sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Des - amparo materno

Fui apresentada à mãe de Marco. Ela não havia comparecido no dia anterior para entrevista, nem justificado sua ausência, deixando-me entre intrigada e curiosa. Em geral, as mães atendem a esse tipo de chamado. Embora o meu trabalho para a audiência já estivesse concluído, sabia que aquele caso exigiria outros momentos de intervenção e poderia aproveitar o tempo de espera que antecedia à audiência para conhecê-la.
Era jovem, muito falante e simpática. Passarei a chamá-la aqui pelo nome de Carla.
Ela enfrentava uma situação delicada. Entregara Marco, e em função dessa atitude vivia muito tensa. Ainda não havia estado com ele. Sentia-se perturbada e temia vê-lo. Talvez esse temor justificasse sua ausência no dia anterior.
Entregar o filho à Justiça não foi uma decisão fácil de ser tomada. Ela esperava que Marco compreendesse suas razões. Justificou sua atitude com o argumento de que esta seria a melhor maneira de protegê-lo. Ela sabia dos perigos que rondavam o filho, embora desconhecesse as partes mais sombrias da vida que ele levava.
Mas agora que havia entregado o filho, não estava tão segura de seu ato. Sentia-se só e incompreendida. Muitas mães a condenaram alegando não entender como uma mãe podia ser capaz de denunciar o próprio filho. Sentia medo de uma retaliação por parte do tráfico. Dizia que sua casa estava cercada, e que quando saía percebia que estava sendo vigiada. Falava de homens que ficavam nos arredores da casa, que a seguiam quando se afastava mais das redondezas de onde morava.
Boa parte do tempo a conversa girou em torno desse medo que era muito presente, até chegarmos a Marco.
Revelou o quanto detestava o apelido do filho, e não conseguia compreender como ele não se importava, ao contrário, gostava. Carla não admitia que os colegas o chamassem de Ratinho dentro de sua casa. Era como se fosse uma luta apenas sua manter a identidade que havia escolhido para ele.
Contou-me sobre as dificuldades que enfrentou para cuidar sozinha dos filhos. Após a separação, Carla e os filhos foram residir num pequeno conjugado. Era tão concreta a necessidade de preservar a proximidade com os filhos, que os três dormiam muito unidos, os corpos colados, no mesmo colchão, como que selados pelo mesmo desatino de medo e solidão.
Enquanto Carla falava, eu formava a imagem de um ninho frágil e indefeso, longe da rua, os filhotes enroscados na mãe, em busca do calor de seu ventre, do cheiro afável de seu leite. A mãe, estreitada aos filhotes, em busca de conforto para a experiência de abandono que não suportava e que repartia com as crias.
Pela forma indubitável como se expressava, que essa fora a melhor forma que encontrara para viver sua maternidade e manter os filhos juntos de si, ela declarava a elisão, de sua consciência, das consequências que essa experiência poderia evocar nos filhos. A posição física de Carla na cama com os filhos, ao mesmo tempo permitia entrever seu sentimento de desamparo - a indeterminação que permeava sua existência. Acreditava que precisaria ser forte para o enfrentamento do mundo. Mas não se aceitava desempenhando a posição ativa que considerava ser masculina, que não condizia com seu ideal de contar com o homem como suporte da família.
Embebida nessa carência, essa mesma que a marcava, Carla não podia sustentar a contento a função de proteger os filhos. Antes, demandava ser protegida.

...o masoquista deseja ser tratado como uma criança pequena e desamparada, mas, particularmente, como uma criança travessa. (Freud, 1924)

Marco capturava essa falta e a incorporava como uma exigência sua. Urgia ser duro o suficiente para defender Carla. Fusionado nas malhas dessa identificação armadilha, o que nele ardia era a sensação de abandono. Feito mineral bruto que se mistura ao barro na composição da rocha, esse sentimento alhures se alojara mudo, intocável, indizível.
Marco enveredara por um caminho complicado: abandonou a escola sem completar o primeiro grau, envolveu-se com drogas e se marginalizou. Não gostava do pai, a quem de modo algum respeitava. A mãe era quem merecia seu respeito e seu carinho.
Era fácil para Carla justificar os fracassos do filho para a vida social regular. Não tinha o apoio do pai, não contava com o homem que havia escolhido para casar e ser pai dos seus filhos. Teve que se desdobrar sozinha para educar os dois filhos. Podia até indicar o momento em que Marco se evadiu de seu ninho, para expandir-se em atos desafiadores e transgressões sem limites.
Quando Marco fez treze anos acabou o regime de internato na escola. Eu os deixava na escola e ele nunca voltava para casa com o irmão. Foi aí que começou. Eu ia para o trabalho e ele ficava na rua. Comecei a receber reclamação de pichação, roubo de toca-fitas...
Marco estava excitado com a repercussão do acontecimento. Seu movimento para negar a autoria do ato se perdia num emaranhado de pequenas contradições.
Seus atos tiveram início aos treze anos, segundo ele, movido pela empolgação e a aventura. Roubava toca-fitas e revelava que não deixava de dar seus tecos. Era usuário de cocaína, tinha estreito relacionamento com algumas bocas de fumo, onde conseguia armas que utilizava em roubos. A confiança que gozava com os donos de algumas bocas, ele atribuía a sua lealdade, pois nunca dava volta em ninguém.
Sentia necessidade de demonstrar sua capacidade. Queria conquistar tudo e todos. Os carros sustentavam a ideia de que conseguia mulheres com mais facilidade. Achava que exercia fascínio sobre as pessoas, e pensava que isto se dava como fruto de suas ações desafiadoras. A seus olhos, suas ações lhe proporcionavam bens e dotes que acreditava não possuir.
Marco se considerava um jovem destemido, que ninguém e nada seria capaz de amedrontá-lo. Era preciso defender a mãe e o irmão. Mas sentia a compressão dessa responsabilidade que pesava e o amedrontava. O que dilatava nele a urgência de se metamorfosear em potência e de negar a fragilidade que minava seu íntimo. Em que Lei se apoiaria essa força da qual queria se impregnar?
Qual herói mítico, Marco partia a correr mundo em busca daquilo que lhe faltava. Quão mais indefeso se sentia, com mais urgência se entregava às exigências que havia erigido.
Sufocava seus medos nessa imagem de destemor que construíra para si, e lançava ao acaso seu apelo. Mas não sem ressentimentos.
Talvez a agressividade de Marco fosse expressão de um excesso que homogeneizava todos os perigos que ele não verbalizava. Mas o temor que parecia assombrá-lo, de perder a mãe, pelo menos esse, Marco podia manifestar em palavras.
Tê-la só para si no isolamento do ninho. Manter sobre ela a justa atenção da vigília na ação de guarda, eis a missão que considerava sua. Era preciso se prontificar para afastá-la dos perigos do mundo.
Não cansava de declarar sua devoção por Carla. Nem podia disfarçar os ciúmes que sentia. Como todo amor, o seu por Carla, emergia ambivalente, entrelaçado ao ódio. Marco não aceitava que estranhos se aproximassem dela. Carla deveria permanecer intocável à espera de seus furtivos retornos.
É possível que Carla nunca tivesse se dado conta, que a excessiva afeição com que revestia seu carinho materno alimentava e estimulava a intensidade emocional que Marco lhe dedicava. Os sentimentos que Marco nutria em relação à mãe eram fortificados pela crença de poder possuí-la, ainda que sob a constante ameaça de que outro aventureiro pudesse aparecer a qualquer momento para usurpá-la. Marco não tinha certeza se poderia se sustentar no lugar de objeto de desejo da mãe. De antemão, colocava-se na ofensiva contra a possibilidade de investida desse rival imaginário.
Marco havia construído o seu mundo de bravatas e aventuras. Era a fonte onde ia beber para revigorar suas forças, sempre necessitadas de novos tonificantes. Ele não podia manter-se em casa todo o tempo para proteger sua amada. Acreditava que se assim procedesse colocaria em risco sua família.
Marco se armou de uma identidade bárbara, mortífera, e temia por isso ser ele mesmo vítima dessa compulsão destrutiva. Tomado por certo entorpecimento do estado confusional, ia e vinha; voltava e retornava. Perseguido, em permanente fuga de si, dos outros, do Outro.
Marco quase não permanecia mais na casa de sua mãe. Adquirira uma casa no morro. Agora tinha sua própria vida. Mas quando pernoitava em casa, Carla fazia questão que dormissem bem próximos, como era habitual que fizessem. Haveria algo de excessivo nesse comportamento de Carla com os filhos?
A naturalidade com que Carla trazia o fato de dormirem juntos, de serem muito ligados, causou-me a sensação de que Marco não tinha deixado jamais de ser o pequenino bebê que ela um dia havia acalentado.
Mas Carla conhecia a precocidade sexual do filho:

Marco sempre foi um menino muito safado, desde pequeno.

Encorajado a valorizar a imagem de garanhão tão bem aceita e difundida na cultura, a palavra safado aparece no discurso da mãe, sob o tom ambíguo de uma reprimenda recheada de permissividade, e se repete no discurso de Marco, quase como um elogio.
Marco dizia ter duas namoradas. Uma, ele a tratava de playboizinha; e a outra, morava no morro com ele.
A playboizinha era do asfalto, morava na zona sul. Subia o morro atrás de drogas, aventuras, emoção... Ele a apresentava como um objeto de luxo, como um carro reluzente e possante que exibia. Ela era a sua curtição. Contrastava com a que vivia no morro, destinada ao uso diário, ordinário. Sobre as mulheres, no discurso genérico - ideal - Marco considerava:
Eu sei lidar com as pessoas, quando é preciso tratar bem, eu trato. Quando é preciso tratar mal, eu trato. Mulher a gente tem que tratar bem. Mulher não nasceu pra sofrer.
Mas Carla revelava outra versão, mais sádica, do comportamento de Marco quando se relacionava com as mulheres, fazendo valer a identificação com o pai onipotente e tirano.
Precisa ver como Marco trata a namorada. Grita com ela, manda ficar calada, puxa o cabelo dela...
No imaginário de Marco, a mulher brilhava como um objeto de consumo que o desafiava como qualquer outro, sempre a testar sua capacidade de fascínio. Era necessário submeter o objeto ao mando de sua palavra, que devia reinar imperiosa para revigorar a força de seu domínio.
A forma como Marco chegou à justiça me fazia pensar sobre como era presente a necessidade, para a família de Marco, explicitar a Lei.
Quando Marco se precipita na ação transgressiva, recorta com o ato seu objeto. Este então se distingue no terreno instável em que Marco se move, tal como a figura se desprende do fundo no ato da percepção. Carla encena o encontro de Marco com a lei: ela o entrega à justiça. O que move Carla nessa direção? Talvez fosse preciso provar a todos os seus esforços para fazer valer a lei. Com esse gesto ela finalizava o empenho iniciado por Marco de demandar uma Lei. Mas ao entregar o filho, Carla também se precipita no ato, dando início ao conflito que produz cena no palco de sua interioridade. Ela tenta, através da lei, restaurar a divisão entre certo e errado. Salta em busca da firmeza de uma lei indiscutível, deseja devolver qualquer cota de equilíbrio ao terreno movediço em que vê o filho se afundar.

Carla entrega Marco e foge da primeira entrevista. Ausenta-se daquele que seria o primeiro contato com a lei após o ato transgressor de Marco. Pressentia o perigo que rondava o filho, argumento que fortalecia ainda mais a decisão de entregá-lo. Mas também pressentia a ameaça que fizera pairar sobre si mesma. Sentia-se culpada. A fuga atestava a sua falta de convicção. A quem seu ato visava proteger, o filho ou a si mesma? Teria sido capaz de educá-lo? Teria feito todos os esforços que lhe cabia? Precisava mostrar a si mesma que reconhecia sua responsabilidade. Mas seu gesto deixava entrever a ambiguidade. Havia um movimento que insistia em buscar a força da lei, ao mesmo tempo em que em que havia um movimento de fuga da Lei.