quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Preso no quartel



Marco permaneceria custodiado num quartel do batalhão da polícia militar durante três meses, para contemplar a medida de privação de liberdade, quando seria feita outra reavaliação.
A audiência, que determinou o cumprimento da medida de privação de liberdade no quartel, foi realizada por uma juíza, substituta do juiz titular.
Eu estava lá, quando Marco entrou escoltado por dois jovens soldados da polícia militar. Armados, cada qual, com um fuzil. Os policiais permaneceram na audiência, em pé, na posição de guarda.
Chamou-me a atenção a forma como um deles sustentava a arma na posição vertical, e o cano encostava, justo, na ponta do seu nariz. Era cômico e inquietante ver o policial empunhar a arma daquela maneira.
A cena suscitava aflição e o policial nem se dava conta do absurdo da situação. Foi preciso que a juíza chamasse a atenção do rapaz. Interrogou-o se não temia um acidente, ao manter-se naquela postura incorreta e perigosa para a sua própria segurança, portando a arma com tamanha negligência.
Nessa audiência, ficou determinado que a justiça acompanharia o caso durante o tempo em que Marco estivesse aprisionado no quartel.
Fui novamente convocada a intervir. Era a regra. O mesmo profissional dava prosseguimento ao estudo do caso.
Eu teria que entrevistá-lo lá no batalhão. Passou-me pela cabeça o despreparo do jovem policial na audiência, e pensei no incômodo da tarefa que me cabia desempenhar.
A primeira providência, minha, foi estabelecer contato com o cabo encarregado da custódia de Marco.
No batalhão, eles se preocuparam em me mostrar como Marco estava bem instalado.
Marquei uma entrevista com o comandante.
O oficial me pareceu cordial, satisfeito com a presença de alguém da justiça.
Contou-me, Marco recebia muitas visitas de familiares e amigos. Falou, também, sobre os presentes que chegavam todos os dias.
O alojamento onde instalaram Marco estava montado: televisão, vídeo, som. Os eletrônicos chegavam embalados em caixas de fábrica, acompanhados de nota fiscal e tudo.
O oficial me contava essas coisas como se quisesse minha opinião. Expressou a dele primeiro. Achava que os objetos haviam sido mandados pelo tráfico. Perguntei-lhe então, por que a entrega dos presentes era permitida.
Retrucou, foi ríspido, disse, por fim, que só permitia a entrega porque os objetos chegavam documentados, com nota fiscal.
A minha observação o havia irritado. Claro. Reagia à minha fala precipitada.
Daí em diante, ele ficou defensivo. Queria saber por que deveria se responsabilizar pela fiscalização dos objetos, uma vez que prestava um grande favor ao estado, custodiando o rapaz. Lembrou-me da ilegalidade que significava a permanência de um jovem menor de dezoito anos nas dependências de um quartel militar.
O jovem não devia ser acompanhado por um educador? Perguntou-me irritado, cobrando a natureza socioeducativa da medida.
O que o oficial não sabia era que eu concordava com sua apreciação crítica. O aspecto socioeducativo da medida judicial constitui uma das farsas do nosso teatro social.
Tentei dizer-lhe, talvez fosse o caso de levar essas ponderações ao conhecimento do juiz para que providências fossem tomadas.
Finalizamos com o acerto sobre a regularidade semanal das minhas visitas.
Frequentei aquele ambiente durante os três meses da medida judicial. Nas primeiras semanas, o cabo cedeu sua sala para as entrevistas.
O local não era apropriado nem confortável. A sala, bem pequena, tinha o básico: mesa, cadeira e um pequeno sofá. E um enorme calendário, cheio de fotos de mulheres, dessas que sonham em posar para a Playboy, completava a decoração da sala.
Mas, o que me preocupava, mesmo, era o vidro espelhado que dava para a sala ao lado. Ou seja, a sala cedida para as entrevistas era aquela usada para reconhecimento de supostos agressores.
Nesse campo de atuação, trabalha-se com o que se dispõe em termos da realidade imediata. Ultrapassar essas dificuldades faz parte do contexto técnico em que se desenrola o exercício profissional.
O certo é que obstáculos inesperados sempre se colocam no meio do caminho – entre aquele que atende e quem é atendido.
Às vezes, o próprio entrevistado se transforma em colaborador importante para o profissional driblar as dificuldades e concretizar a entrevista. Não é raro acontecer.
A situação mais delicada que vivi no meu trabalho, foi nesse estudo que realizei no quartel.
Eu já havia conseguido instituir uma rotina, ainda que rudimentar. As entrevistas tinham dia e horário preestabelecidos.
Ia na viatura oficial, que ficava me aguardando no pátio até o término da tarefa.
Os soldados que permaneciam na entrada do quartel já nos identificavam, a mim e o motorista, pela viatura oficial. Não exigiam maiores formalidades. Eu estava familiarizada com o caminho que percorria no quartel. O motorista me deixava em frente à portaria do prédio.
Certo dia, um soldado, me interpelou à entrada do prédio. Imaginei que precisasse me identificar. Disse-lhe a razão de minha visita e me movimentei em direção à porta.
O soldado empunhou o fuzil, engatilhou a arma e ordenou que eu parasse.
Identifiquei-me novamente, dessa vez apresentando minha carteira funcional e falei que cumpria uma determinação judicial.
Meu argumento não ajudou. Muito irritado, o soldado nem desarmou o fuzil. Ao contrário, disse-me: Não se atreva a subir, eu vou atirar. Eu custava a acreditar no que ouvia. Achei aquilo uma brincadeira de mau gosto. Até que Marco chegou correndo para desfazer o impasse. Dirigiu-se ao soldado: Deixa a minha tia, ela veio me entrevistar. Foi uma surpresa o aparecimento dele. O comum era ir escoltado até a sala da entrevista.
Perguntei o que fazia ali, naquele momento. Ele respondeu que estava se exercitando no pátio, quando me viu e percebeu a minha dificuldade com o soldado.
Subimos. Encontrei o cabo e reclamei do mau comportamento do soldado. Relatei o que havia acontecido. O cabo retrucou dizendo que eu não levasse a sério, pois o rapaz não regulava muito bem da cabeça.
Sua resposta aumentou, ainda mais, minha apreensão.
Perguntei se era permitido àquele soldado deixar o quartel para patrulhar as ruas da cidade. O cabo afirmou que sim, pois patrulhar as ruas era uma rotina que todos os soldados precisavam cumprir.
O cabo seria capaz de avaliar a dimensão da negligência que sua fala revelava?
Tratava-se de uma situação muito grave: um soldado sem equilíbrio mental, empunhando uma arma, patrulhando as ruas do Rio, portando a autoridade impressa na insígnia da corporação policial.
Na semana seguinte, fui informada de que a entrevista mudaria de local. Seria feita em outro pavilhão.

Nesse dia, Marco me contou, o soldado insolente, estava preso, ali mesmo naquele quartel, pois fora pego em flagrante, praticando extorsão contra um posto de gasolina. A fala de Marco prosseguiu, trazendo à tona uma sequência de outras associações sobre o mau proceder da polícia.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

O Retorno

 
Não havia passado, sequer, três meses, desde a fuga de Marco da Escola João Luiz Alves, quando ele foi novamente apreendido.
No tempo em que permaneceu solto, o sistema passou por uma grande reviravolta. Tanto o Padre Severino quanto a João Luiz Alves estavam com suas instalações imprestáveis àquela altura.
Essas escolas haviam sido praticamente destruídas nas rebeliões de outubro.
Nada ainda havia sido feito para equacionar o problema, do ponto de vista da estrutura material das escolas. Mas, o atendimento não podia parar. O trabalho prosseguia, malgrado a situação de ruína das escolas.
As autoridades declaravam, nos jornais, a edificação de novos equipamentos para o sistema.
Previa-se construir entre dez e vinte pequenas escolas, espalhadas por todo o Estado, aparelhadas para atender cerca de cinquenta adolescentes.
Nenhuma das promessas noticiadas foi cumprida pelo governo.
As reportagens, da época, se referiam a um projeto de substituição dos grandes internatos existentes por um modelo institucional chamado centro de atendimento intensivo, gabaritado com uma estrutura funcional descentralizada, com capacidade para realizar atendimento personalizado ao adolescente.
Condição que as equipes técnicas consideravam fundamental para pôr em prática a filosofia socioeducativa preconizada no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Eu havia estado recentemente na João Luiz Alves, mais ou menos dois meses após as rebeliões. Assustou-me ver os corredores ainda às escuras, com entulhos de demolição: pedaços de paus, pedras e vidros. Todo esse lixo perigoso permanecia amontoado pelos cantos dos corredores.
A Comlurb não aparecia para removê-los, diziam os diretores das escolas. Eles reclamavam que os adolescentes se apropriavam desses restos para fabricarem armas.
Os jovens aproveitavam para exercitar a criatividade produzindo estoques artesanais.
O ciclo enlouquecido do dia a dia urbano impõe o funcionamento da máquina a qualquer custo.
O circuito funcionava, então, no automatismo oficial: os policiais prendiam, os processos transcorriam dentro dos trâmites legais e os juízes determinavam a execução das medidas aplicadas.
Enquanto isso, a Escola João Luiz Alves, nas condições em que se encontrava, não podia se responsabilizar pela custódia de Marco.
E o sistema nada tinha a oferecer como alternativa a processos como esse que exigiam uma medida de internação.

Contradições grotescas de nossa realidade social.