segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Infelicidade de ser pai


A entrevista com o pai de Marco foi densa em conteúdo. JL colaborou de modo significativo, implicando-se na narrativa. Não era comum obter a colaboração do pai logo na primeira entrevista, por isso não contava com esse envolvimento que me soou como surpresa.
Marco era o filho primogênito e tinha um irmão. Os pais haviam se separado fazia sete anos, quando o menino estava com nove anos. A união do casal se deu em torno da gravidez inesperada da mãe de Marco.
Eram ainda muito novos quando se casaram. O pai estava com dezenove e a mãe com dezesseis anos. Eram estudantes e continuaram a ser sustentados pelo pai de JL.
Se existiam dúvidas em relação à união, elas diziam respeito aos impasses quanto às indefinições profissionais. Venceu o desejo de permanecerem juntos.
Passado a novidade que o casamento representava, a experiência foi se tornando cada vez mais conturbada. As incertezas cresciam na proporção em que aumentava o imperativo imposto sobrevivência. Situação que se agravou com o nascimento dos filhos.
As exigências da vida familiar se tornaram cruciais. Aspiravam por amor e independência, mas não atinavam que teriam que pagar e comprometer-se com esse projeto.
Os encargos da vida doméstica foram vividos como um fardo. Enfrentavam circunstâncias frustrantes e não faltavam motivos para lançarem acusações sobre o outro, com agressões físicas e ciúmes de ambas as partes.
JL buscou refúgio na bebida, culpava a mulher por não ter dado continuidade aos estudos. Chegava bêbado em casa e a submetia, juntamente com os filhos, a ofensas e agressões. Associava sua conduta violenta aos ciúmes que sentia da mulher. Achava que ela provocava situações para enciumá-lo. Não lhe era possível se confrontar a si mesmo como responsável pelas dificuldades que engendrava e que exorcizava embriagando-se com álcool e ilusões.
Tiveram alguns momentos pontuais durante a entrevista em que JL confessou que o comportamento dele como pai tivesse influenciado o ritmo de vida do filho.
Buscou defender-se como pôde. Dizia que havia mudado, que era outra pessoa, que não bebia desde o dia em que decidiu frequentar a igreja protestante. Referia-se a um processo de conversão: era evangélico, havia casado novamente e não batia na mulher, com quem mantinha uma boa relação. Queria deixar claro que não era uma pessoa ignorante. Formara-se e percebia como era importante ajudar o filho a sair das dificuldades em que se havia metido.
As lembranças que Marco evocava quando se remetia ao tempo em que os pais viviam juntos desvendavam a imagem de um pai agressivo, contra o qual ele tinha que lutar para defender a mãe. O pai não era alguém com quem pudesse contar.
Marco residia com a mãe e seu irmão de quatorze anos. Mas após a separação dos pais, o rapaz tinha a liberdade de triangular sua moradia. Ora estava com a mãe, ora com o pai, ora com os avós paternos. Quando começava a se sentir pressionado mudava de casa. Situação cômoda para ele e os familiares que nunca assumiram o problema. A família sempre deu atenção fictícia ao rapaz que era mimado pela mãe e pelo avô.
Marco era o neto preferido até se afastar em definitivo da escola. O avô o presenteava sempre. Ganhara bicicleta, mobilete, roupas e tênis de griffes famosas. O pai me contava essas coisas, porque de algum modo queria provar que o jovem não carecia de bens materiais.
A partir de certo momento da entrevista, JL começou a relatar os problemas que havia vivido. O pai de JL esperava que ele se dedicasse ao futebol. Era bom de bola. Treinou no juvenil de um conhecido clube carioca e na equipe profissional de outro não tão famoso.
Embora gostasse bastante de futebol e jogasse bem, JL não suportava a disciplina que o atletismo lhe exigia. Não gostava de acordar cedo para treinar, mas levou adiante o projeto de se tornar jogador, até o dia em que aconteceu um desacordo incontornável entre ele e o pai. JL queria continuar jogando no time juvenil onde se sentia bem enturmado, o pai queria que ele fosse para o time profissional.
Contrariado com sua impotência para fazer valer seu desejo, JL aproveitou a primeira oportunidade que teve para destruir a carreira de jogador. Após machucar-se seriamente na virilha durante um dos jogos, necessitou afastar-se dos treinos para tratamento médico. Continuou estendendo as licenças médicas até abandonar o futebol.
JL negou ao pai aquilo que ele mais queria: o sucesso do filho no futebol. O abandono da carreira futebolística foi um ataque do filho contra a autoridade paterna. Mas, deixou-o em dívida com o pai.
Ao contrariar o pai, JL abdica do lugar de filho amado, lançando-se fora da experiência com a autoridade, mantendo-se numa indefinição subjetiva. É do incômodo desse fora-de-um-lugar que JL fala ao contar sobre o naufrágio de seu casamento, o afogamento na bebida, a mulher que sempre teve que disputar com todos esses outros que excitavam sua rivalidade.
A incerteza de ser amado pela mulher exacerbava seus ciúmes e justificava seus incontidos acessos de fúria. Não era filho, nem marido, nem pai, função esta que nunca pudera assumir.
Marco reedita a história de seu pai. JL também criou expectativas em relação ao filho. Queria que ele jogasse futebol. Achava que o menino tinha talento com a bola. Mas tal como havia acontecido entre ele e seu pai, Marco o frustrara, ao assumir os riscos de sua rebeldia radical com relação a qualquer lei.
JL não difere dos pais com os quais entramos em contato na Justiça. Antes, ele se enquadra como um protótipo. A figura do pai ou padrasto na vida familiar dos jovens transgressores, na maioria das vezes, está associada a lembranças de sofrimento, omissão e ausência.
JL estava vivendo um momento de virada: considerava-se convertido. Queria ajudar o filho. Mas o momento de Marco era outro. Ele rejeitava com veemência a aproximação do pai. Não via na imagem do pai qualificativos morais que justificassem apelos de mudança.
O pai que Marco via quando JL ia lhe visitar era aquele pai imaginário da sua infância, a quem odiava. As dificuldades da relação de Marco e JL acenam para o que há de mais típico nos romances familiares que lidamos na Justiça.
Os repetidos retornos de Marco ao circuito judicial nos levavam a interrogar sobre seu apelo. Seus atos cada vez mais desafiadores se postavam como símbolos de tentativas fracassadas de provar, para si mesmo, que a Lei de fato existia.
Quando Marco rememorava as brigas constantes de seus pais, ele se colocava na cena, no papel ativo do herói que agia em favor da dama indefesa. Quixotesco, ele brandia o cabo de vassoura que tacava no pai. Na mais incontestável inversão, Marco se imaginava como o elemento ternário, capaz de pôr um termo àquela guerra sem fim. Na verdade, as investidas sádicas de JL contra a mulher nunca foram tão ameaçadoras aos olhos de Marco, que sempre intuiu a farsa do pai para provar sua força e virilidade. A dramaturgia do pai apenas atestava a sua impotência de doação ante a mulher, que ele duvidava poder de fato possuir, deixando entrever a questão edipiana que o atormentava.
A força estruturante da função paterna independe da ação moral eficaz ou ineficaz do pai real. É o caráter radicalmente exterior da função do Pai simbólico em relação ao pai real que incute a promoção estruturante. A abrangência do Pai simbólico ultrapassa qualquer contingência do homem real. O papel simbólico do pai se ordena na atribuição imaginária do objeto fálico. O que se faz necessário, é que haja um terceiro mediando o desejo da mãe e do filho, para que seja significada sua incidência legalizadora e estruturante.
O pai real é investido como pai simbólico, pela mediação do pai imaginário. Referência ao pai, que se associa à ideia do desejo da mãe, estatuto de um puro significante.
A horda primeva, que Freud descreve em Totem e Tabu, é formada por um bando de irmãos que vivem sob a liderança e repressão sexual de um pai violento, que possui e vigia todas as fêmeas contra possíveis investidas sexuais dos filhos machos. Enciumado, o pai expulsa os filhos do bando, tão logo eles se tornem grandes o suficiente para pôr em risco seu poder absoluto de líder.
Animado por sentimentos contraditórios em relação a esse pai tirano, invejado e admirado, o bando se une em torno do desejo de despojar-lhe de seu poder. Matam-no, apaziguando o ódio que por ele sentiam. O remorso pela morte do pai os enche de culpa. O que os leva a renegar seu ato e à renúncia sexual. O sentimento de culpa gera dois interditos fundamentais - a proibição de matar o pai e de obter satisfação com a mãe - que atuam na cena edípica.
O conhecimento sobre o mito do pai primitivo e dos sentimentos ambivalentes que animam seus filhos permite-nos entender a sobrevivência de uma mitologia infantil arcaica, que compõe a geografia da vida psíquica, e que resiste a modificar-se, a despeito de toda racionalidade.
A atribuição fálica feita pela criança ao pai permite-lhe reconhecê-lo como castrador. Mas o surgimento do pai simbólico se dá na medida em que a criança o investe também como um pai doador diante da mãe, porque a criança supõe que a mãe encontra junto ao companheiro o objeto desejado que ela não tem. Uma vez instaurada essa suposição, em que o pai imaginário é colocado como concorrente no jogo fálico, inscrever-se-á a dialética do ser e do ter.
Todas as vezes que Marco se refere a JL, enfatiza uma conotação de intensa rivalidade, cuja imagem paterna aparece como um homem fracassado que nada conseguiu conquistar na vida, sequer o amor do próprio pai.
O ódio que a fala revoltada de Marco revelava fazia pressentir seu aprisionamento na trama imaginária de uma identificação renegada.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Assim conheci Marco


Quando Marco entrou na sala do Padre Severino para ser por mim entrevistado, naquela inquietante manhã de segunda-feira, eu havia acabado de conversar com seu parceiro. O medo primitivo já domado, olhei para a silhueta franzina do jovem que entrava na sala.
Era difícil supor que ele fosse autor do ato que lhe imputavam. Tinha aspecto frágil, era simpático e falante. Seu corpo fino, o rosto levemente encovado, as orelhas um pouco avantajadas e os olhos vivos, pequeninos, pareciam espreitar o momento propício para a fuga ou o ataque.
Aparência que compunha perfeitamente com seu nome de guerra. Era conhecido pelo apelido de Ratinho. Nomeação que ele aderira integralmente, como um elogio.
Nome que reaparece em diferentes momentos do discurso. Imagem que povoa os sonhos de Marco: ratos que aparecem em abundância, escalam móveis, passeiam destemidos pela cama e pelo quarto. Cena de um único símbolo que se repete, que se reproduz, reaparecendo nos diferentes lugares do quarto.
Nome-significante, autônomo em relação à significação mantida inacessível; nome que adquire a função de representar e de determinar o sujeito.

Sem que o sujeito possa de modo algum se dar conta, sem que ele saiba, literalmente, nada daquilo que está fazendo, basta simplesmente que ele seja incitado ao desenvolvimento da incidência significante que ele próprio introduziu como necessário à sua sustentação psicológica para que, desenvolvendo-a, tire daí uma certa solução, que não é forçosamente uma solução normativa, nem a solução melhor(...) (Lacan, 1995, p.364-365).


O gosto pelo apelido, o quase abandono do nome próprio, coincidia com a descoberta de uma possibilidade nova de existir, com o afastamento cada vez maior da convivência familiar. Marco conta que fugia da escola. A mãe o acompanhava até o portão do colégio, onde o deixava e seguia para o trabalho. Malgrado o zelo materno, ele retornava para casa. Justificava-se dizendo que não gostava de acordar cedo, voltava para dormir até tarde.

Eu me lembro: esgotos, porões, cavernas, sótãos, túneis, galerias, fendas, sarjetas, fossos, fossas sépticas, tanques, valas, bueiros, poços, latas de lixo, monturos, armazéns, despensas, galinheiros, chiqueiros, currais, estábulos... Meu mundo de rato - uma vida submersa em sombra, em trevas, em tons cinzentos, em penumbra e em escuridão, crepúsculo e noite, afastado do dia, da luz, do sol ofuscante, da claridade, dos raios penetrantes, das superfícies reluzentes e deslumbrantes. (Zaniewski, 1995, p. 17).


A casa servia-lhe de toca onde se escondia, evitando o enfrentamento, o encontro, o Outro, a vida social que lhe esperava e que rejeitava. Casa-útero na qual buscava imaginariamente estreitar-se, aconchegado, no colo cálido de sua mãe.
Aninhou-se e aliou-se melhor onde encontrou o antídoto para sua fragilidade. Quando se apartou da vida que desprezava no asfalto, e buscou entrincheirar-se no morro, e preparou-se para a aventura do ataque. Tivera a oportunidade de consolidar certa escolha subjetiva, sua forma peculiar de dominação do mundo, modo como conquistou possibilidade de reconhecimento.

"Na rua sou respeitado, as pessoas têm medo de mim. Eu tenho fama. As pessoas sabem quem é o Ratinho."


Mas ainda assim não deixava de ser um ratinho que sempre voltava para casa, onde sua mãe, a despeito de sua própria fragilidade, o esperava disposta a protegê-lo dos perigos que não compreendia.
Certamente não era apenas do fracasso social que fugia. Embora tivesse estudado apenas até a quinta série do primeiro grau, Marco apresentava desempenho escolar mediano, e sobressaía com desenvoltura nos esportes. Havia sido campeão no futebol do colégio e ganhara medalhas de ouro e prata no judô.
Havia uma grande expectativa por parte dos homens da família em relação ao sucesso de Marco no futebol. Mas algo de muito particular aconteceu com essa trajetória. A entrevista que realizei nesse mesmo dia com seu pai, a quem chamarei de JL, lança um pouco de luz nessa questão.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

A ocorrência


O fato aqui narrado aconteceu nos anos noventa, no Rio de Janeiro. Como era de se esperar, tratou-se de um acontecimento lamentável que tomou a todos de surpresa. Naquela época, havia grande descontentamento por parte da população com a insegurança da cidade, e o assalto que culminou com a morte da vítima era um fato banal, considerando o cotidiano violento da metrópole.


Os autores da grave infração eram dois adolescentes. A intenção deles no ato era puxar um carro, ação que já havia sido encomendada por traficantes. Missão que foi levada a efeito, pois que após o homicídio, eles conseguiram roubar outro carro e levar até o morro onde os traficantes os esperavam.


Esta narrativa incide sobre o desdobramento do caso judicial de um dos rapazes, a quem dei o nome fictício de Marco, cuja história, em nada original, obriga-nos a confrontar as dificuldades de um jovem comum, como tantos outros que conhecemos e, por isto mesmo representante fiel dos anseios da geração contemporânea. Convite à reflexão sobre as interrogações em pauta nos nossos dias.


Na época em que Marco fora mantido sob custódia, modificações decisivas foram implantadas no sistema de proteção à infância e à juventude: a gerência do sistema passava da esfera federal para a estadual.


A entrada do estado na gerência desse tipo de atendimento foi muito conturbada. No início dessa passagem, funcionários federais e estaduais trabalharam lado a lado. Eles representavam visões distintas na forma de abordagem do atendimento dedicado aos jovens.


Os federais, que eram antigos, esforçavam-se por mostrar a capacidade para dominar a situação das escolas, muito debilitadas, há anos funcionando em situações precárias. Os estaduais, que eram novos, criticavam o fato dos federais só se preocuparem com a segurança. Os novos diziam estar interessados em melhorar a qualidade do atendimento. Os federais possuíam um inegável poder de liderança e tinham uma linguagem afinada com a cultura do jovem, enquanto que os estaduais começaram a perceber a dureza das condições de trabalho: instalações precárias, exigindo reparos, as exigências imediatas dos juízes, as cobranças do Ministério Público, a pressão do número de relatórios a serem apresentados, os prazos das audiências, a necessidade de manter vigilância quanto a fugas, as cobranças da sociedade... Era o imediato que pressionava, impedindo que se pusesse em prática a nova filosofia que apregoavam e que não cabia naquelas condições.


A nova filosofia não havia sido pensada para ser aplicada em escolas de grandes proporções. O modelo tinha que ser tropegamente adaptado à realidade, e vencer a rotina era o maior desafio que se colocava.