segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Estrutura e clínica

A palavra possui significância especial na cena analítica. Ela reveste de simbolização a experiência transferencial, tal como faz com certa face do real, quando esta se presta a ser apreendida pelo verbo.

Ela foge do sentido habitual que a língua lhe confere para conotar algo do vivido, do real que, desse modo, se deixa entrever.

Como força do plus de acento que a palavra ganha no exercício analítico, somos levados a prestar atenção na fala, visando, inclusive, ultrapassar seu sentido usual.

Faz parte do rito típico do ofício de analisar recortar da fala uma palavra que clama - por certo conteúdo particular, por certa conotação, por certa densidade, por certa estranheza, ou, por sua incidência repetitiva no discurso – avisando-nos sobre o núcleo de significações que nela se concentra.

“E como não haveria até mesmo um psicanalista de hoje de sentir que chegou a isso, a tocar na fala, quando sua experiência recebe dela seu instrumento, seu enquadre, seu material e até o ruído de fundo de suas incertezas?” – Escreve Lacan em A instância da letra ou a razão desde Freud.

De fato, muitas vezes fica flagrante quão concreta a fala pode se apresentar, especialmente quando porta-voz da língua fundamental do delírio.

Tamanha literalidade nos faz pensar que não se trata na fala de uma descrição distanciada sobre a realidade, em que esta se faz representar através dos signos convencionais da língua, mas que ela, em si, é uma realidade.

A realidade da fala porta uma linguagem, na qual se encadeiam signos-enigmas da língua singularizada.

Sobre essa realidade, de importância capital, incide o trabalho do analista, que consiste primeiro em levar em consideração justamente isto: a fala enquanto realidade.

Fala realidade palpável para o psicanalista que chega mesmo a tocá-la.

Eis o elemento invariante do trabalho analítico.

Apesar da pluralidade teórica das diferentes abordagens, que psicanalista discordaria que a psicanálise opera sobre a realidade da fala?

Mas, o que é a realidade da fala senão o campo sobre o qual incide o trabalho analítico?

A fala, entendida como campo, nos fornece a imagem de que sua realidade se assemelha a uma mina, da qual se espera extrair a matéria prima.

Ao discursar para um grupo de filosofia da Federação de estudantes de Letras, Lacan lembra que Freud considerava a qualificação literária a exigência primordial da formação dos analistas.

Por que Freud via na universitas litterarum o lugar ideal para a psicanálise?

Não seria o desvendar da trama, do drama, tal como o sentido trágico se ordena nas palavras, no contexto da fala, a verdadeira construção a que se dedica o psicanalista?

Construção que implica em desconstruir a ordenação do discurso; produzir no desmaiar do sentido o desvio do curso associativo; introduzir o elemento perturbador, cortante, desconcertante que é a fala do analista, ou seu silêncio ante o pedido insistente de um fechamento que possa interpor uma clausura à incerteza que marca a busca angustiante, precipício sem fim das significações.

O psicanalista (e porque não dizer o analisando também) se apropria da densidade gravitacional que envolve a palavra no ambiente da análise.

O enquadre não seria a expressão dessa força?

Que força gravitacional é essa que toma conta das palavras no setting analítico?

A experiência do analista recebe da fala seu enquadre, nos diz Lacan. O recorte de certas palavras do discurso manifesto realizado pelo analista, em si, implica que uma seleção interpretativa foi posta em ação, início da construção que se realiza em análise.

Construção marcada pelo estilo, pelo traço, pela arquitetura singular de cada analista.

Deste ponto preciso e particular emerge a estrutura da composição literária que se processa em cada análise.

O enquadre é, ele mesmo, expressão dessa literatura que dá corpo e estrutura o trabalho de análise, estruturando, no conjunto, a posição do analista, proporcionando a força temporal que a sustenta.

Porque é dentro de uma temporalidade transferencial que se cria a atmosfera densa em que esta produção invisível se processa.

Mas, o lugar estrutural da posição do analista não está dado, porque é um lugar que não resiste à cristalização.

É um lugar, o tempo inteiro, achado e perdido na barafunda da linguagem que transborda em particularidade na cena analítica.

Linguagem que brota na fala e toma a forma de palavra limpa do convencional sentido, para borrá-la completamente na mistura de sentidos afetados pelos afetos.

A linguagem psicanalítica é aquela que desloca idéias nunca cristalinas que transitam do divã à poltrona a intercambiar, deslizar, desgarrar sentidos.

Mosaico que se compõe com uma paleta de palavras em que comparecem das mais doces e amenas às mais graves, cruéis e infames.

Palavras voam errantes no ambiente magnetizado pela transferência e são lançadas no jogo que institui a linguagem deste campo.

Palavras atravessam a cena analítica e, oferecidas, compõem a teia virtual em que se amarra o lugar do analista, em que se tece a compreensão, a direção, sempre acompanhada de incompreensão.

A fala, esse instrumento volátil, constrói um sentido num tempo preciso. Mas a decomposição da fala processada pela análise não se apresenta apenas como confissão.

Porque a fala, no mesmo tempo que revela, encobre. Apenas algo ela nos permite entrever.

A fala, tornada jogo, exige o esforço da construção das significações. E se fosse tão-somente isso, poderia se tratar de um jogo lógico.

Lugar incerto o que ocupa o analista. Os afetos, e o investimento destes, postos em ação na cena compõem as diversas imagens que vemos surgir no caleidoscópio analítico.

A cada momento uma configuração significativa se apresenta desmontando a anterior.

Essa construção efêmera resiste a uma determinada significação.

Assim também acontece com a palavra estrutura que endurece quando presa a uma significação precisa.

A estrutura da análise é móvel, imprecisa, porque se trata de uma estrutura que guarda a certeza de uma incerteza que a funda.

Igualmente móvel e impreciso é o lugar do analista que recebe da composição literária formulada em análise o enquadre, a estrutura e a função estruturante.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Metáfora e Metonímia

Lacan acirra o debate sobre a arbitrariedade do signo. Considera ilusória a ideia de que o significante representa o significado: todas as línguas existentes são insuficientes para abarcar o campo do significado.

A posição primordial do significante e do significado como ordens distintas, separadas por uma barreira resistente à significação, em que coisa e representação não formam necessariamente uma unidade significativa, assegura a mensagem de que a significação apenas se sustenta na remissão a outra significação.

Somente as correlações do significante com o significante podem fornecer o padrão da significação.

O significante se antecipa ao sentido, que insiste na cadeia do significante. Mas nenhum dos elementos dessa cadeia encerra a significação de que ele é prenhe. Persiste a ideia do deslizamento incessante do significado sob o significante.

Ao escutarmos um poema, o que dele se depreende é antes a potência de sua polifonia. A estrutura da cadeia significante revela a possibilidade que temos de nos servir da língua para expressar algo diferente do que ela quer dizer.

A função significante que se desenha na linguagem tem o nome de metonímia, em que a parte é tomada pelo todo. Vela que representa navio, por exemplo. A ligação entre navio e vela se dá no significante, de palavra em palavra se constrói a conexão na qual se apóia a metonímia.

Já a metáfora surge entre dois significantes. Um substitui o outro, assume o lugar do outro na cadeia significante. Uma palavra por outra, eis a fórmula da metáfora, que se coloca no ponto em que o sentido se produz no não-sentido.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Linguística e Psicanálise

Saussure estrutura a fala no domínio da idiossincrasia, ou seja, na maneira como cada pessoa vê, sente e reage. Sem o pretender, dessa forma ele faz a ligação entre linguística e psicanálise que, mais tarde, Lacan irá explorar.

Ao conceber o campo simbólico, Lacan inverte a ordem do signo lingüístico: significado barra significante, para, significante barra significado.

Com esta inversão, Lacan marca a prevalência do significante sobre o significado.

Ancorado no princípio lógico do algoritmo – S/s – Lacan afirma que o inconsciente se estrutura como uma linguagem.

Assim, o sujeito se revela servo de um discurso em que o lugar que ocupa já se encontra inscrito em seu nascimento, ainda que seja apenas na forma de seu nome próprio.

O discurso ao qual o sujeito se submete instaura a experiência da comunidade, em que trocas e permutas apenas são concebíveis dentro da órbita da linguagem.

A partir de Lacan, a dualidade natureza / cultura dá lugar à concepção ternária - natureza sociedade cultura - sendo esta última, a linguagem, que distingue a sociedade humana das sociedades naturais.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

LÍngua e fala

A língua é necessária para que a fala se torne inteligível e seja pactuada por todos.

A fala, por sua vez, é imprescindível para que a língua se enraíze e se estabeleça como estrutura estruturada.

Eis o fundamento dialético que não nos autoriza a pensar na distinção entre indivíduo e sociedade como entidades autônomas.

Mesmo fundamento que põe em suspenso as categorias de interior e exterior, tão difíceis de serem abandonadas.

A linguagem humana e todas as suas formas de expressão constituem os interesses da linguística.

Não estaria aqui o ponto de convergência entre linguística e psicanálise?

A linguagem é uma manifestação a um só tempo individual e social. Multiforme, ela envolve fenômenos físicos (ondas sonoras), fisiológicos (fonação e audição) e psíquicos (imagens verbais e conceitos).

A fala corresponde ao psíquico, cujo caráter é, em essência, individual. É através dela que particularizamos a língua.