quinta-feira, 31 de julho de 2008

Grupo primário

Existem certos grupos, chamados primários, que apresentam uma constituição libidinal, cuja tipicidade permite agregar indivíduos que compartilham entre si um mesmo objeto eleito por eles para se pôr no lugar do ideal do eu, e em virtude desse objetivo comum, identificam-se uns com os outros em seu eu.
Esses grupos amenizam carências e fragilidades de seus membros, produzindo fortes elos emocionais entre eles.
Como os indivíduos predispostos a esse tipo de formação ideativa não desenvolvem estilos autônomos de individualidade, ao contrário, apóiam-se anonimamente no grupo, deixam-se influenciar por sugestão e, assim garantidos, acreditam poder exceder todos os limites na possibilidade ilimitada de descarga emocional sob a forma de ação.
Freud aproxima os atributos do narcisismo primário presente na infância, do narcisismo existente na vida emocional desses grupos. Daí porque os denominados, primários.
O grupo primário propicia e sustenta a onipotência de pensamento de seus integrantes, em cuja lógica se acomoda a superestima do poder de seus desejos, e a crença mágica que sustenta uma forma característica de lidar com o mundo - como uma aplicação das premissas grandiosas que alimentam.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

A escolha amorosa

Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud descreve uma fase inicial de intenso interesse por parte da criança fixado na mãe. A esse momento sobrepõe-se outro, de identificação com essa mulher.
Identificação direta e imediata que antecede o investimento objetal. Em outras palavras, a fixação e a subseqüente identificação com a mãe consistem numa forma de escolha amorosa preliminar que já se revela plena de ambivalência.
O eu deseja incorporar a si esse objeto amado com a força característica da fase oral em que se acha, ou seja, ele deseja devorar esse objeto.
Este solo narcísico, em que a criança faz-se de objeto sexual dela mesma, incita a posterior busca de alguém com aparência ou traço semelhante, a quem possa amar como fora outrora amada pela mãe.

terça-feira, 29 de julho de 2008

Narcisismo

Entende-se por narcisismo a atitude de alguém que admira seu corpo como se admirasse um objeto sexual. A ocorrência de tal atitude se deve ao retorno da libido para o eu.
O narcisista não tem muita necessidade de um objeto seja para se satisfazer sexualmente seja para realizar aspirações intelectuais.
Ao introduzir o conceito de narcisismo em 1914, Freud demonstra que os impulsos libidinais conflituam com os ideais éticos e morais da sociedade. Estes ideais funcionam como barreiras ao fluxo pulsional.
Ao longo do processo de socialização, o indivíduo elege certos padrões culturais e os reconhece como seus. Submete-se a eles e passa a medir a si mesmo de acordo com essas exigências que são agora percebidas como suas.
Este processo é o que chamamos de formação ideativa e configura o ideal do eu, que desfruta o amor de si mesmo, antes dedicado ao eu real. O ideal que o sujeito projeta diante de si é o substituto do narcisismo perdido de sua tenra infância, quando ele era o seu próprio ideal.
A origem dessa instância crítica, que funciona como vigia do eu, se encontra na influência exercida inicialmente pelos pais, a qual se soma toda sorte de influência que o ambiente exerce sobre o sujeito.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

O transgressor e sua busca de objeto

O principal objetivo deste estudo, realizado nos anos 90, é contribuir para ampliar o horizonte de reflexão de profissionais que trabalham em instituições voltadas para o atendimento e custódia de jovens comprometidos com a justiça.
O grupo de adolescentes que compôs o campo de investigação nos foi encaminhado pelo setor pedagógico de três escolas que respondem pela custódia judicial de jovens no Rio de Janeiro.
Estes adolescentes correspondem a um percentual pequeno, quando confrontado com a população total que passa pela justiça, mas remetem-nos a histórias de retorno constante ao circuito judicial. Conhecemos rapazes ainda muito novos, na faixa de quatorze a dezesseis anos, atores de uma vida que envolvia grandes perigos. Como nos confirma a própria fala de um deles:
“Às vezes eu passava de carro, com a AR-15 e tirava a maior onda com a cara deles. Saltava do carro e dava uma rajada. O engarrafamento desaparecia. Abria espaço para eu passar. A AR-15 é sinal de poder, não é pra quem quer, é pra quem pode”.
O transgressor parecia se esmerar para estreitar seus caminhos de modo a restar apenas um tênue fio entre a vida e a morte. O uso de armas de fogo pesadas, às vezes duas ou mais, fazia-nos refletir sobre a fragilidade do eu que presidia essa ação de defesa/ataque. A suspensão da Lei garantia a licenciosidade para o agir narcísico, irrefletido, incontido.
”Não gosto muito de ficar na boca sem fazer nada, dá maresia. Não tem nada pra fazer. Eu prefiro assaltar, agir, fazer assaltos em firmas e mansões”.
(...) é nessa provocação incessante da lei que ele se assegura – até mesmo se ressegura – de que a lei realmente existe, que pode encontrá-la e procurar nela experimentar a economia de seu gozo. É neste sentido que a transgressão é o correlato inevitável do desafio (...) (Joel Dor, 1991:129).
Como costuma agir o transgressor protagonista de nossas entrevistas? Que palavras os adolescentes diziam se utilizar durante as ações praticadas?
“Já perdeu. Pode ficando quieto e passar tudo senão morre”.
Trata-se aqui do estabelecimento de um jogo em que forças são medidas, de um desafio lançado ao acaso. Mas ao mesmo tempo configura duelo onde apenas um havia se preparado para o momento de ataque.
A regra desse jogo é desarmar alguém que já se supunha desarmado. Claro que existe sempre a possibilidade, o risco de tudo perder. Mas é exatamente este fator que nivela a ação no patamar dos rituais de sacrifício.
As únicas coisas temíveis são a polícia e a morte. Possibilidades que se vislumbram na linha do provável, do acaso, do real.
O transgressor acessa o objeto pela violação. O preço do objeto não é calculado conforme as leis do mercado ou da troca. Este é determinado pelas condições em jogo na sua aquisição.
O que o transgressor busca através de sua ação não é apenas o cometimento de uma infração. A sua conduta simboliza uma falta, trata-se de uma ação simbólica. Porque é a falta do objeto que conta.
Afinal, o que pode acontecer no momento da ação?
“Matar ou morrer. As chances são iguais.”
“Tenho medo de ser pego pela polícia. Ela não quer nem saber, se pega a gente de madrugada mata mesmo.”
Lances de um jogo que se passa na indefinível fronteira do real e do virtual: tudo ou nada pode acontecer. No interior desse extremado realismo reside a ficção de se postar diante do limite último, para dribá-lo no mais absoluto dos desafios. A palavra-chave é quieto, ou seja, não se mova.
Palavra de comando sobre outro feito escravo que em princípio não se deseja morto, mas testemunha muda do desafio que simboliza a metrificação do falo. Por isto diz-se de ação, que ela adquire o estatuto de simbólica. Simboliza alguma coisa ausente-presente naquele instante que a dramatização encobre.
Tal como acontece com o fetichista, a situação se torna cenário-tela do momento preciso em que se pode supor que a mãe possua o falo. O efeito véu que a ação encerra, congela, por segundos, o instante real. Na ação rápida – mágica – a mãe é ficcionada total.
Para além da ação existe a suposição de deter o objeto absoluto que encobre momentaneamente a falta, a angústia que acompanha o horror da castração. O objeto desejado em relação ao outro não é tanto o que ele porta enquanto bens, mas muito mais o seu olhar surpreso-apavorado ante o horror da castração.
Olhar do outro que espelha o olhar de horror do próprio transgressor ante a castração. O gozo desse momento oportuno lança o outro num lugar impotente, desarmado.
A submissão vexatória do outro é apenas uma situação contingente: o que é desejado é o olhar desse outro que testemunha o gozo perfeito. Não é com isso que sonha o transgressor, o crime perfeito, aquele que não deixa vestígios, e, assim ideal, é capaz de arremessar seu autor no auge da glória?

Extraído do artigo O jovem transgressor: suas implicações na ação, de Maruza Bastos, in: Cadernos de Metodologia. Rio de Janeiro. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Centro de Teologia e Ciências Humanas. Departamento de Psicologia, v.4/5, 1997/98.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Je e moi

A língua francesa dispõe de duas expressões para designar o pronome da primeira pessoa do singuar: o Je e o moi. O emprego do Je serve para designar o sujeito como condição de possibilidade de uma ação, de um conhecimento ou de um discurso. Lacan chama o Je de sujeito verdadeiro ou sujeito do inconsciente, cuja essência revela o modo de ser da excentricidade; é o sujeito irrefletido: ex-sistant, ex-centrique. Em virtude de sua excentricidade, o Je convida ao desconhecimento.
Utiliza-se moi quando o sujeito se reporta a ele mesmo de maneira reflexiva. Lacan chama o moi de sujeito reflexivo, narcísico ou especular. Reportar-se a si, diz-se refletir. É o que faz Narciso no mito antigo. Ele contempla a água, e não conhecendo o efeito do espelho, tomba amorosamente sobre sua própria imagem. A palavra Nárkissos indica aproximação com; tendo como causa o efeito calmante da flor de narciso. Significa entorpecimento, embotamento.
Estas significações nos ajudam a entender os qualificativos lacanianos do moi, do eu narcísico, que contempla sua imagem especular ou que se identifica no meio dessa imagem. O outro que o moi apreende como ser independente, na verdade é imaginário: o outro dele mesmo. Lacan escreve com letra minúscula esse sujeito dentro do sujeito – a consciência em si.
A essência do moi é a reflexividade, ou seja, ele é para ele mesmo seu próprio objeto. Ele é para ele mesmo uma imagem, configurando, portanto, um objeto que preenche certa função do imaginário. O moi não é mais que um ponto de vista parcial, um erro do Je.
Para Lacan, o lugar verdadeiro do sujeito é onde menos o procuramos, no isso. No inconsciente, incognoscível e inacessível, isso fala.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Tensâo entre prazer e realidade

A relação do sujeito com o mundo é tecida conflitivamente nas malhas de um jogo dialético, no qual a organização autônoma do princípio de realidade, como tensão, põe-se a desafiar as formações irrealistas do princípio de prazer.
Em O mal-estar na cultura, Freud afirma que o programa do princípio de prazer - que domina o funcionamento psíquico desde o início – é que decide o propósito da vida. Mas quando uma situação desejada se prolonga por muito tempo, ela produz apenas um tênue sentimento de contentamento, porque derivamos prazer intenso, na verdade, das situações de contraste. E cita Goethe: nada é mais difícil de suportar que uma sucessão de dias belos.
Segundo Freud, o sofrimento nos é infligido a partir de três possibilidades: a primeira diz respeito à condenação a decadência e a morte a que está sujeito nosso corpo, a segunda tem haver com as fatalidades e as forças destrutivas existentes na natureza, e a terceira tem origem nos nossos relacionamentos com os outros homens. Esta é a possibilidade mais penosa de ser vivida. Sob a influência dessas três fontes de sofrimento, o homem modera suas reivindicações de felicidade: o princípio de prazer se transforma no princípio de realidade.
No texto Além do princípio de prazer, Freud diz que a regulação do princípio de prazer consiste na redução de tensão desagradável, levando à evitação de desprazer, ou, à produção de prazer. O desprazer implica o aumento de excitação, enquanto o prazer implica a diminuição da excitação.
O princípio de prazer é próprio do modo primário de funcionamento psíquico. Mas os dois princípios: de prazer e de realidade não são estanques um do outro. Eles se implicam e se incluem um ao outro numa relação dialética.
Como o princípio de realidade se constitui pelo que é imposto, para a sua satisfação, ao princípio de prazer, pode-se dizer que ele é o prolongamento deste. Contudo, precisa ter-se em mente uma ressalva: o princípio de realidade é tão importante para o programa do princípio de prazer que consiste mesmo em sua dinâmica, busca e tensão fundamentais. No entre desses dois princípios, localiza-se uma hiância que não se poderia distinguir caso um fosse apenas continuação do outro.