terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Justiça é verdade em ação

Talhada nas fibras de madeira maciça da mesa do tribunal se destaca a inscrição: Justiça é verdade em ação. Enunciado mítico que revela o modelo lógico da liturgia judiciária, substância da narrativa jurídica.


A verdade em ação colocada nessa sentença como predicativo da justiça situa a historicidade, a circunstância, o caso particular, conduzindo a riqueza original do acontecimento para a esfera previsível dos procedimentos processuais. Eis o ritual de atualização da potência mítica que vive e se alimenta no além-histórico, na permanência imperativa da burocracia.


No significante mítico se apresenta a significação dada.


Plena de racionalidade, constituída por um sistema prévio: a instituição escolástica personifica-se na figura do juiz e na regra do contraditório.


O significado, como um jogo, é feito de palavras lançadas na atmosfera da sala, em que se confrontam os sentidos adversos: do acusado, das testemunhas, dos personagens que compõem a dramaturgia judiciária.


Misto de suposições, hipóteses e segredos, encapsulados em retóricas verdades-mentiras, amalgamadas na formatação almejada, cujo suporte se encontra na escritura sagrada.


A bíblia, símbolo central da liturgia, garante a veracidade dos testemunhos, o compromisso sagrado que se renova em cena para que prevaleça a verdade.


O germe da transmissão escolástica se incrusta na repetição ritualística do procedimento judicial, desafia o tempo e ressurge na atualidade, revigorando a mestria dos doutores da lei.


A força dessa transmissão se mantém viva na aura da atemporalidade e da impessoalidade que permite impor a significação sem análise.


No intermédio das formatações processuais, a história do acusado se esvai, mas seu sentido de todo não se extingue, permanece apagado, como que desmemoriado. Proceder no qual o sentido sobrevive como forma vazia e submissa. Essa transmutação é a mensagem que a inscrição mítica nos transmite.


Justiça é verdade em ação porque faz renascer, no ato dramático, a instituição escolástica, presença transparente da verdade atemporal. Significação prévia que agora coabita o corpo morto-vivo do sentido, fantasma que comanda esse corpo zumbi.


O ritual que se atualiza na encenação da audiência gira em torno da movimentação que é o ponto de contato da verdade escolástica, sua tradição dialética, com a maneira como esta se transmite no ato de censura dos dilemas atuais.


A instituição jurídica, envolta na aura de uma religiosidade sacra, vive da fruição dessa verdade eternizada como natural.


A atmosfera que se nos impregna é de apagamento do tempo. Sensação que ali se reúnem homens especiais, capazes de ler a letra morta da lei e, interpretá-la, imbuídos da sabedoria douta reservada aos iniciados.


Ainda que a prática judiciária oscile segundo o ideário e os princípios éticos que porta cada juiz, carregando para a prática interpretativa a influência viva de sua história pessoal, o poder que a sociedade deposita no exercício da magistratura seduz o indivíduo que a exerce, transforma-o em um quase deus.


Muitas vezes o juiz deposita sua fé nessa crença, sustentada não apenas pelo senso comum, mas sim autorizada pelos institutos sociais, passa a acreditar ser diferente dos demais.


Tocado pela atração do poder mítico que lhe é conferido, o juiz utiliza-o muitas vezes sem advertir-se dos perigos. Atração que poderá instá-lo, vulnerável, na região perigosa da exacerbação narcísica, do fascínio inebriante que cega, obseda e adoece.