segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Falta ou excesso de liberdade?

_ Todos esses problemas sempre existiram. E retornam de tempos em tempos para nos assombrar. São produtos dos excessos. Não só de liberdade, mas também do excesso de falta de liberdade. O marketing usado pelo discurso nazista se baseou na necessidade de conter a onda de liberdade que dominava o mundo das idéias e dos costumes. O que foi a estética e a higienização que propagou, senão formas ideais para produzir um novo mundo que atendesse ao homem ariano, o homem ideal? O plano de execução para varrer do planeta toda semente que pudesse aflorar qualquer diferença gerou o descrédito na autoridade nazista, que se queria absoluta, gerou a maior crise ética de todos os tempos e gerou total falta de limites no plano político. Isto era uma realidade no tempo em que Freud escreveu O mal estar na cultura. Todos os sistemas totalitários conduziram a excessos que surtiram efeitos desastrosos. Efeitos semelhantes aos que hoje se atribui ao excesso de liberalidade, disse Eleonora.

O destino do cofre momentaneamente se perdia. Percebendo o risco, Laurindo retornou ao assunto: _ Nós não sabemos o que estamos fazendo quando remexemos desígnios que estão acima de nossos entendimentos. Por isto sou contra a abertura do cofre. Ele é nossa caixa de Pandora. Um cofre fechado vale mais do que um cofre aberto. O que é um cofre aberto senão um baú vazio. Sem fantasias. O que seria de nós sem as sementes que a imaginação pulveriza em nosso solo, fertilizando assim nosso árido dia a dia? O que seria do tesouro que acumulamos ao longo de toda nossa trajetória, tão repleto de preciosas histórias, as quais têm brilhado como estrelas, iluminando-nos com sua luz e aquecendo com sua chama as memoráveis noites de Extima?

Abelardo queria falar. Acenava ansioso por uma oportunidade. Com sua voz doce e claudicante disse: _ Acho... Não estou certo se vocês vão entender... Acho que o cofre é uma cápsula do tempo. Vocês sabem o que é uma cápsula do tempo, não? A cápsula do tempo é como a pedra fundamental que os faraós usavam para transmitir às gerações futuras a paternidade de suas obras. Em geral, cápsulas do tempo são recipientes metálicos, enterrados com objetos representativos de uma época para que gerações seguintes saibam como era a vida na época em que foram enterradas. Não acham que é uma forma de comunicação com o inusitado que mora no futuro? Pois eu acho que o nosso cofre é uma cápsula do tempo que ficou... não enterrada, mas esquecida na cozinha embaixo do fogão. Deve haver dentro dele uma mensagem reveladora! Vocês não ficam curiosos com o que pode haver dentro do cofre?

_ Eu também vou vibrar se encontrarmos dentro do cofre um precioso manuscrito... ou o rascunho de uma revolucionária teoria, falou Eleonora com seu jeito irônico. _ Ou um frasco contendo uma substância com poder de iluminar a verdade escondida na barafunda incognoscível do inconsciente, disse Inácio. Abelardo se empolga: _ Isso! Alguma coisa inovadora. Como... uma história inédita que poderá surpreender o povo de Extima. Porque não? Quem nos garante que não haja dentro dele uma revelação? Só não sei se este é o momento certo para abrirmos o cofre... Será que estamos preparados para a mensagem que ele contém? Será que não estaremos com este ato abortando a comunicação com o futuro? Talvez ainda não sejamos o futuro que os antigos esperavam... e nossa missão seja preservar a cápsula do tempo tal como está para o tempo que ainda está por vir? Prefiro acreditar que o cofre é a nossa coisinha tão bonitinha que o papai passado nos encarregou de conservar.

_ Os antigos costumavam dizer que o futuro a Deus pertence. O que significa que o futuro está muito além da competência dos homens. O homem sempre creditou às divindades o poder de falar sobre o futuro. Por esta razão criou oráculos, poços, cofres, vasos, arcas, sarcófagos para se proteger da ação corrosiva do tempo que tudo deteriora, e para encontrar a sonhada chave da imortalidade que se supõe perdida no futuro, disse Laurindo.

_ Então você acha que somos apenas uma geração intermediária entre o passado e o futuro, e que a nós nada cabe fazer, senão preservar o passado? Disse Eleonora a Abelardo, que perde a calma: _ Não foi bem isso que eu disse. Você está distorcendo. É claro que a gente tem coisas a fazer. Mas o que somos senão o presente? E a nós cabe preservar a mensagem do passado destinada ao futuro. Esta é a missão ética do presente. O presente é a passagem, e nós, viventes deste tempo, os passadores, disse. _ Porque então o papai passado não nos deixou este aviso, ou esta mensagem fora do cofre, explicitando para nós quando ele queria que o cofre fosse aberto? Retrucou Eleonora. _ Se você insiste em saber, acho que este momento não é o tempo certo de abrir o cofre. E isto não é uma coisa que precisa estar determinada em decreto. É para ser intuída, sentida... - falou Abelardo.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Pandora

Com o mito da caixa de Pandora, Laurindo queria alertar sobre perigos que rondavam o ato de abrir o cofre. Acaso ele achava que a vila corria riscos com a abertura do cofre?

_ Isso não é digno de ser levado a sério. Não acredito que ainda hoje existam pessoas que creditem valor a essas invencionices primitivas, disse Eleonora bruscamente.

_ Eu Invejo seu entusiasmo. Verdade. Quando digo isso, refiro-me ao sentido grego da palavra, que quer dizer sopro divino. O entusiasmado vive a exaltação extrema da inspiração divina; traz um deus dentro de si. Você é uma ótima narradora, disso ninguém duvida. Mas tem ainda muito que aprender, retrucou Laurindo.

_ Apenas sigo o meu caminho de filha da narração. Sim. Fiel aprendiz de meu destino. Mas não sou escudeira das tradições, disse Eleonora orgulhosa.

_ A verdade do mito segue a lógica do inconsciente. Todo mito encerra uma intuição compreensiva que não requer provas para ser aceita, interveio Inácio, outro respeitado narrador. Toda vez que tinha oportunidade, Inácio introduzia nos debates conceitos psicanalíticos que devorava em livros especializados. Interessava-o as particularidades que cada situação apresentava, e costumava dizer que queria entender o que movia os homens.

_ Não acham que o vaso de Pandora se assemelha ao psiquismo humano? Pandora, uma semideusa, ambiciona se realizar como mulher de Zeus, tornando-se uma deusa. Deseja realizar-se na plenitude do Olimpo. Eu a imagino como símbolo da pura pulsão que também anseia pela realização através de sua descarga. A esperança é o resto que sobra da eclosão pulsional. Ela permanece presa à borda do vaso, como o representante da pulsão se mantém no limiar do psiquismo. No cofre, na caixa ou, se preferirem, no inconsciente, residem forças pulsionais que ameaçam o eu, simbolizado no mito pelo simples e mortal homem. Quando a caixa é inesperadamente aberta por Pandora - por forças pulsionais irreprimíveis - os malefícios dominam a vida do homem. Os malefícios representam o desprazer que o eu se esforça por evitar, muitas vezes inutilmente, mantendo-se no fogo cruzado da pressão do conflito que está além de seu entendimento. No mito, o homem age movido por forças que o transcendem, desígnios dos deuses. Teme que sua ação possa provocar a ira dos deuses que, a rigor, se vingam impiedosamente. No psiquismo, o eu também teme as represálias do terrível pai, forma que algumas vezes assume o vigoroso supereu. O recalque é tal como a força que mantém bem fechada a tampa da caixa. Funciona como uma barra que assegura ao eu limites que o mantém distante da ameaça da descarga pulsional, evitando assim o desprazer. Não estou seguro se todos vocês têm noção do que seja o recalque. Vou apenas lhes dizer que se trata de um conceito tão importante, que chega a ser considerado por muitos o pilar sobre o qual se sustenta toda a construção da psicanálise. Para início de conversa, o recalque constitui o núcleo original do inconsciente. Este conceito vocês não podem dizer que desconhecem. Porque já falei sobre isso muitas e muitas vezes. O inconsciente, como um saber que não se sabe, remete-nos à idéia de um lugar desconhecido, à outra cena, como... como acontece na história de Alice no país das maravilhas. Pois bem, o recalque designa o ato de fazer recuar alguma coisa, como uma repulsa em admitir algum aspecto penoso da realidade. Por isto diz respeito ao processo de manter no inconsciente tanto idéias quanto representações ligadas às pulsões, cuja realização pode afetar o equilíbrio do funcionamento psíquico. Podemos falar em recalque quando, por exemplo, uma história vivida, uma situação, um pensamento ou algo imaginado não encontra tradução, quer dizer, não pode ser expresso em palavras, e se mantém inacessível, porquanto sua tradução produziria desprazer. Como se o desprazer perturbasse o pensamento e, com isso, emperrasse o processo da tradução, disse Inácio.

_ A caixa de Pandora significa que uma ação pequena e bem-intencionada pode liberar uma avalanche de repercussões negativas. A linguagem mitológica com todos os seus paradoxos nasce da necessidade de se conhecer mais. Lembro aos amigos que na narração mitológica, os significados são muito ampliados e sua redução explicativa pode destruir a compreensão holística do mito. O bom ouvinte é aquele que entra na narrativa sem preconceitos e sem a racionalidade das teorias, para acompanhar o que a história tenta criar. Disse Laurindo dirigindo rápidos olhares a Eleonora e a Inácio. Laurindo mantinha intacta sua crença no mito. Achava que a transcendência temporal dessas histórias resguardava em si o aspecto de universalidade que era a essência da atemporalidade que tanto prezava.

Enquanto isso, nas conversinhas, as dúvidas apareciam e, dissonantes, se multiplicavam: _ Não acha que ele está querendo nos amedrontar, impedir que a gente abra o cofre? _ Não sei não, o cofre fechado pode ser um sinal... merece respeito. _ Se o cofre está fechado durante tanto tempo e ninguém sabe dizer por que isso se deu, é a hora de sabermos o que tem nele.

_ Pandora destampa a ânfora e a civilização inicia uma era de mazelas sem fim. Esse traumático retorno pulsional atinge frontalmente o homem, formatando, seus traumas, sua vida psíquica. Males de diversas ordens aguardam pelo homem no mundo. Em todos os tempos sempre foi assim. Este é o enredo desta história que pode nos ajudar a refletir sobre as mazelas e os traumas dos novos tempos. Se não sofremos mais a ação compressora da severidade normativa, monstro neurotizante da época vitoriana, nem por isso deixamos de fabricar loucuras, neuroses. Estudiosos da cultura nos ajudam a enumerar algumas mazelas, essência dos traumas psíquicos de nossa época. Dentre as mais discutidas estão: a falta de referência, o descrédito na autoridade, o enfraquecimento dos laços comunais, a morte do pai, a crise ética da cultura, a ausência de limites no plano político. Muitos acreditam que elas são efeitos da liberalização excessiva que reina no mundo atual. Isso nos preocupa. Que é feito do homem sem ideais para cultuar? Os ideais são as fronteiras da humanidade do homem – alicerces morais de seu eu. Ideais são as barreiras construtoras da vida coletiva. Sem ideais, o que resta ao homem senão se transformar num joguete nas mãos de suas filhas, deusas de nosso tempo - a ciência e a tecnologia? Estas, suas crias, são indiferentes ao homem. Não lhes importa as crueldades que o homem perpetua no mundo, tampouco lhes sensibiliza, se no caminho árido e escuro que precisa trilhar, ele não se encontra feliz. Fazem do homem um ser alienígena de si; escravo do Outro devorador. Estar aprisionado no tempo presente, sem passado para reverenciar, à espera de um futuro cada vez mais incerto, isto é o que queremos para nossos filhos e netos? Disse Camilo, com sua voz encorpada.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A caixa de Pandora

Laurindo fez menção de voltar a falar. Em seguida a uma rápida pausa para imprimir um tom mais grave a sua fala, disse: _ Eleonora tem feito um trabalho admirável aqui, mas é inexperiente. Não conhece as velhas histórias do mundo. Seria inconseqüente nos deixarmos levar pelo o que ela quer. Acaso não nos recordamos da história de Pandora e dos transtornos que seu ato provocou à vida no início dos tempos? Vou relembrar-lhes a história da caixa de Pandora, caso a tenham esquecido.

Ele tinha especial apego à mitologia. Conhecia os mitos como poucos. Considerava-se um estudioso do assunto, e de fato o era. Gostava da atemporalidade dos mitos. Seu olhar se perdia no passado em busca da explicação que não encontrava no presente para entender o futuro. Era o caráter universal das coisas que na verdade buscava, e tinha sempre na manga uma história mítica para contar. Quanto a isto nunca estava desprevenido. Era previsível que trouxesse um mito para reinar no centro da discussão. Iniciou seu relato, enquanto todos se remexiam em seus lugares em busca de uma posição mais confortável.

_ Pandora, a detentora de todos os dons, foi a primeira mulher que existiu. Eis a origem desta palavra composta por: pan, que traduzo por todo e doron que significa dom. Zeus ordenou a Hefesto, deus das artes, que modelasse uma mulher semelhante às deusas imortais. Hefesto criou então uma belíssima estátua de pedra, clara como a neve. Com um sopro, Atená animou-a com vida e ensinou-lhe a arte da tecelagem, e os outros deuses dotaram-na de todos os encantos. Afrodite deu-lhe a beleza, o desejo indomável que atormenta os sentidos e encantos que são fatais para os homens. Hermes deu-lhe a fala graciosa e encheu seu coração de artimanhas, ardis e astúcia. A história de Pandora nos remete à origem dos tempos, quando a terra, a água e o ar eram um só, e os deuses ainda não haviam interferido para separá-los. Antes que o céu e a terra fossem criados, tudo era Um, o Caos. Coube a Prometeu (aquele que prevê) e seu irmão Epimeteu (aquele que pensa depois, ou tardiamente) povoar a terra. Ambos foram poupados da prisão por não terem lutado contra os deuses nas disputas por territórios. Descendiam da primeira geração dos gigantes destronados por Zeus, os Titãs. Prometeu sabia que nas entranhas da terra dormiam sementes dos céus. Assim, pegou em suas mãos um punhado de terra, molhou-a no rio e obteve argila. Moldou-a carinhosamente até discernir uma imagem que fosse semelhante aos deuses. Assim deu forma ao homem, dotando-o com características boas e más retiradas das almas dos animais que já haviam sido criados por Epimeteu. Atená, deusa da sabedoria, ao ver a imagem semi-animada criada por Prometeu, admirou-a, e insuflou-lhe um espírito, humanizando-a. Mas esse homem humanizado, saído das mãos de Prometeu, ainda assim estava nu, vulnerável, indefeso, sem recursos. Sabedor das carências do homem, Zeus aproveitou-se disso. Voltou-se para a humanidade exigindo honras e sacrifícios em troca de proteção, instigando desconfianças e disputas entre eles. O que fez com que Prometeu intercedesse como advogado em favor das criaturas que havia criado. Ocorreu-lhe a idéia de por à prova o poder divino. Sacrificou um touro e dividiu-o em duas partes. Disse em seguida aos deuses que escolhessem uma parte e a outra caberia aos homens. Mas antes, colocou em um dos montes somente ossos, cobrindo-o com sebo, fazendo-o parecer maior que o outro, onde estava a carne e a pele do touro. Zeus escolheu o monte maior e ao descobrir que fora enganado, vingou-se recusando aos homens o fogo que poderia mantê-los vivos. Privou assim o homem de possuir luz na alma. Sentindo pena dos homens, Prometeu ensinou-lhes a enfrentar a vida diária e a cuidar de suas feridas. Para tanto, roubou uma centelha do fogo celeste e a trouxe a terra. Ao ver o brilho celestial que emanava da terra, Zeus, irado, arquitetou um plano de malefícios. Ordenou a Hefesto que criasse Pandora e a enviasse de presente a Epimeteu, a quem Prometeu havia avisado que não aceitasse nenhum presente dos deuses. Mas encantado com a beleza de Pandora, Epimeteu esqueceu as recomendações do irmão e a aceitou. Só compreendeu o que aconteceu, mais tarde, quando o infortúnio o atingiu. Pandora chegou a terra trazendo em seus braços um grande vaso fechado como presente de casamento a Epimeteu. Ela abre o vaso diante dele, e de dentro, como uma nuvem negra, escapam todas as maldiçoes e pragas. Desgraças que até hoje atormentam a humanidade. Pandora se apressa em fechar a ânfora que, entretanto, já se encontrava vazia. Com exceção da esperança que permaneceu presa junto à borda do vaso. Deste mito nos ficou a expressão caixa de Pandora que se usa em sentido figurado quando se quer dizer que alguma coisa, sob uma aparência inocente ou bela, é uma fonte de calamidades.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O destino do cofre

- Em nome do Conselho Maior agradeço a presença de todos – disse Camilo. É para nós motivo de satisfação constatar o número expressivo de narradores e de pessoas da comunidade que aqui estão para participar e prestigiar a discussão desta noite.

O que aumenta nossa responsabilidade e nos leva a refletir sobre a importância da decisão que nos espera. Como todos sabem, estamos aqui reunidos para decidir sobre a abertura do cofre. Por isto preparei algumas poucas palavras e prometo não me estender muito.

Para iniciar, senhores, lanço a pergunta: o que é um cofre? Um cofre é um compartimento onde se armazenam coisas de valor e documentos. Em geral, o colocamos atrás de um quadro, um espelho ou dentro de um armário. Nosso cofre, no entanto, é diferente. Ele nunca cumpriu tais condições. Tem estado na cozinha há dezenas de anos. E sequer conseguimos dizer em que outros lugares ele poderia ter estado antes. O que guarda nosso cofre? Esta é a nossa questão. Ela tem gerado muitos comentários maliciosos na vila. Mas para surpresa daqueles que imaginam que o Conselho não quer revelar o que tem guardado no cofre, eu posso afirmar que o que há no cofre não é do conhecimento de ninguém, nem mesmo dos integrantes do Conselho. Simplesmente porque o segredo do cofre não serve mais para abri-lo. Reconhecemos que esta situação não é de agora. Porque tentamos abri-lo por diversas vezes sem nunca ter obtido sucesso. Para desfazer a mística criada em torno dele: de que o Conselho guarda secretamente no cofre algo que não quer ou não pode compartilhar, vou revelar-lhes o segredo do cofre, pelo menos aquele que acreditamos ser seu segredo. E desafio qualquer um que quiser tentar abri-lo aqui e agora. O segredo é o seguinte: girar algumas voltas para a direita, livrando a roda do segredo até senti-la solta. Parar no 25, girar para a esquerda, dando uma volta completa, passando pelo 25 e parando no 34. Girar devagar para a direita e parar no 18. Abrir a chave e soltar a alavanca.

Camilo terminou provocativo:

- Então, alguém se oferece para tentar abri-lo? - esperou ainda alguns instantes em silêncio. Na sala não se ouvia nem um pequenino zumbido. Finalmente iniciou o debate.

- Vou passar a palavra agora aos que desejam se pronunciar a respeito do assunto em pauta.

Laurindo foi o primeiro a se manifestar:

- Não há nada de importante no cofre. Com certeza apenas um punhado de moedas velhas, se tanto, que não valem mais um tostão.

Tratava-se de um antigo narrador, que conhecia bem como funcionavam aqueles encontros. Podia-se notar que se colocava como representante dos que eram contra a abertura do cofre.

Imediatamente após sua fala, a sala foi bombardeada por conversinhas ao pé do ouvido: - O que ele disse não esclarece nada, tem coisa aí que ele não quer dizer. - Está na cara que desconversa. - Isso é típico dele, dizer que o assunto é irrelevante. - Ele tem razão, a gente perde muito tempo com essa bobagem.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O grupo dos novos

O grupo dos novos estava inquieto. Seus integrantes queriam influenciar a decisão da reunião que ficava mais próxima a cada dia. O cofre não era mais um assunto restrito ao bochicho no cantinho do café. Falava-se dele agora em qualquer oportunidade.

De modo que, quando chegou o dia da esperada reunião as opiniões estavam divididas entre aqueles que queriam a abertura do cofre, e os que eram contra.

Camilo ficou encarregado da direção dos trabalhos. Ele não se enquadrava entre os novos nem era dos mais antigos. Como era um narrador meticuloso e educado, a decisão de dar-lhe a coordenação pareceu a todos a mais acertada.

Ninguém era capaz de dizer o que estava por vir. Poderia ser uma rápida decisão, ou, alongar-se noite afora. Camilo encontrou dificuldade para iniciar. Havia comparecido um bom número de pessoas, acima do esperado.

O ambiente estava agitado. Todos se movimentavam e conversavam ruidosamente.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O Cofre

Era um velho cofre, verde e desbotado, que apesar de não ser pequeno, não chamava a atenção para si. Talvez porque a função que lhe coube desempenhar nos últimos tempos não fosse assim tão nobre.

Será que lhe cabia alguma função?

Devia ter sido útil um dia. Mas esse valor fora completamente abandonado. O destino dos cofres é restar recluso, obscuro, longe dos olhares indiscretos ou invasivos. Nunca diante de todos.

Mas este cofre de que estamos tratando, ele tivera outro fim. Ganhou um lugar na cozinha. Apesar de sua evidente aparência de cofre, ele restava, ali, promiscuamente diante de todos. Não havia outro lugar para ele, era o que se dizia. O primeiro desvio que se podia então atribuir a ele era em relação ao lugar natural que cabe aos cofres ocupar.

Ele se postava como um armário comum, embora sequer fosse usado como móvel para guardar quinquilharias, abaixo do pequeno fogão, separado deste por uma pedra que, como uma barra, se antepunha entre ele e a chama que às vezes emanava do velho fogão.

A cozinha onde restava inútil o cofre tinha um justo espaço que dava para acolher uma única pessoa. E como esse alguém se sentia bem recebido! Senhor absoluto daquela intimidade materna. Ela ficava lá disponível até que um necessitado lhe procurasse para suprir carências de última hora, caso precisasse de um breve afago, como um copinho de água que sacia a sede. Quando um grupinho sorrateiro bandeava para lá atraído pelo cheiro familiar do cafezinho, era no cantinho exterior a ela que se aninhava, porque ela não podia acolher a todos a um só tempo.

Tudo na cozinha evocava outros tempos. Restavam sobre sua bancada os inestimáveis acessórios que aqueciam as discussões: o bule amassado, o coador de pano enegrecido, as pequeninas xícaras, os copos de geléia e o filtro de barro. Heranças do tempo em que os anciãos ainda se iniciavam na arte de narrar histórias. Pois era nesse pequenino cantinho do café, em meio aos cochichos, que fora colocado o cofre.

Desfigurado pelo desvio que esse lugar lhe impunha, prezava por sua dignidade de cofre mantendo-se mudo e fechado. Qual seria a função de um cofre senão guardar, em segredo, o que se espera preservar, sustentando numa austera ausência, as moedas, as jóias valiosas, os objetos e os documentos mais cobiçados?

O que aquele cofre preservava ninguém mais sabia, nem mesmo Acidália, a ama índia, que cuidava dos bens que os narradores acumularam ao longo do tempo. Envelhecendo junto à velha ama que nele mexia, o cofre trancou-se vingativamente em seu segredo. Como que adquirira autonomia, e fizera para si outro segredo que só a ele pertencia. Sua existência muda quedava invisível, e sua presença apagada era cada vez mais risível.

Como se podia creditar valor a um cofre de cozinha?

Ele permanecia presente ausente em sua quase inexistência, bem abaixo do nariz de todos.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

A reunião

A reunião do Conselho Maior avançava noite adentro. Seguia arrastada por entre as delongas das prestações de contas, quando o assunto marginal se insurgiu.

Somente os desavisados foram tomados de surpresa com a novidade que se anunciava: os novos queriam abrir o cofre. Fazia algum tempo essa história de abrir o cofre corria à boca pequena. Até que, nesse dia, o assunto veio à tona. Como seria agora possível contornar a evidência dessa questão?

Existia em Extima, naqueles dias, um grupo de jovens narradores sedentos por modificações. Eleonora, destemida, tomou a liderança do grupo. Já havia feito seu nome ao se revelar excelente narradora.

Era uma mulher atraente, simpática, inteligente, que sabia atrair a atenção de todos com seu jeito de falar um tanto teatral. Tinha o dom da palavra. Era capaz de passar verdade mesmo na mais fantasiosa das histórias, tão segura se expressava. Revestia sua fala com tal fina camada de ironia, que coloria de provisória toda a verdade que dizia. Aspecto dramático que tornava reticentes suas histórias. Como se as sentenças fossem contaminadas com outra interpretação.

Eleonora implicava com o aspecto antiquado do Teatro da Colina que não passava por uma reforma há muitos anos. Queria modernizá-lo. Essa era a sua bandeira e, com ela, angariava a simpatia de seus contemporâneos.

Naquela noite, Eleonora apegava sua fala a um ponto: o cofre. Falava alto e em bom tom sobre sua intenção de abri-lo, e se justificava dizendo que não era somente sua vontade que defendia, mas de todo o grupo que liderava. Expressava-se aguerrida:

_ Que importância pode haver abrir-se um cofre? Cofres são abertos todos os dias. Centenas deles...

Mas ela mesma sabia que esta não era uma ação corriqueira, porque o cofre se mantivera fechado por sessenta anos. Este pelo menos era o tempo que alguns estimavam.

_ Por que o cofre ficou fechado durante tanto tempo? - insistia Eleonora em sua impertinência.

_ Sessenta anos? Que marco estabelece essa contagem? Não poderia ter sido mais ou menos anos? Esse tempo foi arbitrado, ou alguém aqui sabe dizer o tempo preciso que o cofre está fechado? Sabem o que isto significa? Significa que por vinte e um mil e novecentos dias ninguém sentiu necessidade de mexer no cofre; que durante quinhentas e vinte e cinco mil e seiscentas horas ele permanece intocado.

Ninguém sabia dizer ao certo o tempo que o cofre estava fechado. Talvez tenha sido a imprecisão dessa estimativa que o tenha convertido em um tempo incomensurável. Medida desmedida que ainda mais despertava o interesse dos novos sobre o que se guardava tão bem guardado no interior daquela caixa forte.

O cofre fechado mantinha acesa a chama da curiosidade, representava a possibilidade de novas descobertas, vivificava a esperança de que perguntas ancestrais pudessem um dia ser respondidas. Talvez por isto, quando eles se reuniam se perguntavam sobre o que os antigos teriam deixado intocado no cofre.

Perguntas sem resposta eram lançadas como quimeras ao acaso. Nem se sabia ao certo se elas precisavam mesmo ser respondidas. Talvez fosse melhor preservar o cofre fechado. Alguns comentavam como era perigoso falar sobre ele. Era compreensível que temessem evocá-lo. Uma vez aberto, o cofre manteria o mesmo vigor desse estigma? Por conta desse tabu, era pôr-se em risco se aproximar do assunto. Mas, que riscos um velho cofre como aquele poderia encerrar? A vida não envolve riscos? O cofre seria tal como a vida. A vida que pulsa no íntimo do cofre. No seu coração, o segredo da vida. Para que desvendar os mistérios da vida?

Pelo menos na reunião daquela noite, malgrado os esforços de Eleonora, não havia disposição para fazer do cofre um alvo. Era uma discussão fora de lugar que não fazia parte da pauta. Estava claro que Eleonora precipitara algo indesejado. Quando o assunto veio à baila naquele momento, emergiu como uma queixa. Uma chatura que arde como um calo. Quem dá atenção a dor de um calo? Sequer é uma dor respeitável ou fatal que ponha em risco o continuar das coisas. A falta de movimento da reunião se justificava. Não havia argumentos favoráveis ou desfavoráveis, nem expressões de surpresa ou de indignação para condecorar o assunto. Nada foi dito. E isso, esse naco de nada, temperou o ambiente. Foi quando algo escapou de um canto da sala, partindo de alguém que, num fio de voz, disse:

_ Que inércia! Essa súbita expressão ecoou no silêncio daquele instante. E envergonhou-se de sua existência incontida, como se não devesse ter outro lugar, senão no fundo do pensamento. A que situação se referia a expressão que se desprendia inesperadamente quase como um soluço? Diria respeito ao fato do cofre estar fechado durante sessenta anos ou ao fato do tema não suscitar interesse? No corpo daquele assunto havia um quê de ridículo e dramático que se entrelaçavam. Porque o cofre, sua existência indubitável (uma caixa metálica com cerca de 80 centímetros de altura por 60 de profundidade), não tinha como ser ignorado.

Para liberar os presentes do incômodo que o assunto gerou, o Conselho se apressou em deliberar uma data para que se realizassem, com liberdade, discussões sobre a abertura ou não do cofre.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

O teatro da Colina

O Teatro da Colina serviu de sede ao Conselho Maior, além de ser usado para quase tudo no povoado. Seu salão nobre se destacava pela qualidade dos eventos que ali se realizavam.

Em primeiro lugar, era onde os conselheiros tomavam as decisões importantes. Reuniam-se no salão em torno da mesa ancestral que já há muito era usada pelos anciãos.

Era lá que os narradores se encontravam para compartilhar o simples prazer da leitura ou da conversa informal; era o lugar onde ouviam as histórias que cada um trazia para bem contá-las aos demais, onde engalanavam suas vitórias e mostravam a todos suas preciosas conquistas.

O salão nobre se tornou a cátedra dos mestres, o anfiteatro dos ensaístas, o fórum dos revoltados. Uma passarela em que se exibia a beleza dos diferentes estilos. Cada canto seu exalava o odor um tanto embolorado dos saberes que eram ali derramados e perdidos anos após anos.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

A organização

Com o correr dos anos, novas gerações foram surgindo, sempre marcadas pela transmissão da tradição essencial de Extima. O que não impediu que modificações fossem pouco a pouco introduzidas nas tradições dos encontros.

A todos parecia muito salutar o gosto pela discussão democrática que começaram a cultuar. Quase como uma evolução natural dos encontros em que narravam histórias, passaram a achar que era preciso tomar cuidados com as histórias que contavam. Afinal, era o principal legado que tinham para deixar ao futuro. Por isto se justificava que tudo fosse minuciosamente discutido, votado, acordado por todos.

Mas eis que a partir de um momento indeterminável, ninguém mais sabia dizer o que se tornara mais importante, se os encontros onde se relatavam histórias ou as reuniões onde tudo era objeto de discussão. Passou a ser vital controlar a qualidade de tudo que faziam. Daí porque começaram a desenvolver critérios rigorosos de como as histórias deveriam ser contadas e formas corretas de melhor ouvi-las.

A partir de então, era preciso que primeiro contassem suas histórias na reunião para o coletivo decidir se elas deveriam ser narradas e escritas.

A premência em discutir os critérios passou a dominar a vida em Extima. Mesmo antigos e experientes narradores se pegavam, engalfinhando-se uns com os outros, em discussões acaloradas e improdutivas. Vez por outra acontecia um incidente, fruto da intolerância, e alguém ofendido se levantava e se ausentava. Para zelar pelo bem estar, considerou-se fundamental instituir instrumentos de medida precisos, porque se queria evitar erros de escolha, que se tornavam cada vez mais freqüentes, sobre quais histórias mereciam ser contadas.

Mesmo sabendo da importância que todos devotavam a essas novas medidas, por vezes se ouviam comentários sobre como a vida em Extima se estreitava no entrevero das exaustivas discussões. Um quê de sua elegante e ingênua cordialidade, estranheza sua de outrora, se esvaia.

Era possível reaver esse algo que se perdia? Seria isto parte de um processo irremediável? Ou por outra, dever-se-ia aceitar essa evolução como um tributo, exigência dos novos tempos? Todos viviam um pouco pressionados com a necessidade de mudar, não se sabia bem ao certo o que, como se Extima vivesse à beira da extinção.

Difundia-se cada vez mais entre eles a tese de que Extima precisava se atualizar, entrar de vez na temporalidade e integrar em sua vida as preocupações do resto do mundo. Premia adequar suas antigas histórias às novas modalidades de existir. Não que a tese fosse um consenso entre todos. Mas a questão permanecia ruminante.

Será que Extima deveria manter a tradição de seus encontros, mesmo sabendo que encontrar não era mais a tônica dos tempos correntes? Alguns (é bem verdade que poucos) defendiam que Extima não tinha que se adequar à temporalidade. Porque isto significaria alterar sua forma de ser. Pois que a atmosfera atemporal, a sensação que flutuava no tempo, a aura de esquecimento, eram características da região em que se erguera. O que propiciava a ela o ar misterioso que a tornava singular aos olhos do mundo.

Anos e anos a fio, as reuniões mantinham o mesmo ritmo. Alguns temas sem solução por vezes retornavam. As mesmas questões que inquietavam iam e vinham. Outras também surgiam para colorir as reuniões. Como podemos nos aparelhar para fazer avançar as discussões? Era sobre isso que se perguntavam muitas vezes. Outras preocupações também tinham lugar. O rio e a mata, por exemplo, careciam de cuidados urgentes, porque o rio já não era mais tão cristalino e a mata diminuía a olhos vistos. Contudo, urgia pensar um sistema de reunião capaz de dar conta das velhas e insolúveis questões.

Ao cabo de infindáveis reuniões, surgiu uma idéia que foi seriamente considerada. O que precisavam era de um governo e de um modelo para ser seguido. Foi a partir do amadurecimento dessas duas questões - a forma de governo e o código de conduta - que se chegou à solução. Era preciso eleger um conselho, formado por cidadãos de notória reputação, que pudesse representar as diferenças de pensamento da sociedade extimense.

Assim surgiu o governo de Extima, o Conselho Maior, ao qual caberia zelar pelo destino daquele povo, em conformidade com o Código Magno, instrumento ideal, cuja prima redação ficaria a cargo do próprio Conselho, uma vez constituído. Teve início uma época plena de expectativas, que grande contentamento lhes proporcionava. Haviam avistado a luz no fim do túnel para os rumos de Extima.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

No princípio, era a escuta

Tudo começou com um grupo de anciãos que se reunia regularmente, às quartas-feiras, em longos serões noturnos para contar, uns aos outros, histórias verídicas ou inventadas que se compraziam em colecionar. Naquele tempo, eles não podiam imaginar outras viagens, senão as que realizavam através das histórias que narravam. Esses encontros, que se repetiam há incontáveis anos, foram se tornando cada vez mais conhecidos e apreciados. Tomaram força, ganharam o mundo, e se tornaram a tradição mais respeitada em Extima.

No princípio, era a escuta. Assim era a vida naquele lugar. O laço que existia entre eles se estreitava no deslizar das ondas sonoras entre aquele que relatava e os outros que o ouviam. O simples ato hospitaleiro da escuta, a disponibilidade para ouvir, era considerado um bem precioso. Por conta dessa lendária transmissão oral das histórias, muitos forasteiros procuravam o lugarejo em busca desse tipo de raridade, dessa riqueza que Extima podia oferecer. Foi quando os anciãos, vendo o interesse que suas histórias despertavam, começaram a acreditar cada vez mais na importância dos encontros que realizavam. Resolveram então escrever as histórias que contavam para deixá-las como legado aos seus descendentes. E, assim, a leitura das histórias fora também se tornando ao longo dos anos uma transmissão tão prazerosa e estimada entre eles.

Para coroar a prosperidade em que viviam, os cidadãos do povoado se reuniram e construíram uma sede, que foi plantada no topo da mais alta colina. E, por causa disso, fora batizada de Teatro da Colina. Apesar da pompa do nome, tratava-se de um prédio modesto, mas que oferecia uma vista privilegiada de toda a região. Não possuía mais que cinco cômodos: a secretaria, o salão nobre, a biblioteca, a cozinha e o banheiro. Contudo, como um templo, enobrecia a existência da gente do povoado. Era a acrópole de Extima. Acidália foi levada para cuidar de tudo, da limpeza, da contabilidade, do cofre e do cafezinho. Dizem que ela fora pega a laço ainda menina nas matas além Extima e, desde então, trabalhava na vila servindo aos anciãos, que a ela confiavam até seus contos inéditos.

Os anciãos se deliciavam com o sabor de suas histórias. Ficavam muito orgulhosos ao constatar que elas despertavam o interesse de um público que só crescia. Os ouvintes, tanto mais gostavam das histórias quanto mais se achavam nelas, porque iam ao encontro de si mesmos quando as ouviam. Acreditavam que as histórias, como uma chave, lhes desvelariam porções de mistérios: os seus, e os da vida. Quanto maior o valor que o público atribuía às histórias, mais cheios de si os anciãos se sentiam. Verdade que existiam diferenças entre as histórias, de gênero e estilo, que dividiam o interesse dos extimenses, e povoavam suas mentes com o fervor que devotavam a essas pequenas diferenças. Suas histórias eram o seu reino; o seu mundo. Por isto era preciso defendê-las armados com a robustez da paixão. Porque as histórias haviam se tornado para eles nada menos que o sentido da vida.

E, como nas histórias de cavalarias, fazer crescer o próprio reino implica algumas vezes a conquista de outros. Era preciso impedir que aventureiros, invasores, saqueadores pudessem ameaçar a integridade de cada domínio. Em meio ao jogo competitivo onde se media a estatura dos territórios, cada jogador precisava zelar pelo seu, mesmo que para isso fosse preciso atacar o do adversário. Com cautela, para não acender no outro a rivalidade ancestral que reside num recanto inexplorado da alma. Porque, como acontece com o rio, ela pode transbordar e revirar de ponta cabeça até o mais cândido dos anciãos. Mas Extima encontrou o seu jeito de sobreviver aos rompantes acidentais dessa força indomável que vez por outra ainda a ameaça.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

O cofre de Extima


Extima

O pequeno povoado de Extima havia se fixado, tempos atrás, ao longo das margens do rio.

E, serpenteava a mata, como querendo reproduzir os contornos e a sinuosidade do desenho natural do rio, cujas águas esverdeadas e cristalinas refletiam em sua superfície as folhagens da vegetação ribeirinha.

O murmurar constante do rio, sonoridade musical das corredeiras que se formavam no trecho onde se situava Extima, favorecia a aura de esquecimento e indolência que dominava a paisagem daquela região, como se fosse possível manter-se alheia à compressão da temporalidade histórica.

Pois era essa sensação de anestesia e atemporalidade, o que encantava as pessoas de fora.

Talvez por força dessa atmosfera, fosse solo fértil para a imaginação da gente que lá habitava.

Semeado entre duas forças naturais notáveis – rio e mata - de gêneros distintos, mas que se necessitam mutuamente, o povoado parecia ter se erguido para se interpor e abalar aquela comunhão ideal.

Enquanto impunha sua cronologia temporal, fazendo emergir no seio daquela natureza o sentido da alteridade, produção mesma da cultura, não podia evitar ser afetado pela sensação de atemporalidade que cunhava a tipicidade da região.

A vida corria mansa em Extima, pelo menos na época da estiagem, quando a vila ficava livre da ameaça dos temporais, que transbordavam o rio e transtornavam a sua conhecida geografia.

Mas o interesse que a beleza da região de inicio despertava nos visitantes, tomava outro vulto quando se tinha contato com o estilo peculiar que os primeiros habitantes imprimiram no lugarejo.

(continua na próxima postagem)

domingo, 19 de junho de 2011

Psicanálise e Literatura


Apresentação:

A literatura sempre esteve presente como inspiração e como objeto da psicanálise.

Obras literárias, as clássicas especialmente, servem como bússolas ao psicanalista que, imbuído do propósito de entender algo do humano, é convidado a se mover no labirinto escuro que é o psiquismo.

Afinal, não são os poetas e os escritores considerados adivinhadores dos mistérios insondáveis da alma?

Tanto a literatura quanto a psicanálise germinam na terra fértil da linguagem e da palavra.

E, tal como acontece com a literatura, não é possível imaginar a psicanálise fora do âmbito da cultura.

O romance re-trata e interpreta a época e a perspectiva de seu autor, assim como a personagem representa uma possível forma de ser na cultura.

É a partir dessa perspectiva - de um autor que dialoga com seu contexto, que apresento O cofre de Extima, conto de minha autoria que será postado nesta seção.

O cofre de Extima sugere a experiência de uma interface entre psicanálise e literatura, em que a própria psicanálise se oferece como ambiente ficcional em que se desenrola a ação-paródia, que elege o cofre como sua principal personagem.

Esta narrativa nos convida a desvendar o que há guardado dentro de certo cofre que ninguém consegue abrir, sempre buscando desenhar diante do leitor a geografia atemporal e errante do inconsciente.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Estrutura e clínica

A palavra possui significância especial na cena analítica. Ela reveste de simbolização a experiência transferencial, tal como faz com certa face do real, quando esta se presta a ser apreendida pelo verbo.

Ela foge do sentido habitual que a língua lhe confere para conotar algo do vivido, do real que, desse modo, se deixa entrever.

Como força do plus de acento que a palavra ganha no exercício analítico, somos levados a prestar atenção na fala, visando, inclusive, ultrapassar seu sentido usual.

Faz parte do rito típico do ofício de analisar recortar da fala uma palavra que clama - por certo conteúdo particular, por certa conotação, por certa densidade, por certa estranheza, ou, por sua incidência repetitiva no discurso – avisando-nos sobre o núcleo de significações que nela se concentra.

“E como não haveria até mesmo um psicanalista de hoje de sentir que chegou a isso, a tocar na fala, quando sua experiência recebe dela seu instrumento, seu enquadre, seu material e até o ruído de fundo de suas incertezas?” – Escreve Lacan em A instância da letra ou a razão desde Freud.

De fato, muitas vezes fica flagrante quão concreta a fala pode se apresentar, especialmente quando porta-voz da língua fundamental do delírio.

Tamanha literalidade nos faz pensar que não se trata na fala de uma descrição distanciada sobre a realidade, em que esta se faz representar através dos signos convencionais da língua, mas que ela, em si, é uma realidade.

A realidade da fala porta uma linguagem, na qual se encadeiam signos-enigmas da língua singularizada.

Sobre essa realidade, de importância capital, incide o trabalho do analista, que consiste primeiro em levar em consideração justamente isto: a fala enquanto realidade.

Fala realidade palpável para o psicanalista que chega mesmo a tocá-la.

Eis o elemento invariante do trabalho analítico.

Apesar da pluralidade teórica das diferentes abordagens, que psicanalista discordaria que a psicanálise opera sobre a realidade da fala?

Mas, o que é a realidade da fala senão o campo sobre o qual incide o trabalho analítico?

A fala, entendida como campo, nos fornece a imagem de que sua realidade se assemelha a uma mina, da qual se espera extrair a matéria prima.

Ao discursar para um grupo de filosofia da Federação de estudantes de Letras, Lacan lembra que Freud considerava a qualificação literária a exigência primordial da formação dos analistas.

Por que Freud via na universitas litterarum o lugar ideal para a psicanálise?

Não seria o desvendar da trama, do drama, tal como o sentido trágico se ordena nas palavras, no contexto da fala, a verdadeira construção a que se dedica o psicanalista?

Construção que implica em desconstruir a ordenação do discurso; produzir no desmaiar do sentido o desvio do curso associativo; introduzir o elemento perturbador, cortante, desconcertante que é a fala do analista, ou seu silêncio ante o pedido insistente de um fechamento que possa interpor uma clausura à incerteza que marca a busca angustiante, precipício sem fim das significações.

O psicanalista (e porque não dizer o analisando também) se apropria da densidade gravitacional que envolve a palavra no ambiente da análise.

O enquadre não seria a expressão dessa força?

Que força gravitacional é essa que toma conta das palavras no setting analítico?

A experiência do analista recebe da fala seu enquadre, nos diz Lacan. O recorte de certas palavras do discurso manifesto realizado pelo analista, em si, implica que uma seleção interpretativa foi posta em ação, início da construção que se realiza em análise.

Construção marcada pelo estilo, pelo traço, pela arquitetura singular de cada analista.

Deste ponto preciso e particular emerge a estrutura da composição literária que se processa em cada análise.

O enquadre é, ele mesmo, expressão dessa literatura que dá corpo e estrutura o trabalho de análise, estruturando, no conjunto, a posição do analista, proporcionando a força temporal que a sustenta.

Porque é dentro de uma temporalidade transferencial que se cria a atmosfera densa em que esta produção invisível se processa.

Mas, o lugar estrutural da posição do analista não está dado, porque é um lugar que não resiste à cristalização.

É um lugar, o tempo inteiro, achado e perdido na barafunda da linguagem que transborda em particularidade na cena analítica.

Linguagem que brota na fala e toma a forma de palavra limpa do convencional sentido, para borrá-la completamente na mistura de sentidos afetados pelos afetos.

A linguagem psicanalítica é aquela que desloca idéias nunca cristalinas que transitam do divã à poltrona a intercambiar, deslizar, desgarrar sentidos.

Mosaico que se compõe com uma paleta de palavras em que comparecem das mais doces e amenas às mais graves, cruéis e infames.

Palavras voam errantes no ambiente magnetizado pela transferência e são lançadas no jogo que institui a linguagem deste campo.

Palavras atravessam a cena analítica e, oferecidas, compõem a teia virtual em que se amarra o lugar do analista, em que se tece a compreensão, a direção, sempre acompanhada de incompreensão.

A fala, esse instrumento volátil, constrói um sentido num tempo preciso. Mas a decomposição da fala processada pela análise não se apresenta apenas como confissão.

Porque a fala, no mesmo tempo que revela, encobre. Apenas algo ela nos permite entrever.

A fala, tornada jogo, exige o esforço da construção das significações. E se fosse tão-somente isso, poderia se tratar de um jogo lógico.

Lugar incerto o que ocupa o analista. Os afetos, e o investimento destes, postos em ação na cena compõem as diversas imagens que vemos surgir no caleidoscópio analítico.

A cada momento uma configuração significativa se apresenta desmontando a anterior.

Essa construção efêmera resiste a uma determinada significação.

Assim também acontece com a palavra estrutura que endurece quando presa a uma significação precisa.

A estrutura da análise é móvel, imprecisa, porque se trata de uma estrutura que guarda a certeza de uma incerteza que a funda.

Igualmente móvel e impreciso é o lugar do analista que recebe da composição literária formulada em análise o enquadre, a estrutura e a função estruturante.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Metáfora e Metonímia

Lacan acirra o debate sobre a arbitrariedade do signo. Considera ilusória a ideia de que o significante representa o significado: todas as línguas existentes são insuficientes para abarcar o campo do significado.

A posição primordial do significante e do significado como ordens distintas, separadas por uma barreira resistente à significação, em que coisa e representação não formam necessariamente uma unidade significativa, assegura a mensagem de que a significação apenas se sustenta na remissão a outra significação.

Somente as correlações do significante com o significante podem fornecer o padrão da significação.

O significante se antecipa ao sentido, que insiste na cadeia do significante. Mas nenhum dos elementos dessa cadeia encerra a significação de que ele é prenhe. Persiste a ideia do deslizamento incessante do significado sob o significante.

Ao escutarmos um poema, o que dele se depreende é antes a potência de sua polifonia. A estrutura da cadeia significante revela a possibilidade que temos de nos servir da língua para expressar algo diferente do que ela quer dizer.

A função significante que se desenha na linguagem tem o nome de metonímia, em que a parte é tomada pelo todo. Vela que representa navio, por exemplo. A ligação entre navio e vela se dá no significante, de palavra em palavra se constrói a conexão na qual se apóia a metonímia.

Já a metáfora surge entre dois significantes. Um substitui o outro, assume o lugar do outro na cadeia significante. Uma palavra por outra, eis a fórmula da metáfora, que se coloca no ponto em que o sentido se produz no não-sentido.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Linguística e Psicanálise

Saussure estrutura a fala no domínio da idiossincrasia, ou seja, na maneira como cada pessoa vê, sente e reage. Sem o pretender, dessa forma ele faz a ligação entre linguística e psicanálise que, mais tarde, Lacan irá explorar.

Ao conceber o campo simbólico, Lacan inverte a ordem do signo lingüístico: significado barra significante, para, significante barra significado.

Com esta inversão, Lacan marca a prevalência do significante sobre o significado.

Ancorado no princípio lógico do algoritmo – S/s – Lacan afirma que o inconsciente se estrutura como uma linguagem.

Assim, o sujeito se revela servo de um discurso em que o lugar que ocupa já se encontra inscrito em seu nascimento, ainda que seja apenas na forma de seu nome próprio.

O discurso ao qual o sujeito se submete instaura a experiência da comunidade, em que trocas e permutas apenas são concebíveis dentro da órbita da linguagem.

A partir de Lacan, a dualidade natureza / cultura dá lugar à concepção ternária - natureza sociedade cultura - sendo esta última, a linguagem, que distingue a sociedade humana das sociedades naturais.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

LÍngua e fala

A língua é necessária para que a fala se torne inteligível e seja pactuada por todos.

A fala, por sua vez, é imprescindível para que a língua se enraíze e se estabeleça como estrutura estruturada.

Eis o fundamento dialético que não nos autoriza a pensar na distinção entre indivíduo e sociedade como entidades autônomas.

Mesmo fundamento que põe em suspenso as categorias de interior e exterior, tão difíceis de serem abandonadas.

A linguagem humana e todas as suas formas de expressão constituem os interesses da linguística.

Não estaria aqui o ponto de convergência entre linguística e psicanálise?

A linguagem é uma manifestação a um só tempo individual e social. Multiforme, ela envolve fenômenos físicos (ondas sonoras), fisiológicos (fonação e audição) e psíquicos (imagens verbais e conceitos).

A fala corresponde ao psíquico, cujo caráter é, em essência, individual. É através dela que particularizamos a língua.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O tesouro dos significantes

A língua é, antes de tudo, uma convenção que expressa o acordo comunal cristalizado em signos, os quais são símbolos da união entre o sentido e a imagem verbal que o indivíduo registra em seu processo de inserção linguística, que é a forma como se realiza a imersão na cultura.

Tanto filósofos quanto linguistas concordam que sem os signos não seria possível distinguir duas idéias de modo claro e constante.

Porque o pensamento, essa massa amorfa em que nada se apresenta delimitado, precisa da matéria fônica para moldar a plasticidade dos significantes e o jogo das diferenças entre eles, marca de toda e qualquer língua.

O significante, de natureza auditiva, se desenvolve no tempo. Representa uma extensão mensurável, como uma linha horizontal, na qual seus elementos se apresentam um após o outro formando um encadeamento chamado de cadeia dos significantes.

O significante não exige vinculação natural com a ideia que expressa. Este é o caráter arbitrário do signo defendido por Saussure.

Mas a liberdade entre símbolo e ideia não acontece no que diz respeito à comunidade que utiliza o significante.

A este fato, de o significante ter natureza impositiva quanto ao uso, Saussure chama de carta forçada.

A língua se situa no tempo e a isto se deve seu caráter de fixidez.

De modo que a solidariedade com o passado põe em xeque a liberdade de escolha.

Vemos aqui a relação intrínseca que existe entre dois fatores antinômicos: a convenção arbitrária, em nome da qual a escolha se faz livre e, o tempo, graças ao qual a escolha se mantém fixada.

O tempo, que assegura a continuidade da língua, tem também o efeito de alterar os signos linguísticos.

Mas em toda possibilidade de alteração domina a persistência do velho.

Daí porque se diz que o princípio de alteração se baseia no princípio de continuidade.

A mixagem desses fatores – alteração e continuidade – produz tal deslocamento da relação entre significado e significante, cujo efeito se reflete no fato de que a língua se transforma sem que os indivíduos possam transformá-la.

Estruturada tal uma sinfonia, cuja realidade independe da maneira como é tocada, a língua se impõe do exterior sem admissão de interferências.

Capturado na malha deste sistema, o indivíduo, em troca, é feito portador do tesouro da língua.

Lócus virtual em que a língua adquire expressão coletiva e completa.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A importância de Lévi-Strauss

A produção de Lévi-Strauss guarda um traço familiar que merece ser reconhecido. Ele provém de uma família constituída de músicos, cuja influencia transparece nitidamente em seu olhar inspirado no modelo das partituras musicais - o gosto pelas sínteses teóricas e pela escrita rigorosa.

A exemplo do que se realiza na música, Lévi-Strauss considerava ser preciso apreender a linguagem da estrutura.

O que é a partitura senão o esqueleto, a estrutura da composição musical?

Extraiu de Karl Marx a ideia de que as realidades manifestas são enganosas e que compete ao estudioso construir modelos para ter acesso aos fundamentos do real como forma de ultrapassar a realidade sensível.

Trazemos aqui a proposição de Marx também para acentuar que a tese estrutural sempre existiu. O método estruturalista já se encontrava em Marx.

A base de formação de Lévi-Strauss se deu na Alemanha. Sob a influência de Franz Boas, percebeu e valorizou a natureza inconsciente dos fenômenos culturais e colocou as leis da linguagem no centro da estrutura inconsciente.

É neste terreno que se situa sua maior inovação, qual seja: transpor o modelo linguístico para o campo da antropologia.

A linguística estrutural foi o modelo de que se serviu e Roman Jakobson, o nome relevante com quem estabeleceu contato. Dessa proximidade, Lévi-Strauss valorizou dois princípios muito importantes: a investigação de invariantes e a preponderância dos fenômenos inconscientes da estrutura.

Com a proibição do incesto, Lévi-Strauss se viu frente ao protótipo da lei - a invariância – que era o que mais perseguia.

Realizou um deslocamento em relação à abordagem tradicional, a qual entendia o fenômeno em termos de interdições morais. Era essa a concepção de Morgan, para quem a proibição do incesto consistia numa proteção da espécie contra os efeitos funestos dos casamentos consanguíneos.

A hipótese de Lévi-Strauss, ao contrário, acentua o caráter de transação presente na proibição dos casamentos consanguíneos, da comunicação que se instaura, para além da mesma tribo, com a aliança do matrimônio.

A proibição do incesto, base da aliança comunal, passou a ser concebida como decisiva no surgimento da ordem social. É neste sentido, inclusive, que se pode dizer que a proibição do incesto consiste na própria cultura.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

O estruturalismo na França

 A linguística francesa sobressai pelo seu atraso. Somente em 1956, Greimas publica um artigo em que mostra que a linguística estava sendo valorizada em diferentes domínios: por Merleau-Ponty na filosofia, por Lévi-Strauss na antropologia, por Barthes na literatura e por Lacan na psicanálise.

Era o momento auge do estruturalismo. Mas nada acontecia na lingüística francesa. Por esta razão, Greimas propôs o retorno a Saussure, centrado na semiologia, definida por este como a ciência que estuda a vida dos signos no social.

O estruturalismo surgiu na França como retomada intelectual, cujo veio de impulsão se deu nos anos cinquenta e sessenta.

Movimento que significou uma tomada de posição por parte de intelectuais descontentes com a cultura ocidental, e que estavam em busca de novos modelos para pensar a realidade social.

Intelectuais que desprezavam o engajamento político e almejavam ultrapassar o conhecimento acadêmico dominante.

Naquele momento, o estruturalismo representava o novo que se impunha ao antigo. Mas, a partir do retorno a pensadores que haviam sido abandonados no pós-guerra.