terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

A queda


 Marco gostava do valor que conquistara no tráfico. A sedução de um poder que lhe parecia ilimitado, a promessa de se tornar rico e influente. Um dia, talvez, pudesse vir a ser dono do morro.
O negócio era promissor. A permanente movimentação de pessoas, o dinheiro em abundância no caixa, todavia, trabalhar como gerente na boca deixava-o mareado. Sob esse aspecto, sua função não diferia de pegar duro no batente.
Afinal, o movimento gera preocupações típicas do mundo do trabalho. Administrá-lo exigia instituir tarefas e procedimentos rotineiros, cuja execução exigia certa dose de burocracia. A contabilidade lhe parecia a parte menos atrativa.
Como vencia a monotonia dos dias iguais?
Quando se sentia entediado, descia o morro à caça de aventuras.
Matava o tédio com doses colossais de adrenalina. Era impossível abrir mão das ações espetaculares. Ansiava por atos que considerava fortes, como roubar bancos ou interceptar carros fortes.
Pequenos furtos e roubos menores eram ações fracas que desprezava.
Usava armamento forte. Fuzis, AR-15, K-47 coroavam com êxito as ações sensacionais. Rajadas de AR-15 em perímetro de grande concentração urbana ou puxar carro para tirar uma onda eram aventuras fortes. Sacudia a calmaria do tráfico.
Colado à imagem desse ideário, preenchia os dias de sua vida de gerente-de-boca. Passava as noites insone, embriagado de poder e cocaína.
Vivia em plenitude a sensação mágica de ser todo-poderoso. Ganho gratificante de ser-tabu.
Amava suas aventuras. Alimentava-se de querer-mais-poder, na ilusão de ser mito respeitado-temido.
Protegido com a crença de possuir o corpo fechado, lançava-se às provocações do combate. O rato, agora transmudado em lobo, trocava os subterrâneos dos esgotos, fascinado pela altura dos penhascos.
Cheirado, partia para cumprir seu destino. Subia pelos becos estreitos até o ponto mais alto. Lançava aos céus uivos grotescos, mecanizados. Era o AR-15 a jorrar rajadas intermitentes de um gozo estranho - sua erótica preferida.
Liturgia que se repetia nas ruelas escuras, pelas madrugadas, assombrando cães e criancinhas. Os cães latiam, as crianças choravam e os pais tremiam. Temiam que o choro infantil pudesse irritar os lobos insones a quem, de algum modo, deviam. Eram mulheres que pediam o enxoval e o berço do bebê, eram pais de família que recebiam tijolos, telhas, sacos de cimento para melhorar a moradia, eram famílias migrantes que obtinham permissão para abrir a tendinha.
O preço da ajuda era tão alto quanto ela se fazia necessária, para minimizar a situação miserável entregue ao deus-dará da falta de políticas públicas, da falta de governo.
Aprisionada, nessas circunstâncias, a comunidade jamais saldava as suas dívidas. Pagava em cotas diárias de silêncio e cumplicidade.
O medo crescia como lodo.
Eram mães que prendiam os filhos em minúsculos cômodos com medo de balas perdidas; eram famílias que trabalhavam e mal dormiam com a arruaça noturna dos tiros e dos fogos de artifício; eram pais que choravam pela vida evadida dos filhos jurados na comunidade; era a ação violenta da polícia que, entre pontapés e coronhadas, invadia as moradias, sem pensar nos erros e nas prováveis injustiças.
Certo dia chegou novo arsenal de armas na favela. A celebração pela chegada do carregamento mereceu noites de orgias.
Fuzis rugiam e fogos de artifício ecoavam.
Na fisionomia autoconfiante de Marco algumas rugas paranoides começavam a sulcar sua expressão. Suspeitava das pessoas da comunidade. Sentia naquele ambiente algum tipo de descontentamento.
Não que houvesse queixas. Mas pressentiu algo de estranho pairando no ar. Era melhor, por via das dúvidas, esconder as armas. Escolheu um lugar estratégico longe dos olhares dos moradores. Cavou, no alto do morro, um fosso fundo e enterrou-as.
Mas não enterrou a desconfiança. Ela teimava. Sua agressividade aparecia cada vez mais, a qualquer hora, na mesma proporção em que seu descrédito crescia.
Não se sentia mais tão seguro de si no seu morro. Achava que a polícia poderia estourar a boca a qualquer momento.
À noite, em estado de alerta, aguardava um ataque inimigo. Vigiava os sons, os pequenos movimentos.
Dormia com a arma embaixo do travesseiro. Lutava contra a certeza de que um dia seria surpreendido. Até que uma noite teve a casa cercada pela polícia.
Bem informados, os policiais fizeram-no levá-los até o local onde escondera as armas.
Tentou negociar, como de hábito. Mas havia naqueles policiais uma gana em pegá-lo. Queriam a sua cabeça. A satisfação de prendê-lo era maior do que o dinheiro que lhes oferecera.
Foi preso. Como ainda não completara dezoito anos, contabilizou mais uma entrada no Juizado. A oitava vez que retornava.
Não sabia dizer quem o denunciara. Talvez o pernambucano dono da birosca que há dias o olhava enviesado; talvez uma mãe esgotada pelas noites mal dormidas, quando se sobressaltava com os tiros de fuzis.
Na incerteza, Marco imaginava e refletia sobre os motivos que teriam levado alguém a denunciá-lo.
Ao menos fora capaz de falar e pensar sobre a ferocidade de seu comportamento nocivo e assustador, a ponto de iniciar um movimento de basta naquela vizinhança, tão acostumada a aceitar a sucessão dos acontecimentos.
Marco pôde perceber que sua imagem fantasiosa e idolatrada não ia além dos limites precários de seu grupo. Seus fãs se restringiam a alguns pobres rapazes que, como ele, possuía muito pouco para sonhar. Contentava-se com a glória um tanto estúpida de se reconhecerem citados, protagonizando alguma triste notícia numa coluna policial.
Como tudo que vem fácil vai fácil, provérbio muito recitado nesse campo, depois que o dinheiro rateado acabava, não havia o que se dividir com os parceiros.
Restava a lembrança dos feitos heróicos, o papo de caçador a sustentar um pouco mais o gozo do ato.
Quando a onda passava, a vontade de querer ser por inteiro voltava intensa.
Era quando abandonava a trincheira e saía para aprontar alguma com o bando.

Reviviam ecos da saga heroica que orbitava zonas remotas de suas primitivas mitologias.