quinta-feira, 29 de maio de 2008

Os Porões da Pólis

Nos anos noventa realizei um estudo sobre a grave situação das instituições responsáveis pela custódia de adolescentes infratores no Rio de Janeiro. São elas: o Instituto Padre Severino, a Escola João Luiz Alves e o Educandário Santos Dumont, todas localizadas na Ilha do Governador.
Para situar os leitores interessados, esta área de atuação estava nessa época sob a responsabilidade do Ministério da Justiça, compunha o organograma da Secretaria dos Direitos da Cidadania, na qual foi criado o Departamento da Criança e do Adolescente (Dec. 1796, de 24.01.96), que respondia pela implantação da política de atendimento de direitos da criança e do adolescente.
Com a promulgação em 1990 do Estatuto da Criança e do Adolescente, o atendimento oferecido por essas escolas deveria obrigatoriamente sofrer reformulações. Esta lei se inspira na Convenção internacional sobre os direitos da criança, que entrou em vigor também em 1990 e em diretrizes indicadas pela Constituição Federal de 1988.
O Estatuto da Criança e do Adolescente contempla, no plano ideal, os princípios contidos em orientações internacionais, que apontam para a integração global das nações, introduzindo a política internacional de mútua ajuda, principal conquista da humanidade após a experiência destrutiva da Grande Guerra.
Conforme prevê o Estatuto, o papel das equipes técnicas que trabalham nessas escolas consiste em proporcionar subsídios à decisão judicial, sugerindo medidas a serem adotadas mediante estudo de caso. Cabe também à equipe acompanhar os casos e desenvolver todos os procedimentos no sentido de elaborar uma programação que atenda às necessidades básicas do adolescente e da família.
A história sobre o percurso que teve o atendimento à juventude no Brasil apresenta um movimento ascendente e linear em direção à cobrança de responsabilidade por parte da sociedade em relação às atitudes do jovem (as ações consideradas anti-sociais – década de 50, posteriormente passam a caracterizar a situação irregular – década de 70, atualmente classificadas como infracionais – década de 90). Discussão que coloca em evidência a preocupação crescente com a responsabilidade penal e as conseqüentes modificações no conceito de imputabilidade.
Durante a República Velha foram criadas instituições e instrumentos legais nos quais sobressaia a dicotomia entre teoria e prática: aparecem instituições sem condições de cumprirem as finalidades para as quais eram destinadas; as administrações da Escola Quinze de Novembro foram marcadas por freqüentes crises originadas nas contradições e conflitos. Essas crises oscilavam entre dois pólos: ou se dava ênfase ao aspecto educacional e preventivo, ou se tratava o problema como um caso de polícia que necessitava de enérgicas medidas de segurança. As queixas se multiplicavam: a constante falta de verba, a falta de recursos humanos e materiais, a superlotação dos internados...
Esses problemas não são exatamente os mesmos que enfrentamos na atualidade? O que avançou nessa história? Tranquilamente se pode responder: os instrumentos legais, e só. E isto resultou em mudanças efetivas? Categoricamente se pode responder: Não. Mas por que não se consegue transformar em realidade as idealizações contidas nos documentos oficiais?
As equipes restringem o contato com os adolescentes à tarefa de organizar o estudo de caso exigido pelos juízes. Assim, realizam uma avaliação do aluno fria e sem conteúdo, na qual o adolescente nada de substancial sobre si mesmo pretende passar; e esta situação se reproduz com a família. A dinâmica das equipes técnicas reflete o todo do funcionamento dessas escolas.
A provisoriedade da internação conforma uma situação de não realização por parte de todos: os funcionários não se estimulam em investir num adolescente que logo irá embora, e ele não se percebe comprometido com nada ali, até porque para isto seria necessário acreditar no sistema. Além do mais seu objetivo é sair dali, ainda que saiba da absoluta falta de oportunidades e do sinistro que domina a vida na rua.
Há uma constante oscilação no objeto da atenção: ora o objeto é o relatório que deve ser entregue em prazo determinado e exíguo; ora o objeto é a árdua tarefa de controlar os conflitos, conter os desafetos e não permitir a evasão; ora o objeto é a confecção e sustentação de um projeto educativo.
De fato a pressão dos prazos judiciais acaba inviabilizando um trabalho voltado para atender às exigências sócio-educativas. Há a ausência de um projeto educacional em torno do qual os diferentes setores possam atuar. E é impossível para essas equipes darem conta de tarefas tão conflitantes entre si, além de exaustivas.
Uma sugestão seria formar um núcleo de técnicos voltados especificamente para fornecer a análise que subsidia a decisão judicial, enquanto um outro núcleo se envolveria em projetos claramente definidos, a serem executados e avaliados dentro de prazos definidos. Esta seria uma tentativa de quebrar a prática jurisdicista e conservadora que acaba por contaminar toda a práxis nessas escolas.
As múltiplas insatisfações dos funcionários e a alienação do Estado para cumprir condignamente suas responsabilidades executivas, configuram um quadro de tensão e impotência indissolúveis, que ameaça constantemente a saúde das pessoas que trabalham nessas instituições insalubres.
Mas a maior necessidade desse sistema é adotar uma mira filosófica / teórica acerca do sujeito com que se trabalha nessas instituições. O que significa se implicar na discussão sobre nossa história social particular – brasileira – no processo civilizador.
Trata-se de uma sociedade jovem, que traz na sua bagagem a trágica experiência da colonização selvagem, do trabalho escravo, da conformação de uma elite aristocrática, ruralista, que não consegue impedir o desenvolvimento de um grupo de elite que clama pelos ideais liberais. No seio dos conflitos entre os interesses diferenciados desses grupos, crescemos, ainda que frágeis, em nossa busca de autonomia; avançamos entre tropeços e retrocessos nosso projeto de nação liberal. Entretanto, nos impasses para superar os efeitos paradoxais do passado, acumulamos uma gigantesca dívida social, centrada na forma como se consolidou (?) nosso sistema de direitos sociais, expressa na tríade: habitação, educação, saúde. Essa dívida é proporcional à concentração de capital e de propriedade por pequeno segmento da sociedade.
O Estatuto da Criança e do Adolescente é um instrumento resultante de uma reflexão coletiva de caráter internacional sobre a preocupação da civilização com a infância. Nesta perspectiva, temos uma estratégia filosófica e pragmática: a sócio-educativa, que nos indica o caminho da proteção integral.
Daí que o aspecto social presente na díade – sócio-educativa, exige a montagem de um sistema assistencial, da construção de um conjunto de instituições de atendimento com caráter preventivo: suporte social essencial para viabilizar a retaguarda da intervenção educativa, judicial e policial.
O aspecto educativo presente nessa díade, não pode ser reduzido a uma preocupação coercitiva das atividades do indivíduo. Há que permanecer um tanto distanciado do papel restrito que cabe à justiça e à polícia. Estes, compõem um aparato de intervenção que, limitada pela sua inerência qualitativa, deve permanecer na redução do limite coercitivo que se exerce sobre a ação destrutiva, com precisão técnica e humana, mas preservando sempre a restrição de seu enquadre.
No caso da instituição educativa para o jovem infrator, há que se garantir a especificidade – especial – de sua intervenção: entramos aqui na discussão sobre um projeto de atendimento no qual as necessidades individuais devem ser observadas com as lentes precisas de microscópio. Esse tipo de abordagem exige que um aparato de promoção social caminhe pari passu apoiando o jovem e sua família. Mas para que este projeto possa se realizar é preciso acabar primeiro com as macro-instituições de internação.

Extraído do artigo Os Porões da Pólis, de Maruza Bastos; in: A pesquisa nas ciências do sujeito. Rio de Janeiro: Revinter, 1998.

Nenhum comentário: