quinta-feira, 3 de julho de 2008

O transgressor e sua busca de objeto

O principal objetivo deste estudo, realizado nos anos 90, é contribuir para ampliar o horizonte de reflexão de profissionais que trabalham em instituições voltadas para o atendimento e custódia de jovens comprometidos com a justiça.
O grupo de adolescentes que compôs o campo de investigação nos foi encaminhado pelo setor pedagógico de três escolas que respondem pela custódia judicial de jovens no Rio de Janeiro.
Estes adolescentes correspondem a um percentual pequeno, quando confrontado com a população total que passa pela justiça, mas remetem-nos a histórias de retorno constante ao circuito judicial. Conhecemos rapazes ainda muito novos, na faixa de quatorze a dezesseis anos, atores de uma vida que envolvia grandes perigos. Como nos confirma a própria fala de um deles:
“Às vezes eu passava de carro, com a AR-15 e tirava a maior onda com a cara deles. Saltava do carro e dava uma rajada. O engarrafamento desaparecia. Abria espaço para eu passar. A AR-15 é sinal de poder, não é pra quem quer, é pra quem pode”.
O transgressor parecia se esmerar para estreitar seus caminhos de modo a restar apenas um tênue fio entre a vida e a morte. O uso de armas de fogo pesadas, às vezes duas ou mais, fazia-nos refletir sobre a fragilidade do eu que presidia essa ação de defesa/ataque. A suspensão da Lei garantia a licenciosidade para o agir narcísico, irrefletido, incontido.
”Não gosto muito de ficar na boca sem fazer nada, dá maresia. Não tem nada pra fazer. Eu prefiro assaltar, agir, fazer assaltos em firmas e mansões”.
(...) é nessa provocação incessante da lei que ele se assegura – até mesmo se ressegura – de que a lei realmente existe, que pode encontrá-la e procurar nela experimentar a economia de seu gozo. É neste sentido que a transgressão é o correlato inevitável do desafio (...) (Joel Dor, 1991:129).
Como costuma agir o transgressor protagonista de nossas entrevistas? Que palavras os adolescentes diziam se utilizar durante as ações praticadas?
“Já perdeu. Pode ficando quieto e passar tudo senão morre”.
Trata-se aqui do estabelecimento de um jogo em que forças são medidas, de um desafio lançado ao acaso. Mas ao mesmo tempo configura duelo onde apenas um havia se preparado para o momento de ataque.
A regra desse jogo é desarmar alguém que já se supunha desarmado. Claro que existe sempre a possibilidade, o risco de tudo perder. Mas é exatamente este fator que nivela a ação no patamar dos rituais de sacrifício.
As únicas coisas temíveis são a polícia e a morte. Possibilidades que se vislumbram na linha do provável, do acaso, do real.
O transgressor acessa o objeto pela violação. O preço do objeto não é calculado conforme as leis do mercado ou da troca. Este é determinado pelas condições em jogo na sua aquisição.
O que o transgressor busca através de sua ação não é apenas o cometimento de uma infração. A sua conduta simboliza uma falta, trata-se de uma ação simbólica. Porque é a falta do objeto que conta.
Afinal, o que pode acontecer no momento da ação?
“Matar ou morrer. As chances são iguais.”
“Tenho medo de ser pego pela polícia. Ela não quer nem saber, se pega a gente de madrugada mata mesmo.”
Lances de um jogo que se passa na indefinível fronteira do real e do virtual: tudo ou nada pode acontecer. No interior desse extremado realismo reside a ficção de se postar diante do limite último, para dribá-lo no mais absoluto dos desafios. A palavra-chave é quieto, ou seja, não se mova.
Palavra de comando sobre outro feito escravo que em princípio não se deseja morto, mas testemunha muda do desafio que simboliza a metrificação do falo. Por isto diz-se de ação, que ela adquire o estatuto de simbólica. Simboliza alguma coisa ausente-presente naquele instante que a dramatização encobre.
Tal como acontece com o fetichista, a situação se torna cenário-tela do momento preciso em que se pode supor que a mãe possua o falo. O efeito véu que a ação encerra, congela, por segundos, o instante real. Na ação rápida – mágica – a mãe é ficcionada total.
Para além da ação existe a suposição de deter o objeto absoluto que encobre momentaneamente a falta, a angústia que acompanha o horror da castração. O objeto desejado em relação ao outro não é tanto o que ele porta enquanto bens, mas muito mais o seu olhar surpreso-apavorado ante o horror da castração.
Olhar do outro que espelha o olhar de horror do próprio transgressor ante a castração. O gozo desse momento oportuno lança o outro num lugar impotente, desarmado.
A submissão vexatória do outro é apenas uma situação contingente: o que é desejado é o olhar desse outro que testemunha o gozo perfeito. Não é com isso que sonha o transgressor, o crime perfeito, aquele que não deixa vestígios, e, assim ideal, é capaz de arremessar seu autor no auge da glória?

Extraído do artigo O jovem transgressor: suas implicações na ação, de Maruza Bastos, in: Cadernos de Metodologia. Rio de Janeiro. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Centro de Teologia e Ciências Humanas. Departamento de Psicologia, v.4/5, 1997/98.

Um comentário:

Beto Palaio disse...

Maruza,
Gostaria de passar a lhe enviar o nosso quinzenário LITTERA TOUR...

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