segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Romeu e Julieta: o surgimento do inquérito

A forma como estruturamos, no Ocidente, o julgamento dos homens face aos erros que cometem leva-nos a entender o inquérito como um instrumento, como um tipo de pesquisa da verdade. E, embora o inquérito tenha surgido no decurso da história grega, ele permaneceu esquecido por longo tempo.
O inquérito ressurgiu no interior da ordem jurídica, na Idade Média, nos séculos XII e XIII, quando, no final do século XII aparece a figura do procurador, representante do soberano, do rei ou do senhor.
Face a ocorrência de uma contestação entre indivíduos ou um crime, o procurador intervinha na qualidade de representante do poder. A vítima era assim substituída pela figura do procurador que representava o poder político do soberano.
O dano não se restringia mais à esfera da vida privada. Não mais dizia respeito a dois indivíduos ou duas famílias que se confrontavam belicosamente no duelo, na guerra.
A tragédia Romeu e Julieta, escrita por Shakespeare em 1597, ilustra o momento dessa passagem, quando o controle da violência, que se processava entre famílias rivais, passou da esfera privada para a esfera do estado.
Essa tragédia, baseada numa história verídica ocorrida no início do século XIV, coloca em cena um tema muito antigo que inclusive já existia na literatura grega.
No prólogo, o coro apresenta a razão motriz da história:
“Na bela Verona, onde situamos nossa cena, duas famílias iguais na dignidade, levadas por antigos rancores, desencadeiam novos distúrbios nos quais o sangue civil tinge mãos cidadãs. Da entranha fatal desses dois inimigos ganharam vida, sob adversa estrela, dois amantes, cuja desventura e lastimoso fim enterram com sua morte, a constante sanha de seus pais. Os terríveis momentos de seu amor mortal e a obstinação do ódio das famílias, que somente a morte de seus filhos pôde acalmar, serão, durante duas horas, o assunto de nossa representação.”
Duas poderosas famílias inimigas de morte, os Capuletos de um lado, e os Montecchios, de outro, alimentavam constantes desavenças que envolviam, num círculo de ódio e vingança, do patriarca ao menor dos serviçais.
Para evitar esses infindáveis litígios, Escalo, Princípe de Verona, decreta que os atentados ao sossego e à paz seriam severamente punidos com a morte do ofensor. Com essa atitude, Escalo enquadra as desavenças familiares na órbita do poder que detém como soberano. No último ato da tragédia, Escalo preside a diligência que irá apurar os fatos.
“Príncipe – Sela por um momento a boca do ultraje, enquanto esclarecemos estas ambigüidades e ficamos sabendo sua origem, causa e verdadeira seqüência; então, serei o chefe de vossas dores e vos conduzirei até a morte. Calma, por enquanto, para que a desventura seja escrava da resignação. Fazei comparecer as partes suspeitas.”
Escalo intervém no litígio e confisca o poder de julgamento e de punição. Mas o que ainda preside a cena é a ação de um homem com todo o peso de seu estilo e desejo pessoal de interferência. Podemos supor que nem todos os soberanos desejavam essa exposição ao conflito.
O procurador, como representante do soberano, encarna a impessoalidade processual que caberá ao estado.
Com o procurador, o dano adquire novo sentido, assume o estatuto de infração. O poder do estado se inclui como parte ofendida. Desde então, a ofensa entre indivíduos configura ofensa ao estado, ao soberano, à lei do estado.
A infração aparece na vida do homem medieval como uma modificação na forma de resolução de litígios. O indivíduo perde o direito de intervir, deixando os procedimentos dessa intervenção a cargo do soberano. Antes, havia somente o dano que um indivíduo causava a outro, e o drama se restringia à busca da certeza de quem estava com a razão.
Com a entrada em cena das figuras da infração, do procurador, e do soberano, as relações que envolviam a resolução de um litígio não apresentam mais as mesmas características típicas do enfrentamento igualitário entre dois indivíduos. Novos mecanismos, tais como o flagrante delito e o inquérito, passam a ocupar o lugar da prova e do duelo.
No flagrante delito, as pessoas surpreendem o acontecimento no momento em que alguém comete um crime. Essas pessoas detêm o poder de levar o fato a conhecimento do soberano e de exigir reparação.
A prática do inquérito na Igreja da Idade Média se chamava visitatio. O bispo percorria sua diocese, e em determinado lugar instituía a inquisitio generalis.
A inquisição geral era uma etapa preliminar, na qual alguns indivíduos eram considerados como aqueles de deviam saber. Homens tidos como notáveis, idosos, sábios, virtuosos eram chamados para relatar tudo que havia ocorrido durante a ausência do bispo.
Caso houvesse o relato de uma falta, o bispo instaurava a etapa posterior que consistia na inquisição especial – inquisitio specialis. Apurava-se quem tinha feito o que, quem era o autor e qual a natureza do ato.
Esse modelo, a um só tempo religioso e administrativo, sobreviveu até o século XII, momento histórico em que o soberano começa a presidir todo o poder, e confisca os procedimentos judiciários para o âmbito de seu domínio. É quando entra em cena o procurador, representante do soberano, que irá repetir o ritual e a regularidade do inquérito eclesiástico.
O inquérito surge como um dispositivo racional que tem por função substituir o flagrante delito. Significa um ampla transformação na estrutura política, porque condensa uma forma de expressão do poder técnico-administrativo; exprime uma forma de governar.
A partir dos séculos XIV e XV, vê-se consolidar uma forma geral de saber, de inquirir, que tem como matriz os procedimentos que surgiram no século XII.
O inquérito se introduz no direito a partir das práticas religiosas da crença cristã. Herança que justifica a impregnação de categorias religiosas no direito, como falta, pecado, culpa moral, dentre outras.
Esse método de inquirir sobre a verdade se difundiu além dos limites das práticas judiciárias da Idade Média. Em torno dessa modalidade se estabeleceram muitos outros domínios de práticas e de saber.
Sob o peso dessa influência foram gerados e disseminados os procedimentos administrativos que talham o controle necessário à produção utilitária, motor do mundo acadêmico, científico e empresarial.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A tragédia de Édipo

A tragédia de Édipo serve-nos de testemunho das práticas judiciárias gregas. Sob esse aspecto, podemos dizer que a tragédia de Édipo é a história de uma pesquisa da verdade, cujos procedimentos obedecem às práticas judiciárias daquela época na Grécia.
Para Foucault, o mecanismo de estabelecimento da verdade obedece a uma lei, a qual ele denomina a lei das metades, pois que é por metades que se ajustam e se encaixam que a descoberta da verdade procede em Édipo.
Apenas para relembrar, na trágica história Édipo-Rei escrita por Sófocles em data imprecisa, o príncipe de Corinto, Édipo, é insultado por um bêbado que o acusa de ser filho ilegítimo do rei Políbios. Perturbado, Édipo recorre ao Oráculo de Delfos, que lhe revela seu destino: matar o pai e casar com a mãe. Atordoado, Édipo foge de Corinto, distanciando-se de seus pais, como forma de se liberar da terrível profecia. No caminho para Tebas, contudo, Édipo se depara com uma carruagem, à frente da qual, vem o arauto que lhe ordena que se afaste, e o empurra para fora da estrada. Édipo dá início a uma briga e termina matando todos que estavam na carruagem. Um dos passageiros era seu pai biológico, Laios, o Rei de Tebas. Após decifrar o enigma da esfinge e salvar Tebas do flagelo que a acometia, Édipo foi proclamado rei de Tebas, casando-se em seguida com Jocasta, viúva de Laios, que na verdade era sua mãe. Mas só depois que uma nova maldição caiu sobre Tebas os fatos que envolviam a morte de Laios foram esclarecidos. Édipo não suportou a verdade e arrancou seus próprios olhos. Antes do nascimento de Édipo, Laios havia cometido engano semelhante, e Apolo o advertira de que seu filho um dia o mataria. Por isto quando Édipo nasceu, temendo a profecia, Laios mandou perfurar com um cravo um dos pés da criança e abandoná-la em uma montanha. Daí vem o seu nome “Oidípous”, que significa “pé inchado”. O pequeno Édipo foi encontrado por um pastor e levado ao rei Políbios que o adotou.
No jogo das metades nessa tragédia, conspurcação, assassinato, quem matou... todas verdades aparecem cifradas, de forma profética. A forma como se encaixam as metades para compor a totalidade da história de Édipo é ao mesmo tempo religiosa e política, quase mágica.
Trata-se de um exercício de poder, de alguém capaz de manipular um segredo, ou de vários que detém os fragmentos de uma história.
A primeira série de metades que se ajustam é o do deus Apolo e do adivinho Tirésias. Ela se desenvolve no nível da profecia e dos deuses. Contém um tipo de olhar mágico-religioso que surge logo no início da encenação. A verdade é dita sob a forma de prescrição e profecia. Já a segunda série de metades é formada por Édipo e Jocasta; é o nível dos reis, dos soberanos. E a terceira série é constituída pelo escravo de Políbio e pelo pastor da floresta Citerão. Sob a forma de testemunho, eles irão enunciar a verdade última, aquela que resguarda como prova, o olhar. Um servo viu Jocasta lhe entregar uma criança para ser abandonada na floresta; o outro servo também viu a criança na floresta e a conduziu ao palácio de Políbio.
Existe uma relação entre os deuses e os servos. Eles dizem a mesma coisa com linguagens diferentes. Os servos atestam o que já haviam dito os deuses. Eles viram e se lembram do que presenciaram com seus olhos humanos, o que havia sido prescrito pelo olhar religioso e profético do adivinho Tirésias e pelo olhar eterno e iluminador do deus Sol, Apolo.
Analisando o título da tragédia, Édipo-Rei, Foucault conclui que o poder de Édipo é o tema central de toda a trama. A questão se prende à perda de poder de Édipo, que está preocupado em preservar a sua condição real. Acredita que Creonte e Tirésias armaram um complô contra ele.
Édipo diz a Tirésias: “Escarneces de inveja do poder que me trouxe tão alto?” Édipo acusa Creonte: “Quando o conspirador avança rápido, eu tenho de ser rápido também: se eu ficar esperando, aumenta o risco, ele triunfa e eu sou derrotado.”
O poder de Édipo foi conquistado por ter demonstrado possuir um saber superior em eficácia. Édipo resolveu o enigma da Esfinge e não cansa de lembrar a todos que pôde fazê-lo sem a ajuda de ninguém. Édipo fala a Tirésias: “O riqueza, poder, sabedoria, quanta inveja trazeis em vosso bojo! Quando foi que provaste ser vidente? Por que, quando rondava por aqui a Esfinge ruminando cantilenas, nunca tiveste nem uma palavra que devolvesse a liberdade ao povo? Eu, Édipo, sem nada saber, logo ao chegar fiz a Esfinge calar: deslindei a questão pela razão, nem foi preciso consultar teus pássaros!”
Ao compor o personagem Édipo, Sofocles discutia o poder político e o saber solitário da figura do sofista que existia em Atenas. Mas também colocava em cena a tirania comum naquele período histórico. O tirano, tal como Édipo o representa na tragédia, era um homem que detinha poder-saber. Correlativos e sincrônicos, eles dotavam o soberano de um especial domínio.
A Grécia viveu muitas lutas, contestações políticas e esta história também levou à elaboração de um forma modelar de descoberta jurídica da verdade que se apóia na materialidade e no testemunho.
Dividida em metades, a verdade aos poucos se reconstitui, e torna-se presente nos relatos daqueles que viram com seus próprios olhos algo que se sucedeu no passado. O entrelaçamento dessas experiências humanas comuns, potentes, transcende os limites da temporalidade. Unifica, por instantes, passado, presente, futuro, e toca o quê de eterno e sagrado que se encobre no núcleo da verdade.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Relato mítico sobre a verdade

Ao discutir sobre formas de proceder no estabelecimento da verdade, Michel Foucault remonta à Ilíada e colhe o primeiro testemunho sobre a verdade que incide no procedimento judiciário grego.
Trata-se de uma história curiosa contada por Homero sobre uma contestação que ocorreu durante um litígio entre Antíloco e Menelau.
Durante uma prova de corrida de carros, Menelau acusou Antíloco de haver este cometido uma irregularidade. Antíloco defendeu-se afirmando não ter cometido a falta que lhe fora atribuída.
Ante a atitude de Antíloco, Menelau lançou um desafio a seu adversário. Sugeriu que Antíloco colocasse sua mão direita na testa do seu cavalo, que segurasse com a mão esquerda seu chicote e jurasse perante Zeus estar dizendo a verdade. Confrontado com a exigência do desafio, Antíloco recusou a prova, o juramento e reconheceu que havia cometido a irregularidade.
Como uma forma singular de produção da verdade jurídica, esse relato mítico prescinde do testemunho. Assemelha-se a um jogo que comporta uma prova sob a forma de desafio, que é dirigida ao acusado.
Nessa prova arcaica da verdade vemos que o que prevalece é o jogo. A constatação, a testemunha, o inquérito ou a inquisição são deixados de lado.
A prova caracteriza um tipo de investigação da verdade que foi muito utilizada na sociedade grega arcaica e também na sociedade medieval.