quinta-feira, 28 de julho de 2011

A organização

Com o correr dos anos, novas gerações foram surgindo, sempre marcadas pela transmissão da tradição essencial de Extima. O que não impediu que modificações fossem pouco a pouco introduzidas nas tradições dos encontros.

A todos parecia muito salutar o gosto pela discussão democrática que começaram a cultuar. Quase como uma evolução natural dos encontros em que narravam histórias, passaram a achar que era preciso tomar cuidados com as histórias que contavam. Afinal, era o principal legado que tinham para deixar ao futuro. Por isto se justificava que tudo fosse minuciosamente discutido, votado, acordado por todos.

Mas eis que a partir de um momento indeterminável, ninguém mais sabia dizer o que se tornara mais importante, se os encontros onde se relatavam histórias ou as reuniões onde tudo era objeto de discussão. Passou a ser vital controlar a qualidade de tudo que faziam. Daí porque começaram a desenvolver critérios rigorosos de como as histórias deveriam ser contadas e formas corretas de melhor ouvi-las.

A partir de então, era preciso que primeiro contassem suas histórias na reunião para o coletivo decidir se elas deveriam ser narradas e escritas.

A premência em discutir os critérios passou a dominar a vida em Extima. Mesmo antigos e experientes narradores se pegavam, engalfinhando-se uns com os outros, em discussões acaloradas e improdutivas. Vez por outra acontecia um incidente, fruto da intolerância, e alguém ofendido se levantava e se ausentava. Para zelar pelo bem estar, considerou-se fundamental instituir instrumentos de medida precisos, porque se queria evitar erros de escolha, que se tornavam cada vez mais freqüentes, sobre quais histórias mereciam ser contadas.

Mesmo sabendo da importância que todos devotavam a essas novas medidas, por vezes se ouviam comentários sobre como a vida em Extima se estreitava no entrevero das exaustivas discussões. Um quê de sua elegante e ingênua cordialidade, estranheza sua de outrora, se esvaia.

Era possível reaver esse algo que se perdia? Seria isto parte de um processo irremediável? Ou por outra, dever-se-ia aceitar essa evolução como um tributo, exigência dos novos tempos? Todos viviam um pouco pressionados com a necessidade de mudar, não se sabia bem ao certo o que, como se Extima vivesse à beira da extinção.

Difundia-se cada vez mais entre eles a tese de que Extima precisava se atualizar, entrar de vez na temporalidade e integrar em sua vida as preocupações do resto do mundo. Premia adequar suas antigas histórias às novas modalidades de existir. Não que a tese fosse um consenso entre todos. Mas a questão permanecia ruminante.

Será que Extima deveria manter a tradição de seus encontros, mesmo sabendo que encontrar não era mais a tônica dos tempos correntes? Alguns (é bem verdade que poucos) defendiam que Extima não tinha que se adequar à temporalidade. Porque isto significaria alterar sua forma de ser. Pois que a atmosfera atemporal, a sensação que flutuava no tempo, a aura de esquecimento, eram características da região em que se erguera. O que propiciava a ela o ar misterioso que a tornava singular aos olhos do mundo.

Anos e anos a fio, as reuniões mantinham o mesmo ritmo. Alguns temas sem solução por vezes retornavam. As mesmas questões que inquietavam iam e vinham. Outras também surgiam para colorir as reuniões. Como podemos nos aparelhar para fazer avançar as discussões? Era sobre isso que se perguntavam muitas vezes. Outras preocupações também tinham lugar. O rio e a mata, por exemplo, careciam de cuidados urgentes, porque o rio já não era mais tão cristalino e a mata diminuía a olhos vistos. Contudo, urgia pensar um sistema de reunião capaz de dar conta das velhas e insolúveis questões.

Ao cabo de infindáveis reuniões, surgiu uma idéia que foi seriamente considerada. O que precisavam era de um governo e de um modelo para ser seguido. Foi a partir do amadurecimento dessas duas questões - a forma de governo e o código de conduta - que se chegou à solução. Era preciso eleger um conselho, formado por cidadãos de notória reputação, que pudesse representar as diferenças de pensamento da sociedade extimense.

Assim surgiu o governo de Extima, o Conselho Maior, ao qual caberia zelar pelo destino daquele povo, em conformidade com o Código Magno, instrumento ideal, cuja prima redação ficaria a cargo do próprio Conselho, uma vez constituído. Teve início uma época plena de expectativas, que grande contentamento lhes proporcionava. Haviam avistado a luz no fim do túnel para os rumos de Extima.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

No princípio, era a escuta

Tudo começou com um grupo de anciãos que se reunia regularmente, às quartas-feiras, em longos serões noturnos para contar, uns aos outros, histórias verídicas ou inventadas que se compraziam em colecionar. Naquele tempo, eles não podiam imaginar outras viagens, senão as que realizavam através das histórias que narravam. Esses encontros, que se repetiam há incontáveis anos, foram se tornando cada vez mais conhecidos e apreciados. Tomaram força, ganharam o mundo, e se tornaram a tradição mais respeitada em Extima.

No princípio, era a escuta. Assim era a vida naquele lugar. O laço que existia entre eles se estreitava no deslizar das ondas sonoras entre aquele que relatava e os outros que o ouviam. O simples ato hospitaleiro da escuta, a disponibilidade para ouvir, era considerado um bem precioso. Por conta dessa lendária transmissão oral das histórias, muitos forasteiros procuravam o lugarejo em busca desse tipo de raridade, dessa riqueza que Extima podia oferecer. Foi quando os anciãos, vendo o interesse que suas histórias despertavam, começaram a acreditar cada vez mais na importância dos encontros que realizavam. Resolveram então escrever as histórias que contavam para deixá-las como legado aos seus descendentes. E, assim, a leitura das histórias fora também se tornando ao longo dos anos uma transmissão tão prazerosa e estimada entre eles.

Para coroar a prosperidade em que viviam, os cidadãos do povoado se reuniram e construíram uma sede, que foi plantada no topo da mais alta colina. E, por causa disso, fora batizada de Teatro da Colina. Apesar da pompa do nome, tratava-se de um prédio modesto, mas que oferecia uma vista privilegiada de toda a região. Não possuía mais que cinco cômodos: a secretaria, o salão nobre, a biblioteca, a cozinha e o banheiro. Contudo, como um templo, enobrecia a existência da gente do povoado. Era a acrópole de Extima. Acidália foi levada para cuidar de tudo, da limpeza, da contabilidade, do cofre e do cafezinho. Dizem que ela fora pega a laço ainda menina nas matas além Extima e, desde então, trabalhava na vila servindo aos anciãos, que a ela confiavam até seus contos inéditos.

Os anciãos se deliciavam com o sabor de suas histórias. Ficavam muito orgulhosos ao constatar que elas despertavam o interesse de um público que só crescia. Os ouvintes, tanto mais gostavam das histórias quanto mais se achavam nelas, porque iam ao encontro de si mesmos quando as ouviam. Acreditavam que as histórias, como uma chave, lhes desvelariam porções de mistérios: os seus, e os da vida. Quanto maior o valor que o público atribuía às histórias, mais cheios de si os anciãos se sentiam. Verdade que existiam diferenças entre as histórias, de gênero e estilo, que dividiam o interesse dos extimenses, e povoavam suas mentes com o fervor que devotavam a essas pequenas diferenças. Suas histórias eram o seu reino; o seu mundo. Por isto era preciso defendê-las armados com a robustez da paixão. Porque as histórias haviam se tornado para eles nada menos que o sentido da vida.

E, como nas histórias de cavalarias, fazer crescer o próprio reino implica algumas vezes a conquista de outros. Era preciso impedir que aventureiros, invasores, saqueadores pudessem ameaçar a integridade de cada domínio. Em meio ao jogo competitivo onde se media a estatura dos territórios, cada jogador precisava zelar pelo seu, mesmo que para isso fosse preciso atacar o do adversário. Com cautela, para não acender no outro a rivalidade ancestral que reside num recanto inexplorado da alma. Porque, como acontece com o rio, ela pode transbordar e revirar de ponta cabeça até o mais cândido dos anciãos. Mas Extima encontrou o seu jeito de sobreviver aos rompantes acidentais dessa força indomável que vez por outra ainda a ameaça.