quinta-feira, 10 de abril de 2008

A encenação religiosa

Durante os anos 1993-94 estive no Instituto Padre Severino convivendo, presenciando o cotidiano, entrevistando adolescentes, funcionários e voluntários de diferentes orientações religiosas. Tive contato com a igreja batista, a igreja católica carismática e o grupo família (meninos de Deus). Essa pluralidade tinha haver com o estilo de liderança da diretora, que simpatizava com o apoio religioso, pois era mais uma atividade com a qual contava para preencher as horas do dia. Dados sobre religião foram obtidos através de um questionário respondido pelos adolescentes. O confronto entre os resultados sobre a religião dos adolescentes e a religião das famílias apresentou significativa distorção: a maior parcela dos adolescentes não tinha religião, enquanto as famílias eram evangélicas.
Nas entrevistas com os jovens, evidenciava-se a luta que neles se processava entre as forças do bem e do mal. Dualidade na qual o demônio era a figura responsável pela transgressão. Intrínseca a essa dualidade, notava-se uma duplicidade no modelo ético que interessa aqui destacar. Duas questões foram levantadas. Primeiro, o discurso evangélico apresenta polaridade entre Deus e o demônio, e as ações são catalogadas conforme essa dicotomia. Com que palavras valorativas os pais preenchiam a vida doméstica? Segundo, nessas famílias havia uma ambivalência, muitas buscaram na religião um forma de reparação de erros passados: pais alcoólatras, violentos, alguns com comprometimentos anteriores com a justiça. Os filhos colocavam em dúvida a força moral dos pais. “Ele já aprontou bastante agora quer dar uma de bonzinho...”. Até que ponto os pais não se sentiam castigados?

A hipótese a sustentar é que o discurso moralista na família, apoiado na dicotomia entre o bem e o mal, serve para produzir no jovem uma ideologia valorativa das ações na qual ele se inscreve como o próprio mal – bad boy. Essa moral não é eficaz a ponto de estancar sua sede de agir como um herói. Na família ele se coloca como um exemplo daquilo que os irmãos não devem ser. Mas, orgulhoso de sua coragem passa aos outros a semente de sua ambivalência. Na rua, “comigo ninguém pode”, é o seu ideário. Em casa, exige respeito dos irmãos às regras impostas pela família; forma de confirmar seu poder. A sensação mágica de ser poderoso como ganho gratificante de ser-tabu, não interdita a vida perigosa que “escolheu” para si. Na rua, ele se faz narciso a adorar sua vida-aventura. Vive a ilusão de ser um mito respeitado-temido. O mito é uma forma de narrativa na qual a sociedade imprime suas inquietações, reflete seus paradoxos, indica seus caminhos.

Como lida o jovem transgressor com os tabus? Há um universo mítico que o jovem cultua quando em liberdade – bicho solto. Acredita que tem o corpo fechado, que conta com a proteção do povo da rua. Muitos estabelecem pacto com o Zé Pelintra, a entidade mais citada nas entrevistas.

Zé Pelintra é representado como um típico malandro da Lapa, nos idos anos trinta. Usa terno branco, gravata vermelha, chapéu com fita vermelha e sapatos bicolor. É farrista, cachaceiro, mulherengo, fala macio e anda gingado. Mestre no jogo de cartas, na capoeira e no samba, é astucioso e enganador.

Ter a proteção do Zé Pelintra significa garantir-se no acordo para se livrar de perigos implicados na transgressão. Permite incorporar mais energia, uma vez que a transgressão implica em acréscimo de carga, que envolve mais fascínio e poder. Como num ritual de transformação, o jovem imbuído dessa sobre-força, transmuta-se ele mesmo num tabu ainda mais poderoso. O tabu resguarda o poder emprestando-lhe sua força sagrada. Força-potência que emana do processo de transformação. Mas o poder, sagrado ou político, está envolto em fascínio, que visa amedrontar para afastar, obter vantagens e submeter os seres comuns que se situam fora do seu circuito. O poder, não importa sua natureza, impõe suas regras, suas leis; é ele que fornece o sentido. Dizendo o que é ou não permitido, produz limites. Assim organiza os valores e estrutura os mecanismos de funcionamento da sociedade.

Mas que é feito desse herói – espécime exemplar – quando aprisionado nas malhas do poder formal? Há a necessidade de resgatar o discurso racional, e identificar-se com a ideologia da ressocialização, a qual preconiza o perdão para o indivíduo recuperado, para aquele que não mais repetirá a ação danosa. Essa linguagem do cooptado, tem ressonâncias na explicação que busca a causa da ação individual na idéia de que uma grande parcela da população está excluída da garantia dos direitos sociais. Esta explicação, como uma armadilha, aproxima a pobreza do crime. Justifica que se rouba porque se é pobre; donde concluir-se que as camadas pobres são perigosas. Conforme essa ideologia basta ter seguridade social para ser um cidadão acima de suspeitas.

Na instituição há o expurgo de todos os males; é o momento de cuidar da saúde e da alma, de se entregar a Deus. Como se dá o rito dessa passagem? O adolescente vai se mascarando no mesmo tempo que vai melhorando. Inscreve-se na ordem lingüística da instituição. Tal como acontece com o louco no hospital psiquiátrico. Existe uma dissimetria entre o transgressor imerso em sua indeterminação e o saber jurídico. A tarefa do jurista é constituir uma nominação. Dar um nome previsto no código, conduz a classificação dos falantes num lugar determinado pelo saber. Forma de reclassificar a alteridade que reside na transgressão. Embora o discurso e a prática religiosa não fossem essenciais para produzir a integração dos adolescentes, no Instituto Padre Severino, eram úteis aos objetivos da administração, pois eram aliados dessa ideologia do bem a reprimir a palavra perturbadora. Oferecia seus préstimos, seus rituais exorcistas para melhor fixar os jovens na nominação oficial da ordem instituída.
Síntese do artigo A encenação religiosa, de Maruza Bastos, publicado in: Em busca da cidadania. Revista do Centro de Estudos e Pesquisas da Primeira Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro, 1999.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Filosofando III – Sobre o super-homem (Übermensch) de Nietzsche

Friedrich Nietzsche (1844–1900) teve sua existência marcada por paradoxos, sendo o básico a dissociação entre sua vida concreta (era enfermo, dependente) e seus escritos, nos quais exalta a valorização radical do homem, e a não conciliação com os valores tradicionais. Daí advém seu Übermensch (mensch – ser humano – gênero neutro) que literalmente significa sobre-humano.

A filosofia de Nietzsche é audaciosa. O que importa é a transmutação dos valores. Enfatiza a busca da singularidade do homem, diferença que o torna único ante os demais, e a inclinação para o poder que é a força motriz de todas as coisas. Mas poder não significa força bruta ou dominação sobre outros, é antes puro destemor.

Acima do bem e do mal, esse homem idealizado por Nietzsche é um homem-mais, que se posiciona contra todo o estabelecido, que corre ao encontro de seu destino trágico e busca afirmativo seu existir, seu devir.

Zaratustra é o personagem que prega esse homem ideal. Um profeta Persa do século VI a.C., que atua como máscara profética de Nietzsche. Para Zaratustra todos somos super-homens potenciais que, armados com coragem e vontade, vencemos nossos maiores obstáculos que são o medo e o hábito.

“E Zaratustra assim falou ao povo:
‘Eu lhes anuncio o super-homem!’
O super-homem é o bom-senso da terra. Digam suas vontades: seja o super-homem a razão da terra...
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O homem é corda distendida entre o animal e o super-homem: uma corda sobre um abismo; travessia perigosa, temerário caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar.
A grandeza do homem é ser ele uma ponte, e não uma meta; o que se pode amar no homem é ser ele uma passagem e um termo.
Amo apenas aqueles que sabem viver como que se extinguindo, porque esses são os que atravessam de um lado para outro...
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Amo os que deixam de procurar por detrás das estrelas um motivo para morrer e oferecer-se em sacrifício, porém se sacrificam pela terra, a fim de que a terra um dia pertença ao super-homem”.