apresenta a significação dada.


Plena de racionalidade, constituída por um sistema prévio: a instituição escolástica personifica-se na figura do juiz e na regra do contraditório.


O significado, como um jogo, é feito de palavras lançadas na atmosfera da sala, em que se confrontam os sentidos adversos: do acusado, das testemunhas, dos personagens que compõem a dramaturgia judiciária.


Misto de suposições, hipóteses e segredos, encapsulados em retóricas verdades-mentiras, amalgamadas na formatação almejada, cujo suporte se encontra na escritura sagrada.


A bíblia, símbolo central da liturgia, garante a veracidade dos testemunhos, o compromisso sagrado que se renova em cena para que prevaleça a verdade.


O germe da transmissão escolástica se incrusta na repetição ritualística do procedimento judicial, desafia o tempo e ressurge na atualidade, revigorando a mestria dos doutores da lei.


A força dessa transmissão se mantém viva na aura da atemporalidade e da impessoalidade que permite impor a significação sem análise.


No intermédio das formatações processuais, a história do acusado se esvai, mas seu sentido de todo não se extingue, permanece apagado, como que desmemoriado. Proceder no qual o sentido sobrevive como forma vazia e submissa. Essa transmutação é a mensagem que a inscrição mítica nos transmite.


Justiça é verdade em ação porque faz renascer, no ato dramático, a instituição escolástica, presença transparente da verdade atemporal. Significação prévia que agora coabita o corpo morto-vivo do sentido, fantasma que comanda esse corpo zumbi.


O ritual que se atualiza na encenação da audiência gira em torno da movimentação que é o ponto de contato da verdade escolástica, sua tradição dialética, com a maneira como esta se transmite no ato de censura dos dilemas atuais.


A instituição jurídica, envolta na aura de uma religiosidade sacra, vive da fruição dessa verdade eternizada como natural.


A atmosfera que se nos impregna é de apagamento do tempo. Sensação que ali se reúnem homens especiais, capazes de ler a letra morta da lei e, interpretá-la, imbuídos da sabedoria douta reservada aos iniciados.


Ainda que a prática judiciária oscile segundo o ideário e os princípios éticos que porta cada juiz, carregando para a prática interpretativa a influência viva de sua história pessoal, o poder que a sociedade deposita no exercício da magistratura seduz o indivíduo que a exerce, transforma-o em um quase deus.


Muitas vezes o juiz deposita sua fé nessa crença, sustentada não apenas pelo senso comum, mas sim autorizada pelos institutos sociais, passa a acreditar ser diferente dos demais.


Tocado pela atração do poder mítico que lhe é conferido, o juiz utiliza-o muitas vezes sem advertir-se dos perigos. Atração que poderá instá-lo, vulnerável, na região perigosa da exacerbação narcísica, do fascínio inebriante que cega, obseda e adoece.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Cai a máscara, aparece o disfarce

Hora da audiência, momento da justiça colocar em ação a sua verdade - factual. O gabinete da diretora do Instituto, utilizado para esse fim, se transformava. Sua mesa, o púlpito em que os olhares se prendiam. Naquele lugar, iria transcorrer o núcleo da ritualística. A sala, não muito grande, comportava um sofá e algumas cadeiras, onde se acomodam as pessoas. Estava repleta. Do lado posterior da mesa estavam posicionadas as figuras centrais da liturgia judiciária: o juiz, o promotor, a defensora, o escrivão. O lado oposto ficou reservado para o acusado. Atrás dele, estavam os pais e as demais pessoas que compunham a pequena audiência pública.

Faltava entrar em cena aquele que a havia motivado. Havia certa agitação no ambiente. O ligeiro suspense, sua densidade, proporcionava a gravidade necessária à trama que iria se desenrolar. Os trejeitos inquietos do juiz ajudavam à produção desse clima, cujo estilo pessoal, às vezes imprevisível, coloria de expectativa o início da audiência. Instantes de concentração para que a autoridade escolástica encarnasse, naquele presente e naquela pessoa, o rigor milenar de sua transmissão, para que a verdade, envolta em véus, fizesse sua rápida aparição, permitindo que o representante do grande ausente, pudesse com ela jogar diante de todos: curiosos, fanáticos, incrédulos. Responsável por essa ambientação dramática, o juiz a protagonizava e dirigia.

Quando Marco entrou na sala, na mesma sincronia, o juiz preencheu o ambiente com voz grave e audível, perguntando a um de seus auxiliares se as testemunhas já estavam na sala ao lado. O funcionário confirmou com um aceno. Em seguida, inquiriu se a imprensa também estava acomodada. Disse que não queria comunicação entre as testemunhas e a imprensa; pediu atenção redobrada dos funcionários quanto a esse particular. Por fim, determinou que não houvesse interrupção a partir daquele momento.

Fiquei surpresa. Não havia visto qualquer movimentação dessa natureza na escola. Ao final da audiência compreendi o blefe e seu efeito sobre o desenrolar dos acontecimentos. Era possível que nada disso tivesse sido combinado. O juiz era uma pessoa impulsiva, e sabia garantir com desenvoltura o seu protocolo original. Driblava a ortodoxia.

Marco ensaiou dirigir um olhar para os pais que estavam sentados atrás dele. Não insistiu no gesto que lhe exigia decisivo giro de cabeça. Registrou de relance o que pesquisava: a presença do pai e da mãe. Não falara com ela desde que fora preso. Provável que ainda não tivesse definido se a atitude da mãe em denunciá-lo havia sido punitiva ou protetiva. Talvez fosse mais interessante manter a ambiguidade do gesto.

O juiz pediu que o jovem apresentasse a sequência dos fatos. Marco contou uma versão distorcida e tola, chamando para si um ar de advertência do juiz, que lhe pediu precisão no desenrolar dos fatos. Ele se mostrou reticente, modificou aqui e ali alguns elementos da história e atiçou a ira do juiz. Uma crescente inquietude tomou conta da sala. O juiz demonstrou irritação. Cerrou os punhos, jogou-os contra a mesa, falou que não admitiria encenação. Ordenou ao adolescente que contasse os fatos sem mais delongas, sem mentiras, sem rodeios. Declarou conhecer todos os detalhes.

Marco titubeou, olhou ao redor, viu-se sem chance de fuga. Dirigiu um olhar furtivo à mãe que esperava ansiosa pelo desfecho da situação.

O juiz o inquiriu ainda mais uma vez, e, percebendo a vacilação do rapaz, disse que mandaria entrar a primeira testemunha.

Marco titubeou, esboçou dois rápidos movimentos para ver a mãe, como que pedindo para que se retirasse, denotando dificuldade de se desnudar diante dela. Mas percebeu que o juiz estava a ponto de pôr um termo na tolerância que não sentia. Sem mais demora iniciou sua fala.

Com voz transfigurada, Marco trouxe à superfície da palavra, a alteração que nele se processava. Dissociação que lançou por terra sua máscara. Sem vestígios de emoção, abriu fogo lançando seu relato. Era outro que falava, a voz fanha, mecanizada, de um boneco. Des-sintonizado, como um vinil fora da rotação, revelou naquele instante o seu disfarce.

Daí em diante, expressou-se com vocabulário rude, talhando assim com nitidez a propriedade metonímica de sua dissimulação demente.

Contou o que lhe cabia revelar, sem economia de detalhes, com a linguagem chula com que tipificava seu disfarce. O conteúdo desse discurso alterado tornou-se corriqueiro em nossa cidade, por isso o que fica aqui registrado não surpreende, nem pega ninguém desavisado, embora nos incomode a feição grotesca da realidade.

Os traficantes de um morro do Rio, mandaram Marco puxar um carro com a intenção de desovar o presunto de um X9 que eles precisavam dar fim. Com o intuito de dar cabo dessa missão, Marco desceu o morro, fez contato com o outro adolescente que o acompanhou na ação. Enquadrou o homem que primeiro lhe atravessou o caminho naquele momento em que vivia o auge do seu desvario desfeito em ato. A morte desnecessária desse homem, vítima do ato, foi consequência de uma trapaça do absurdo acaso. Deu-se em virtude de um breve gesto, em que ele esboçara uma frustrada tentativa de reação.

Os dois algozes fugiram do local após a ação desastrada, com a determinação de cumprir a ordem dos traficantes. Entorpecidos pela ambição de conquistarem a confiança da bandidagem, enquadraram outro homem, taxista, que trabalhava naquelas imediações. Obrigaram-no a subir o morro e completar junto com eles a estupidez do que haviam iniciado: uma sequência de atos bestiais praticados num mesmo dia.

Marco se sentia engrandecido pelo seu desafio. Sua maior gratificação era saber-se destemido, fórmula que cultivava para se conceber respeitado.

O juiz proferiu a medida de internação na Escola João Luiz Alves, dando enfim por encerrada a audiência.

Todos pareciam incomodados. A mãe chorava, uma dor que provinha da vergonha de perceber, nas minúcias, imundas, o caráter para lá de ousado do filho, que se tornou de repente para ela, um estranho, um desconhecido. Não dava para negar a evidência de tamanho distanciamento.

Somente nessa oportunidade tive contato com a aparição do estranho em Marco. Recalcado, ele retornaria apenas envolto em véus, mascarado. E a mãe iria para sempre esquecer aquele som metalizado da voz que saia da boca daquele que ela não poderia reconhecer como filho.

A justiça havia feito valer o seu lugar. Contudo, faltava maturidade para se compreender o que se personificara ali. Tudo estava conforme os ditames da lei. O que nos escapava era que a letra morta não daria conta de todo o recado. Àquela altura, fizeram-se todos de rogados, e as coisas pareceram ter sido postas em seus devidos lugares.

Ao término daquela audiência, ao menos naquela hora,  reinava a sensação de que a justiça era um corcel aveludado e veloz que, triunfante, transportava a verdade. Mas, a virtuosa dama protegia com zelo sua fama de inatingível.