segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Surgimento dos dogmas institucionais

Na Idade Média clássica, a partir do século XII, encontramos as bases do dogmatismo ocidental, quer dizer, o início da matriz moderna de administração pontifícia – gênese da cultura européia – que estende sua lógica até hoje.
A escolástica medieval fundou os dogmas institucionais predominantes na cultura ocidental.
A escolástica, com suas regras e instrumental lingüístico, teatraliza o ritual litúrgico da controvérsia até alcançar o ponto que culmina com a sentença, em si menos importante do que a lógica que preside a administração da disciplina.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

A gênese da instituição

O mecanismo de funcionamento da instituição se explicita na transmissão e nas técnicas de fazer-crer. São elementos do jogo constituinte da ordem e da subversão.
Ao alcançar o nó do desejo, o poder transforma o oponente em culpado e o erro em falta. Esse proceder abre a questão sobre as crenças presentes na lógica da submissão que é posta a serviço de uma determinada fé.
Por isso a lei deve ser tomada ao pé da letra de seus símbolos, todos voltados para fazer operar a instituição que trabalha para escamotear o desejo.
O texto jurídico reconstitui a totalidade do normativo. Não se pode deixar de considerar que essa construção também provém do cabresto do desejo.
O jurista é aquele que fala o que pode e o que não pode ser dito. Embora ele mesmo ignore que seu saber se restringe à propagação da submissão.
Os textos canônicos contêm os ingredientes indispensáveis para a manutenção diversificada dos símbolos, substituídos ao longo do tempo segundo a demanda imposta por cada época.
Foi assim que a igreja ocidental modelou os dogmatismos e até hoje mantém vivos os mitos fundamentais. A hierarquia é o maior exemplo dessa espécie.
A religião traz à tona a questão do poder, e nos esclarece que o que move e assegura a continuidade da instituição é a doutrina do fazer-crer.
Proveniente do sistema eclesiástico, o jurídico conserva a submissão: categoriza os indisciplinados e ressalta a suprema referência ao pai onipotente.
Referência da qual ninguém escapa, senão sob o mascaramento contido na excomunhão e na loucura.
O vínculo religioso estende e mantém os laços ecumênicos que unem os membros na comunidade cristã como uma família, e serve de modelo para justificar e preservar os grupos sociais.

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Superego cultural

Superego cultural é uma noção que deriva da teoria freudiana. Essa noção visa elucidar o mecanismo institucional.
O superego cultural é pensado na referência ao discurso canônico. Ele explicita a censura.
Munido da autoridade paterna, o inquisidor atualiza sua função ao trazer uma proposta de salvação com um rigor que não comporta a crítica nem o riso.
A lei institui o universo idealizado da falta e designa ao pecador a benevolência reparadora de uma pena.
A censura é uma modalidade de pena útil à ciência da alma. Daí advém sua natureza medicinal. Atualmente, essa função curativa e reparadora do censor foi assimilada pela prática utilitária das ciências humanas e sociais.
O superego cultural organiza o lugar das penas e ordena sob quais condições se pode traçar o tratamento da indisciplina.
Ergue-se, assim, uma doutrina da punição baseada na palavra que tranqüiliza o rebelde. Mas os homens das leis, os juristas, precariamente se dão conta da arte de tratar o conflito.
A lógica dessa alienação encontra resposta na questão prática de colocar em atividade a máquina da exclusão.
Consoante o peso da ideologia, a nosografia classifica os excluídos, do herético ao negro, do bandido ao louco, compondo o ementário dos procedimentos.
Aliado à ciência, o jurídico mapeia a apreensão dos culpados para compor o texto onde se encontra a verdade do mal.
A captura dos indivíduos numa formatação instituída supõe desapossá-los de seu sentimento de culpa no conflito, trocando-o por palavras pacificadoras.
Assim também se propagandeia a agilidade e inteligência de um governo que se liberta do ranço burocrático e autoritário e busca a participação e a integração dos cidadãos.
O direito é reconhecido como ciência ancestral que rege e direciona o sujeito. A lei institui uma ciência específica possuidora de um saber que se pretende legítimo e magistral, que salvaguarda a propagação das censuras para fazer prevalecer a opinião dos mestres: uma ciência do poder.
Ao jurista cabe a tarefa de manter em funcionamento certo tipo de jogo, caldeira onde são inventadas palavras tranqüilizadoras, onde são manipuladas as ameaças primordiais, onde é situado o objeto de amor: no mesmo lugar onde a política coloca o prestígio, ou seja, no adestramento do amor ao poder.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Como podemos nos acercar da verdade?

No início do prólogo de Além do bem e do mal, Nietzsche nos diz:
“Suponho que a verdade seja uma mulher – não seria bem fundada a suspeita de que todos os filósofos, na medida em que foram dogmáticos, entenderam pouco de mulheres? De que a terrível seriedade, a desajeitada insistência com que até agora se aproximaram da verdade, foram inábeis e impróprios para conquistar uma dama? É certo que ela não se deixou conquistar – e hoje toda espécie de dogmatismo está de braços cruzados, triste e sem ânimo. Se é que ainda está de pé! Pois há os zombadores que afirmam que caiu, que todo dogmatismo está no chão, ou mesmo que está nas últimas".
Nietzsche critica toda forma de dogmatismo: filosófico, científico, religioso. O dogmatismo é a fonte de todo preconceito e censura; é a barreira que se interpõe entre o homem e o objeto a conhecer.
O dogma não é o sítio onde a verdade adormecida deve ser despertada, mas algo que aprisiona e amortece as investidas de um possível conquistador.
Nietzsche profetiza os dias contados dos dogmatismos que perpetuam a fundação de verdades absolutas e atemporais: do altar da igreja à corte do tribunal de justiça.
A verdade petrificada em dogma, ilusionista, convida-nos a dançar em círculos repetitivos em torno da seriedade ritualística; apela ao engano e confunde. Faz-nos acreditar que o domínio, advindo da fé na autoridade, na posse, na técnica, conduz à aproximação do objeto a conhecer.
De todo modo, toda vontade de verdade é vontade de poder. Em torno desta máxima, podemos entender o surgimento das verdades que os dogmatismos de toda ordem fazem questão de nos servir em bandejas previamente preparadas. A vontade de domínio precisa fazer do desejo de saber seu escravo.
Os mecanismos lógicos de controle da descoberta da verdade deflagraram o aparecimento de modalidades de exame, responsáveis por qualificar e classificar as condutas conforme a necessidade de controle disciplinar.
A disciplina impõe uma permanente visibilidade que deixa às claras a superposição de poder e saber, determinando as partidas no jogo lingüístico dos interrogatórios.
Em vigiar e Punir, Foucault explora o exame como um tipo de dispositivo disciplinar, que ritualiza a cerimônia do poder e a instituição da verdade; mecanismo que une saber e exercício do poder.
Poder este que flagra e captura os subalternos para aprisioná-los numa rede de objetivação e visibilidade.
Mas esse aprisionamento está longe de ser facilmente perceptível. Trata-se de uma armadilha sutil, engatilhada no âmago do amor e do desejo. Envolve a socialização disciplinar do amor ao poder e à autoridade; disciplina de submissão do desejo como dom de amor; técnica de transmissão de um fazer-crer como esteio de funcionamento das instituições.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O caráter perspectivo do conhecimento

Nietzsche rompeu com a relação que existia entre a teoria do conhecimento e a teologia. Considera que é preciso desdivinizar a natureza.
Em oposição a Spinoza, para quem para se conhecer as coisas do mundo em sua verdade é necessário apaziguar as paixões, Nietzsche insiste na idéia de que compreender implica um jogo; uma luta entre as paixões rir, deplorar e detestar.
Paixões que têm em comum a capacidade de conservar o objeto à distância. Através do riso nos protegemos do objeto, na deploração nós o desvalorizamos e, com o ódio o afastamos ainda mais.
Para Nietzsche, não há unidade ou apaziguamento possível. No processo de conhecer há apenas confronto. Em relação ao objeto a conhecer, há dominação.
Nietzsche não acredita no conhecimento em si. Não existem condições universais para o conhecimento, porque ele se traduz no resultado histórico de condições que não são da ordem do conhecimento.
Nietzsche ressalta o caráter perspectivo do conhecimento. Assim ele valoriza a relação estratégica na qual o homem se encontra posicionado, de onde resulta a parcialidade do conhecimento.
Mas não deixa de haver sempre uma batalha singular entre a natureza particular do conhecimento e sua aparência generalizante. Se o conhecimento nos parece geral é porque ele esquematiza, nivela as diferenças, assimila as coisas entre si sem qualquer fundamento de verdade.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Deus como garantia do conhecimento

No dogmatismo da idade moderna inaugurado por Descartes, Deus é a garantia do poder se conhecer bem as coisas do mundo. O Discurso do Método constitui a pedra fundamental de uma revolução metodológica que traz conseqüências definitivas para a história do conhecimento. Expressa uma nova mentalidade – racionalista – dando surgimento à filosofia ocidental moderna.
O núcleo desta elaboração sobre a razão encontra ressonâncias no sistema filosófico de Sócrates e, particularmente, no pensamento de Platão.
Descartes coloca a questão do psiquismo humano no centro do interesse filosófico: exigência de construção de uma nova metodologia na qual o ser pensante torna-se senhor da natureza e de si mesmo.
A inovação de Descartes no campo do conhecimento reside na proposição dualística de sua dogmática, que revela a natureza da dualidade do homem, esta formada pela química de duas substâncias independentes – res cogitans e res extensa. A primeira, res cogitans, indestrutível, capacita em superioridade indubitável o pensamento, privilégio exclusivamente humano. Ao passo que res extensa, a matéria, está submetida às leis da necessidade e da dúvida.
Na busca do pensamento puro, o cogito vai encontrar a verdade além do mundo físico, e denuncia o fenômeno como pura aparência, ilusão, engano.
Vemos aqui do predomínio da razão sobre o dado sensível, do poderio do homem sobre a natureza, da capacidade de dominar-se a si mesmo.
A essencialidade incorpórea do espírito, em Descartes, se sustenta na filosofia de Platão: a alma é concebida como essência universal e imortal, detentora da verdade, governa o corpo, e dele se distingue. Portanto, conforme a perspectiva cartesiana, o psíquico funciona independentemente da vida material.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

A invenção do conhecimento

Em Nietzsche, encontramos um discurso potente que nos ajuda a processar a análise histórica da formação do conhecimento.
Nietzsche afirma que o conhecimento foi inventado – erfindung. Esse termo alemão utilizado por Nietzsche serve para designar que todas as coisas abstratas com as quais entramos em contato na sociedade, tais como religião, poesia e ideal, não têm uma origem – ursprung.
Admitir a origem dessas coisas significa dizer que elas já estavam dadas, que eram preexistentes e, portanto, metafísicas. Essas abstrações foram inventadas, fabricadas por uma série de pequeninos mecanismos.
Dizer que o conhecimento foi inventado significa supor que ele não está inscrito na natureza humana. Segundo Nietzsche, o conhecimento está relacionado aos instintos, embora não esteja presente neles.
O conhecimento surge como resultado do jogo, efeito de superfície, do embate e do acordo entre os instintos. Envolve riscos e acaso, traduzindo um estado de tensão ou de apaziguamento.
Além de não estar ligado à natureza humana, o conhecimento também não está aparentado com o mundo a conhecer. Melhor dizendo, não existe nenhuma afinidade prévia entre o conhecimento e as coisas que seriam necessárias conhecer. Ao contrário, o conhecimento interage, luta contra um mundo sem ordem, sem encadeamento, sem lei, sem harmonia, sem sabedoria.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Romeu e Julieta: o surgimento do inquérito

A forma como estruturamos, no Ocidente, o julgamento dos homens face aos erros que cometem leva-nos a entender o inquérito como um instrumento, como um tipo de pesquisa da verdade. E, embora o inquérito tenha surgido no decurso da história grega, ele permaneceu esquecido por longo tempo.
O inquérito ressurgiu no interior da ordem jurídica, na Idade Média, nos séculos XII e XIII, quando, no final do século XII aparece a figura do procurador, representante do soberano, do rei ou do senhor.
Face a ocorrência de uma contestação entre indivíduos ou um crime, o procurador intervinha na qualidade de representante do poder. A vítima era assim substituída pela figura do procurador que representava o poder político do soberano.
O dano não se restringia mais à esfera da vida privada. Não mais dizia respeito a dois indivíduos ou duas famílias que se confrontavam belicosamente no duelo, na guerra.
A tragédia Romeu e Julieta, escrita por Shakespeare em 1597, ilustra o momento dessa passagem, quando o controle da violência, que se processava entre famílias rivais, passou da esfera privada para a esfera do estado.
Essa tragédia, baseada numa história verídica ocorrida no início do século XIV, coloca em cena um tema muito antigo que inclusive já existia na literatura grega.
No prólogo, o coro apresenta a razão motriz da história:
“Na bela Verona, onde situamos nossa cena, duas famílias iguais na dignidade, levadas por antigos rancores, desencadeiam novos distúrbios nos quais o sangue civil tinge mãos cidadãs. Da entranha fatal desses dois inimigos ganharam vida, sob adversa estrela, dois amantes, cuja desventura e lastimoso fim enterram com sua morte, a constante sanha de seus pais. Os terríveis momentos de seu amor mortal e a obstinação do ódio das famílias, que somente a morte de seus filhos pôde acalmar, serão, durante duas horas, o assunto de nossa representação.”
Duas poderosas famílias inimigas de morte, os Capuletos de um lado, e os Montecchios, de outro, alimentavam constantes desavenças que envolviam, num círculo de ódio e vingança, do patriarca ao menor dos serviçais.
Para evitar esses infindáveis litígios, Escalo, Princípe de Verona, decreta que os atentados ao sossego e à paz seriam severamente punidos com a morte do ofensor. Com essa atitude, Escalo enquadra as desavenças familiares na órbita do poder que detém como soberano. No último ato da tragédia, Escalo preside a diligência que irá apurar os fatos.
“Príncipe – Sela por um momento a boca do ultraje, enquanto esclarecemos estas ambigüidades e ficamos sabendo sua origem, causa e verdadeira seqüência; então, serei o chefe de vossas dores e vos conduzirei até a morte. Calma, por enquanto, para que a desventura seja escrava da resignação. Fazei comparecer as partes suspeitas.”
Escalo intervém no litígio e confisca o poder de julgamento e de punição. Mas o que ainda preside a cena é a ação de um homem com todo o peso de seu estilo e desejo pessoal de interferência. Podemos supor que nem todos os soberanos desejavam essa exposição ao conflito.
O procurador, como representante do soberano, encarna a impessoalidade processual que caberá ao estado.
Com o procurador, o dano adquire novo sentido, assume o estatuto de infração. O poder do estado se inclui como parte ofendida. Desde então, a ofensa entre indivíduos configura ofensa ao estado, ao soberano, à lei do estado.
A infração aparece na vida do homem medieval como uma modificação na forma de resolução de litígios. O indivíduo perde o direito de intervir, deixando os procedimentos dessa intervenção a cargo do soberano. Antes, havia somente o dano que um indivíduo causava a outro, e o drama se restringia à busca da certeza de quem estava com a razão.
Com a entrada em cena das figuras da infração, do procurador, e do soberano, as relações que envolviam a resolução de um litígio não apresentam mais as mesmas características típicas do enfrentamento igualitário entre dois indivíduos. Novos mecanismos, tais como o flagrante delito e o inquérito, passam a ocupar o lugar da prova e do duelo.
No flagrante delito, as pessoas surpreendem o acontecimento no momento em que alguém comete um crime. Essas pessoas detêm o poder de levar o fato a conhecimento do soberano e de exigir reparação.
A prática do inquérito na Igreja da Idade Média se chamava visitatio. O bispo percorria sua diocese, e em determinado lugar instituía a inquisitio generalis.
A inquisição geral era uma etapa preliminar, na qual alguns indivíduos eram considerados como aqueles de deviam saber. Homens tidos como notáveis, idosos, sábios, virtuosos eram chamados para relatar tudo que havia ocorrido durante a ausência do bispo.
Caso houvesse o relato de uma falta, o bispo instaurava a etapa posterior que consistia na inquisição especial – inquisitio specialis. Apurava-se quem tinha feito o que, quem era o autor e qual a natureza do ato.
Esse modelo, a um só tempo religioso e administrativo, sobreviveu até o século XII, momento histórico em que o soberano começa a presidir todo o poder, e confisca os procedimentos judiciários para o âmbito de seu domínio. É quando entra em cena o procurador, representante do soberano, que irá repetir o ritual e a regularidade do inquérito eclesiástico.
O inquérito surge como um dispositivo racional que tem por função substituir o flagrante delito. Significa um ampla transformação na estrutura política, porque condensa uma forma de expressão do poder técnico-administrativo; exprime uma forma de governar.
A partir dos séculos XIV e XV, vê-se consolidar uma forma geral de saber, de inquirir, que tem como matriz os procedimentos que surgiram no século XII.
O inquérito se introduz no direito a partir das práticas religiosas da crença cristã. Herança que justifica a impregnação de categorias religiosas no direito, como falta, pecado, culpa moral, dentre outras.
Esse método de inquirir sobre a verdade se difundiu além dos limites das práticas judiciárias da Idade Média. Em torno dessa modalidade se estabeleceram muitos outros domínios de práticas e de saber.
Sob o peso dessa influência foram gerados e disseminados os procedimentos administrativos que talham o controle necessário à produção utilitária, motor do mundo acadêmico, científico e empresarial.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A tragédia de Édipo

A tragédia de Édipo serve-nos de testemunho das práticas judiciárias gregas. Sob esse aspecto, podemos dizer que a tragédia de Édipo é a história de uma pesquisa da verdade, cujos procedimentos obedecem às práticas judiciárias daquela época na Grécia.
Para Foucault, o mecanismo de estabelecimento da verdade obedece a uma lei, a qual ele denomina a lei das metades, pois que é por metades que se ajustam e se encaixam que a descoberta da verdade procede em Édipo.
Apenas para relembrar, na trágica história Édipo-Rei escrita por Sófocles em data imprecisa, o príncipe de Corinto, Édipo, é insultado por um bêbado que o acusa de ser filho ilegítimo do rei Políbios. Perturbado, Édipo recorre ao Oráculo de Delfos, que lhe revela seu destino: matar o pai e casar com a mãe. Atordoado, Édipo foge de Corinto, distanciando-se de seus pais, como forma de se liberar da terrível profecia. No caminho para Tebas, contudo, Édipo se depara com uma carruagem, à frente da qual, vem o arauto que lhe ordena que se afaste, e o empurra para fora da estrada. Édipo dá início a uma briga e termina matando todos que estavam na carruagem. Um dos passageiros era seu pai biológico, Laios, o Rei de Tebas. Após decifrar o enigma da esfinge e salvar Tebas do flagelo que a acometia, Édipo foi proclamado rei de Tebas, casando-se em seguida com Jocasta, viúva de Laios, que na verdade era sua mãe. Mas só depois que uma nova maldição caiu sobre Tebas os fatos que envolviam a morte de Laios foram esclarecidos. Édipo não suportou a verdade e arrancou seus próprios olhos. Antes do nascimento de Édipo, Laios havia cometido engano semelhante, e Apolo o advertira de que seu filho um dia o mataria. Por isto quando Édipo nasceu, temendo a profecia, Laios mandou perfurar com um cravo um dos pés da criança e abandoná-la em uma montanha. Daí vem o seu nome “Oidípous”, que significa “pé inchado”. O pequeno Édipo foi encontrado por um pastor e levado ao rei Políbios que o adotou.
No jogo das metades nessa tragédia, conspurcação, assassinato, quem matou... todas verdades aparecem cifradas, de forma profética. A forma como se encaixam as metades para compor a totalidade da história de Édipo é ao mesmo tempo religiosa e política, quase mágica.
Trata-se de um exercício de poder, de alguém capaz de manipular um segredo, ou de vários que detém os fragmentos de uma história.
A primeira série de metades que se ajustam é o do deus Apolo e do adivinho Tirésias. Ela se desenvolve no nível da profecia e dos deuses. Contém um tipo de olhar mágico-religioso que surge logo no início da encenação. A verdade é dita sob a forma de prescrição e profecia. Já a segunda série de metades é formada por Édipo e Jocasta; é o nível dos reis, dos soberanos. E a terceira série é constituída pelo escravo de Políbio e pelo pastor da floresta Citerão. Sob a forma de testemunho, eles irão enunciar a verdade última, aquela que resguarda como prova, o olhar. Um servo viu Jocasta lhe entregar uma criança para ser abandonada na floresta; o outro servo também viu a criança na floresta e a conduziu ao palácio de Políbio.
Existe uma relação entre os deuses e os servos. Eles dizem a mesma coisa com linguagens diferentes. Os servos atestam o que já haviam dito os deuses. Eles viram e se lembram do que presenciaram com seus olhos humanos, o que havia sido prescrito pelo olhar religioso e profético do adivinho Tirésias e pelo olhar eterno e iluminador do deus Sol, Apolo.
Analisando o título da tragédia, Édipo-Rei, Foucault conclui que o poder de Édipo é o tema central de toda a trama. A questão se prende à perda de poder de Édipo, que está preocupado em preservar a sua condição real. Acredita que Creonte e Tirésias armaram um complô contra ele.
Édipo diz a Tirésias: “Escarneces de inveja do poder que me trouxe tão alto?” Édipo acusa Creonte: “Quando o conspirador avança rápido, eu tenho de ser rápido também: se eu ficar esperando, aumenta o risco, ele triunfa e eu sou derrotado.”
O poder de Édipo foi conquistado por ter demonstrado possuir um saber superior em eficácia. Édipo resolveu o enigma da Esfinge e não cansa de lembrar a todos que pôde fazê-lo sem a ajuda de ninguém. Édipo fala a Tirésias: “O riqueza, poder, sabedoria, quanta inveja trazeis em vosso bojo! Quando foi que provaste ser vidente? Por que, quando rondava por aqui a Esfinge ruminando cantilenas, nunca tiveste nem uma palavra que devolvesse a liberdade ao povo? Eu, Édipo, sem nada saber, logo ao chegar fiz a Esfinge calar: deslindei a questão pela razão, nem foi preciso consultar teus pássaros!”
Ao compor o personagem Édipo, Sofocles discutia o poder político e o saber solitário da figura do sofista que existia em Atenas. Mas também colocava em cena a tirania comum naquele período histórico. O tirano, tal como Édipo o representa na tragédia, era um homem que detinha poder-saber. Correlativos e sincrônicos, eles dotavam o soberano de um especial domínio.
A Grécia viveu muitas lutas, contestações políticas e esta história também levou à elaboração de um forma modelar de descoberta jurídica da verdade que se apóia na materialidade e no testemunho.
Dividida em metades, a verdade aos poucos se reconstitui, e torna-se presente nos relatos daqueles que viram com seus próprios olhos algo que se sucedeu no passado. O entrelaçamento dessas experiências humanas comuns, potentes, transcende os limites da temporalidade. Unifica, por instantes, passado, presente, futuro, e toca o quê de eterno e sagrado que se encobre no núcleo da verdade.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Relato mítico sobre a verdade

Ao discutir sobre formas de proceder no estabelecimento da verdade, Michel Foucault remonta à Ilíada e colhe o primeiro testemunho sobre a verdade que incide no procedimento judiciário grego.
Trata-se de uma história curiosa contada por Homero sobre uma contestação que ocorreu durante um litígio entre Antíloco e Menelau.
Durante uma prova de corrida de carros, Menelau acusou Antíloco de haver este cometido uma irregularidade. Antíloco defendeu-se afirmando não ter cometido a falta que lhe fora atribuída.
Ante a atitude de Antíloco, Menelau lançou um desafio a seu adversário. Sugeriu que Antíloco colocasse sua mão direita na testa do seu cavalo, que segurasse com a mão esquerda seu chicote e jurasse perante Zeus estar dizendo a verdade. Confrontado com a exigência do desafio, Antíloco recusou a prova, o juramento e reconheceu que havia cometido a irregularidade.
Como uma forma singular de produção da verdade jurídica, esse relato mítico prescinde do testemunho. Assemelha-se a um jogo que comporta uma prova sob a forma de desafio, que é dirigida ao acusado.
Nessa prova arcaica da verdade vemos que o que prevalece é o jogo. A constatação, a testemunha, o inquérito ou a inquisição são deixados de lado.
A prova caracteriza um tipo de investigação da verdade que foi muito utilizada na sociedade grega arcaica e também na sociedade medieval.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O processo arcaico

No processo arcaico as provas previstas tinham poder religioso e valor decisório. O processo era dirigido principalmente pelo juramento e pelo testemunho. Esses dois instrumentos asseguravam automaticamente o êxito processual.
Ao juiz cabia apenas o papel de árbitro. Ele se limitava a constatar e a declarar a vitória ao fim da prova de força. O processo se dava no interior da religiosidade grega. E essa forma de proceder foi absorvida pelo movimento político mais amplo da cidade.
Os anseios comunitários se inserem na realidade social e orientam a reforma da legislação, cujo propósito era remodelar a vida pública e coordenar uma elaboração conceitual mais ampla do direito.
Nesse tipo de organização instituído na cidade, o juiz passa a representar a totalidade cívica. Ele incorpora um ser impessoal superior às partes, decide segundo sua consciência e de acordo com a lei.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

A fundação do procedimento judiciário

O surgimento da cidade na Grécia marca uma crise que se inicia no final do século VII a.C. e se estende no decorrer do século VI a.C.
As conseqüências dessa crise foram mais visíveis no domínio do direito e da vida social porque significou um esforço daquela sociedade para elaborar as noções fundamentais de uma nova concepção ética.
A poesia lírica é uma fonte preciosa para mostrar quão ampla e sedutora influência o Oriente, com seus costumes e ideais, exerceu na vida da aristocracia grega dessa época.
Desde então, a ostentação da riqueza se associa ao valor do guerreiro e às qualificações religiosas, tornando-se um elemento importante de prestígio social.
O acirramento da anomia, perceptível no campo das paixões individuais, marca as relações sociais com a eclosão de violência, astúcia e arbitrariedade.
Como restringir a ambição e o desejo de poder e submetê-los a uma regra geral que pudesse ser aplicada a todos, era o propósito de uma renovação ética que se processou ao mesmo tempo no campo religioso, político e econômico.
A invocação de uma norma superior tida como divina – a Dikê, foi uma tentativa de legislar visando conciliar os elementos díspares daquela sociedade em prol de construir uma cidade unida.
No direito grego, a legislação sobre o homicídio funda o momento em que o assassínio deixa de ser uma questão privada, de um ajuste de contas que pode dar início a um ciclo fatal de vinganças, para ser controlado pelo grupo, onde a idéia de coletividade se encontra envolvida: com o seu ato, o assassino se torna impuro e compromete toda da organização da comunidade.
Trata-se de instituir uma reforma e assim ordenar a vida social, reconciliar e unificar a cidade. Em Política, Aristóteles busca demonstrar o caráter ampliado da polis como uma grande família, que reúne aldeias, nas quais se encontram os núcleos familiares.
Era preciso manter entre os cidadãos o sentimento de irmandade, que garantisse entre eles a similaridade. Sobressai a imagem da partilha do pão e da comunhão que se processa em torno da mesa. A refeição, como uma comunhão, realiza entre os convivas uma identidade; uma espécie de consangüinidade.
O homicídio de um concidadão deve provocar no social um horror religioso. Sentimento que denota impureza, como um sacrilégio criminoso cometido contra um parente do mesmo sangue.
Esse momento marca uma passagem fundamental: da vingança privada à repressão judiciária do crime. Assim, regulariza-se o princípio de que o dano causado a um indivíduo é na realidade um atentado contra todos. Cada um adquire o direito de intervir em favor do outro, fazendo valer a punição sem que se tenha sido pessoalmente vítima do dano.
A concepção do direito é realizada no interior de uma religiosidade. No movimento mítico se deposita a consciência comunitária mais exigente, que revela uma nova sensibilidade do grupo em relação aos crimes de sangue; expressão de sua angústia ante os ódios que a vingança privada alimenta.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Sobre a tragédia

A tragédia constitui gênero teatral singular porque ritualiza, no drama, a história do nascimento do direito grego, que coincide com a história da democracia, com o surgimento da cidade e do sujeito pleno de vontade.

Os trágicos evitavam representar o presente, manifestando clara predileção pela mitologia antiga. Colocar o mito no centro da representação significava poder criticar vigorosamente os acontecimentos sem se comprometer com o fato público que se desenrolava no presente.

O mito ressurge na tragédia, revestido de nova linguagem. Ele divide a cena com o coro que representa a sociedade.

O coro interfere na ação do herói mítico, censurando seus excessos, trazendo-a para a dimensão humana e social.

Os heróis trágicos eram retirados do contexto da poética mítica. Rica em poemas que retratavam um mundo de heróis, que eram homens fortes e poderosos que buscavam a felicidade no prazer e na ação.

O herói dava a sua vida um sentido ético mais geral. Havia a exigência da coragem, mas a valentia permanecia em segundo plano. Ao passo que a prudência e a astúcia eram os ideais mais valorizados.

O homem homérico adorava acima de tudo a vida. Ele era consciente de sua força, de sua ação ativa e lamentava como nenhum outro sua morte. A poesia desse tempo acolhia os prazeres individuais.

Já o crescente sofrimento do homem, dependente do destino, as lamentações sobre a fugacidade da vida e dos prazeres sensitivos que se fazem notar na poesia posterior a Homero, denotavam sentimentos relativos aos direitos e à importância da vida individual.

Há na poesia pós-homérica o desenvolvimento do puro conteúdo do pensamento, seja como exigência normativa do social, seja como expressão do indivíduo. Esse tipo de poesia encerrava reflexões normativas, filosóficas, separando-se ou mesmo abandonando o mito, outrora sempre presente na epopéia.

A tragédia floresce nesse momento em que o heroísmo havia cedido lugar ao conhecimento reflexivo e sensitivo.

Na tragédia, a poesia grega volta a abranger a força estruturadora e criativa do humano, assemelhando-se dessa forma à poesia homérica.
Mas a tragédia representava, além disso, um heroísmo mais interior, estreitamento traçado no mito e na forma de ser que dele advém.

A tragédia revaloriza o herói mítico e posiciona seu agir numa dupla dimensão: ora sendo comandado pela vontade caprichosa dos deuses, e aí o herói se encontra preso à dimensão trágica do destino; ora sendo comandado pela vontade humana que emana do próprio sujeito, do poder autocrático e soberano dos reis, ou do poder público que se instaura com a democracia.

A história grega se funda no sentimento de dignidade humana, desenvolve-se como um movimento de valoração do homem.

Valoração não do eu subjetivo e individual, mas da consciência das leis gerais que determinam uma idéia de essência humana.

Tal concepção não encerra a esfera de um eu autônomo, e sim o homem como idéia, que implica uma imagem genérica, universal e normativa. Segundo esse ideal de homem é que se devia formar o indivíduo.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

O lugar do psicólogo na Justiça

O psicólogo ocupa um incômodo lugar na justiça: um estrangeiro convidado a intervir nas modalidades de censura.
Todavia essa diferença, a de ser um estranho nesse campo, pode abrir sua visão sobre a mitologia da submissão, de modo a desvendar seus engenhos e sua dramaturgia dogmática.
A meta profissional, que considero válida, é produzir uma possibilidade de lugar fora do âmbito puramente dogmático e burocrático da glosa judiciária, para manter acesa a chama da reflexão sobre questões fundamentais à existência humana como dignidade e liberdade.
Questões que precisam ser constantemente ativadas no embate diário com a prática.
Porque se o psicólogo não interrogar e problematizar sua tarefa na Justiça, não conseguirá se deslocar do lugar que a instituição lhe destina: o de referendar cientificamente a doutrina da norma, o de transmitir a tradição da disciplina.
Cabe ao psicólogo delimitar seu lugar na instituição judiciária, tanto em função da demanda do instituído, quanto em função de pesquisas técnicas, avanços teóricos e estudos éticos sobre a aproximação da psicologia e do direito, sobre a função que o psicólogo realiza no interior deste tipo de instituição.
E resguardado no patamar da autonomia técnica que sua especialização lhe confere, o psicólogo poderá visualizar o seu lugar.
Lugar que precisa ser ocupado por uma equipe de profissionais capaz de preservar distanciamento em relação ao rigor dogmático, para poder discernir e desvelar sua liturgia mítica, para não ser apenas consumida pelo cotidiano imediatista e automático da repetição burocrática.
Essa equipe, que se forma no interior da instituição pública, precisa pensar em que essa característica torna peculiar sua intervenção. Lembrando sempre que o respeito às crenças teóricas individuais dos colegas não inviabiliza que se possa conceber procedimentos comuns visando produzir um genuíno campo de investigação especializado.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

O relatório

A redação de um relatório não é tarefa simples.
O especialista precisa estar atento ao emprego das palavras e pesar a forma que dá ao relato de suas conclusões, evitando termos estritamente técnicos e expressões imprecisas que ficam sujeitas a interpretações diversas.
Sempre com o cuidado para não revelar aspectos da intimidade da pessoa que nada concorrem para esclarecer o caso, o conteúdo do relato faz sobressair a história pessoal do adolescente e de sua família, de modo conciso e se possível preciso, desprezando fórmulas abstratas e impessoais, que servem apenas para caricaturar o entrevistado e dificultar a compreensão clara sobre as conclusões contidas no relatório.
Não se pode esquecer que o relatório será lido por profissionais de formação jurídica, cuja intervenção decidirá o destino do caso.
É comum e até aconselhável que os profissionais diretamente envolvidos no estudo se encontrem para trocar impressões, o que não acarreta necessariamente na confecção de um relatório único, embora não haja impedimento para que este proceder seja levado a efeito.
O juiz pode pedir ainda o depoimento oral dos especialistas que realizaram o estudo. Nesse caso, não se deve menosprezar a importância de tal depoimento para a decisão judicial.
É preciso ter em mente as armadilhas em que se pode cair. Ainda que hábil e competente, o especialista deve se ater estritamente ao conteúdo do relatório, salvo tenha alcançado outra compreensão sobre o estudo após tê-lo concluído.
Embora o juiz não esteja obrigado a levar em consideração as conclusões contidas no parecer do especialista, já que ele é apenas mais um elemento entre outros, em geral a sua influência é incontestável para orientar o sentido que irá tomar a decisão judicial.
Este fato, em si, torna o parecer um instrumento consideravelmente importante, mas não livre de controvérsias. Até porque divergências de apreciação entre peritos ocorrem com razoável freqüência.

Pronto-socorro psíquico

A segunda vara da infância e da juventude recebe as questões familiares em estado de ebulição. Funciona como um pronto-socorro psíquico para as famílias que são ali atendidas e cujos ferimentos permanecem encobertos por revoltas, negligências e negações.
O ato infracional ecoa no ambiente da vara como um berro que emudece outros gritos há muito sufocados. E na maioria das vezes esse berro consegue nos ensurdecer. Berro é também uma gíria que designa arma de fogo.
O que significa apoiar a família no contexto institucional dessa vara?
Apoiar a família implica o esforço para entender sua demanda e sua dificuldade.
Se este objetivo é canhestramente alcançado, alguma coisa de muito significativo tem lugar no atendimento.
E as dificuldades vivdas pelo psicólogo passam então a girar em torno dos moldes instituídos: a aceitação por parte do juiz das ponderações apresentadas pelo psicólogo, ou a aceitação por parte deste de falhas em sua argumentação, pois não será capaz de dar conta de tudo.
Muitas vezes o psicólogo enfrenta frustrações e precisa, a despeito delas, manter-se aberto para surpresas. Como por exemplo, ser capaz de perceber que a sua visão do caso não elucida lacunas nem exclui equívocos.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Modelo de intervenção

O modelo de intervenção clínico-institucional usado na segunda vara da infância e da juventude está ainda sendo construído e fundamentado. Contudo, podemos assentar algumas considerações.
A primeira é que o jovem não pode ser visto como alguém que porta uma doença. Para evitarmos o mesmo erro da tradição nosográfica da psiquiatria e do enquadramento criminológico, cujo vício, em ambos os casos, está em conceder privilégio ao aspecto patológico do indivíduo, transformando-o em sede onde reina o mal.
Nossa proposta é clarificar como se processa a captura consentida de um sujeito que personifica questões indizíveis, que é feito depositário de uma alteração que brota no cerne da família ou do grupo que ele representa.
A atenção clínica se volta para a família, buscando delinear a alienação na qual ela se fecha. Abordagem focal que se desenrola no imediato, no pronto atendimento limitado ao aqui e agora.
Intervenção realizada através da escuta, que permite ao sujeito se reportar pela palavra a questões que aparecem como dominantes naquele momento que marca a sua passagem pela justiça.
Então, o convite que o psicólogo oferece à família é para que aproveite aquele momento, já que inevitável, para olhar os problemas que têm sido negligenciados.
Sabemos que os pais se sentem desamparados ante a responsabilidade com a educação (no sentido amplo) dos filhos, especialmente quando estes são adolescentes, predispostos que estão a explorar novas experiências, a abrir-se a muitos desafios.
Uma proposta de colaboração mútua entre psicólogo e família é em geral bem aceita quando se consegue fazer com que a família perceba que ela será apoiada ao invés de culpabilizada.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Planejamento e integração

O psicólogo na justiça muitas vezes se depara com dificuldades em sua abordagem que, na maioria dos casos, podem ser atribuídas à falta de planejamento em adequar o espaço físico para comportar um atendimento dessa natureza.
O ambiente na psicologia precisa ser visto como instrumento de trabalho que favorece a recepção respeitosa, a privacidade e a intimidade acolhedora. Condições consideradas básicas para o proceder profissional do psicólogo.
A negligência da justiça com a observância dessas condições revela sua contradição ao partilhar seu espaço de trabalho com a psicologia. Mas é verdade que muito já se conquistou nesse terreno. Mesmo antes da criação do cargo de psicólogo.
E cabe observar que boa parte dos atendimentos realizados, ainda que em condições precárias, chega a bom termo ao seu final. Isto porque, nesses casos, se pôde contar com a colaboração das partes e se pôde chegar a uma compreensão razoável da passagem do jovem pela justiça: o que concorreu para que ela ocorresse, o que significou para cada um e o que pode ser aproveitado dessa experiência desagradável em favor do amadurecimento nas relações familiares. Momento ideal para se efetuar encaminhamentos, caso sejam necessários.
São muitas as atividades a que os psicólogos podem se dedicar nesse campo de atuação, como também são muitas as dificuldades a serem enfrentadas. A luta contra o isolamento na dinâmica interna da vara e o esforço para trabalhar em equipes interdisciplinares, por exemplo, comportam desafios para a equipe de psicologia que muitas vezes se resguarda e se afasta dos demais profissionais que colocam em funcionamento a missão da justiça.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Encaminhamento à psicologia

Quando o jovem é encaminhado à psicologia na segunda vara da infância e juventude, ele chega acompanhado de seu responsável. É comum se apresentar em companhia da mãe, da avó, do pai ou do casal de genitores (nesta ordem).
O certo é que ele é conduzido à psicologia por uma demanda da instituição, que não implica nada do desejo dele nem da família. Daí discutir-se o que há de genuíno nesse momento de chegada.
O que valorizamos nesse momento é a possibilidade do psicólogo realizar um trabalho diferenciado da intervenção exclusivamente pericial, de modo que sua intervenção traga benefícios não só ao pedido explicito da instituição, mas também à população usuária desse serviço.
Quando se trabalha com coletividades em nível público sempre se corre o risco de desempenhar um papel de normatização higienista da conduta, pura e simplesmente.
Embora esse problema não seja típico apenas da psicologia e nem se particularize na realidade da justiça, não se pode deixar de considerar que esse campo de trabalho encerra armadilhas dessa natureza.
E com tal freqüência isso acontece, que as armadilhas se tornam inerentes às atividades as quais os psicólogos se dedicam nessa instituição. Mas esse argumento não invalida o trabalho, antes, o particulariza.
A prática da psicologia no judiciário pode se transformar num veículo de cometimento de violências estruturais. Isso merece atenção.
Contudo, violências nós as cometemos sempre que somos imprudentes nos nossos atendimentos, seja no âmbito público ou privado.
Por isso toda cautela é bem-vinda quando emitimos laudos ou quando vamos de encontro ao pedido mudo de ajuda das pessoas.
Sou de opinião, por outro lado, que a falta de opções por parte da população que usualmente freqüenta essa vara não nos dá o direito de opções elitistas. Atender com dignidade a população que transita nos corredores da justiça se reveste de importância social.
Dar a chance a de que a população seja adequadamente ouvida no espaço público é antes um compromisso ético no âmbito do serviço público.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Estudo de caso

Na justiça da infância e da juventude o exame pericial toma o nome de estudo de caso. Pedido que é formulado pela autoridade judiciária.
Em geral, o estudo do caso é realizado por um psicólogo e ou um assistente social em efetivo exercício nesse juízo especializado.
Cada profissional apresenta seu relatório, respeitando os prazos judiciais. E o relatório contempla, inclusive, sugestões sobre medidas a serem adotadas.
O processo constitui o primeiro recurso de que o especialista pode se valer para a obtenção de informações sobre o fato e as circunstâncias que circundam o ato: a forma da execução, as explicações contidas no primeiro interrogatório, a versão da vítima e das testemunhas.
Cabe perguntar, contudo, se essa consulta prévia dos autos não incorre no risco de direcionar inconscientemente o especialista na condução de seu exame.
Durante a vigência do estudo, o adolescente e sua família permanecem à disposição da justiça. Os pais ou responsáveis e demais membros da família podem também ser convocados para entrevista com o especialista responsável pelo estudo.
Atualmente a justiça incorporou em seus quadros profissionais das ciências humanas como o psicólogo e o assistente social. Essa mudança reflete a proximidade da justiça com as ciências humanas. E esta, por sua vez, está mais próxima da abordagem pluridimensional que valoriza contribuições de diferentes campos do saber.
Mas essas alianças – da justiça com as ciências humanas - ainda que salutares envolvem riscos que precisam ser melhor examinados, como por exemplo a cumplicidade desses saberes com o estabelecimento de um controle coercitivo mais sutil e disciplinado através do uso desses conhecimentos técnicos.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Dívida social

A segunda vara da infância e da juventude absorve o peso dos encargos públicos não equacionados; recebe o impacto da conseqüência do endividamento social que se alastra no tecido mais desprotegido da sociedade.
A experiência na segunda vara demonstra que não se pode desprezar o pedido de socorro das famílias que são conduzidas a esse juízo, pois ele encarna a função de pronto-socorro psicossocial; o último recurso para a angústia que grita no íntimo dessas pessoas.
Claro que esse pedido de ajuda não se explicita em palavras - mas em atos. Basta que se tenha ouvidos argutos para escutar as histórias trazidas por essas famílias para sentir ecoar no ambiente dessa vara os pedidos de socorro.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

O exercício clínico-institucional na justiça visto a partir de um exemplo

O objeto de atuação na segunda vara da infância e da juventude incide sobre atos infracionais cometidos por adolescentes.
Quando um jovem atravessa esse limiar da instância jurídica ele testa a existência da lei no seu sentido estrito. E a comprova ao experimentar as conseqüências de sua ação conflitante. O jovem clama a lei. Ela vem ao seu encontro. E ele se apraz com essa forma - transgressora - de explorar a existência da lei.
O processo judiciário assume assim feições simbólicas. Sua eficácia se faz presente na maioria dos casos. Afirmação de fácil comprovação estatística, levando-se em conta que a maior parte dos jovens que chega à segunda vara são considerados primários no circuito judicial. Trata-se de casos relativamente simples que na maioria das vezes sequer chegam à psicologia.
Será que o jurista se dá conta de que a sociedade deposita na função que ele exerce um quantum significativo de investimento simbólico?
Na vivência processual algo de importância estruturante pode advir. Ponto de confluência em que se tocam e se interpenetram duas ordens: simbólica e jurídica.
O juiz representa a ordem jurídica. Disto ninguém duvida. O que quero afirmar aqui é que ele também assume a função de representante da ordem simbólica.
A aproximação dessas ordens precisa implicar necessariamente na humanização dos processos judiciais. O que justifica pensarmos na importância de se pôr em questão dois graves entraves do mundo jurídico: o pensamento viciosamente normativo cultivado pelo direito positivo e a burocracia obsessiva da prática judicial.
Entraves que se complementam para anular o sentido, ao isolar, no lidar processual, o caráter fundamentalmente dramático da história que cada caso encerra.
O índice de reincidência infracional na segunda vara não ultrapassa a margem dos trinta por cento (levando em conta já a segunda entrada).
Os casos reincidentes com os quais tive contato, e que me pareceram mais desafiadores (por exemplo, um jovem de dezesseis anos com vinte e nove entradas no sistema) se situavam em torno dos dezoito por cento.
O que esses números refletem senão a situação sócio-econômica do país? A concentração de renda, a cultura discriminatória, a falta de políticas públicas, a falta de programas eficazes nas áreas de educação, de saúde, de habitação e de segurança pública.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Conferência para magistrados

Freud realizou em Viena (1906) uma conferência para magistrados, a convite do catedrático em jurisprudência Löffler, na qual ele esclarece como se processa a clivagem do eu.
Nesta conferência aborda o método de associação de idéias, inspirado nas experiências de Wundt, que se resume na apresentação de uma palavra-estímulo ao sujeito da experiência, o qual deve responder com outra palavra-reação o mais rápido possível.
Bleuler e Jung re-significaram essa experiência de Wundt ao relacionarem a palavra-reação evocada pelo sujeito, a um conteúdo ideativo presente na sua mente naquele instante. Palavra capaz de influenciar o momento da reação ao trazer à memória outra palavra que guarda estreita relação com o complexo de idéias que lhe deu origem.
Uma auto-traição psíquica se torna perceptível ao observador, na flagrante perturbação que altera o tempo da reação normal, tornando-o muito mais longo do que o comum, o que comprova o investimento afetivo do complexo perturbador.
Na conferência, Freud constrói uma analogia entre o criminoso e o histérico, acentuando o fato de que ambos portam um segredo, e afirma que a evocação das palavras em associação não são arbitrárias, tampouco casuais.
No caso do criminoso, o sujeito conhece o segredo e deseja ocultá-lo. Ao passo que no caso do histérico, o segredo está oculto para o próprio sujeito.
A associação de idéias na psicanálise tem como objetivo atingir um segredo que o histérico esconde de si mesmo, mantendo-o afastado da consciência. E é justamente esse material psíquico ativamente recalcado que é a fonte dos sintomas somáticos e psíquicos.
A resistência que o paciente apresenta para evocar palavras que o aproximam do complexo perturbador acompanha o curso de todo o tratamento. Suas hesitações revelam a distância em que se encontra de seu segredo.
A resistência manejada na análise está situada no inconsciente, ao contrário da resistência que aparece no interrogatório judicial que se situa na consciência.
A resistência que acompanha o processo de análise se mantém inacessível – inconsciente – como um mecanismo defensivo do eu.
O que se nomeia aqui por inconsciente, é a região psíquica inteiramente alheia ao eu, e que, inclusive, com ele está em conflito. O inconsciente, ou o isso, consiste em processo psíquico cuja suposta existência apenas se pode inferir a partir de seus efeitos, no momento mesmo em que está sendo ativado.
O que existe no inconsciente são investimentos pulsionais que buscam descarga, enquanto que o eu é o órgão sensório do psiquismo responsável pela operação da consciência.
O eu é uma parte do inconsciente modificada pela influência da experiência. Sob as ordens do inconsciente, o eu controla a motilidade e as necessidades, interpondo entre estas funções uma protelação, que consiste propriamente na atividade do pensamento. Situa-se aqui a resistência que o eu opõe ao isso.
O eu se separou do isso por força das resistências decorrentes do recalque, enquanto que as idéias suprimidas pelo mecanismo do recalque fundiram-se ao isso.
Freud utiliza a imagem da servidão para apresentar a função mediadora do eu que, afinal, serve a três senhores: a realidade, o supereu e o isso. Sua tarefa é tentar harmonizar as exigências incompatíveis desses senhores.
Na tentativa de mediar as exigências do isso e a realidade, muitas vezes, o eu é forçado a encobrir as ordens inconscientes do isso, mediante racionalizações.
Já o supereu confunde-se na intimidade do isso, e neste se funde, situando-se mais distante do sistema perceptivo do que o eu. O supereu observa com severidade o eu, punindo-o com sentimentos de inferioridade e culpa.
O eu, pressionado pelo isso, confinado pelo supereu e repelido pela realidade, luta para estabelecer o equilíbrio entre as forças e as influências que nele atuam. Quando é obrigado a admitir suas fraquezas, irrompe em ansiedade.
Freud termina a conferência lembrando-nos uma questão de ordem ética importante:

“(...) pelas normas do direito penal, é vedado sujeitar o acusado a qualquer medida que o tome de surpresa; portanto, ele deverá ter sido advertido de que poderá denunciar-se nessa experiência. Isso leva a perguntar se podem ser esperadas as mesmas reações tanto quando a atenção do sujeito está dirigida para o complexo, e a que ponto a intenção de ocultar alguma coisa pode afetar os modos de reação em pessoas diferentes.
Neste tipo de tarefa, o entrevistador pode ainda se enganar, e ser induzido a erro por neuróticos que reagem como culpados, quando pressionados por sentimento de culpa anterior que se atualiza no momento da acusação.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

O caso Halsmann

O parecer do perito no caso Halsmann é o título de um texto publicado por Freud em 1931, no qual ele analisa as conseqüências de um parecer feito pela faculdade de medicina para o tribunal de Innsbruck em 1929.
Esse parecer tinha como objetivo fornecer elementos para o julgamento de um jovem estudante, chamado Philipp Halsmann, que fora acusado de parricídio.
Dois temas psicanalíticos nortearam o parecer da faculdade de medicina: o complexo de Édipo e a repressão.
O que nos interessa salientar aqui é que Freud adverte que tais formulações sobre processos psíquicos muitas vezes não fornecem a clarividência esperada. Antes, podem tornar-se obstáculos ao se imputar responsabilidades.
O complexo de Édipo, por exemplo, se faz presente na infância em todos os humanos, e no adulto é encontrado em graus de intensidade variáveis.
E justo por estar presente em todos os homens, o complexo de Édipo não pode servir de fundamento e causa para esclarecer sobre a culpabilidade penal.
No caso em questão, quando o parecer foi escrito não fora sequer demonstrado objetivamente que o jovem tivera cometido o crime.
Se a autoria do ato tivesse sido comprovada materialmente, aí sim haveria fundamento para se introduzir o complexo de Édipo, com o intuito de esclarecer o motivo para o ato inexplicável, e não para atribuir responsabilidade.
Mas, uma vez que não havia provas efetivas contra Halsmann, a menção ao Édipo, ao contrário do desejado, surtiu efeito desorientador porque, atribuir como causa as divergências existentes nas relações entre Halsmann e seu pai não constituíam dados sólidos para fornecer uma base segura sobre a qual se pudesse presumir a ação criminosa.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

O caso Pierre Rivière

O dossiê sobre o caso do parricida Pierre Rivière, organizado no Collège de France por um grupo de estudiosos sob a coordenação de Michel Foucault, estuda as relações entre psiquiatria e justiça penal.
O dossiê é exemplar de como as relações entre psiquiatria e justiça penal sempre foram fontes de dificuldades, quando o que está em jogo envolve o diagnóstico sobre a saúde mental de um acusado.
Rivière matou a mãe, a irmã e o irmão porque acreditava que os três estavam em acordo para perseguir seu pai, a quem queria proteger.
O caso foi relatado numa revista de 1836 sobre saúde pública e medicina legal. A publicação incluía um resumo dos fatos e três relatórios médicos: o do médico da província em que aconteceu o crime, o do médico da cidade que era encarregado de um asilo importante, e outro assinado por vários psiquiatras e legistas muito conhecidos na época, dentre os quais se destacava o nome de Étienne Esquirol, reconhecido psiquiatra francês do século XIX, precursor da psiquiatria científica.
Esses três relatórios divergiram quanto ao gênero de análise e às conclusões a que chegaram os peritos.
Do conjunto das peças judiciárias sobressaía o fragmento de um memorial redigido pelo acusado, documento surpreendente porque revelava a integridade lógico-racional de Rivière.
O relatório do médico da província chamado Bouchard, pedido pela acusação, representa a medicina não especializada da época. Bouchard não encontra no comportamento de Rivière evidências patológicas, conclui que ele era responsável no momento do ato e atribui o crime a um estado de exaltação momentânea.
Embora fosse um médico de reputação notória na província, faltavam a Bouchard conhecimentos sobre as categorias com que trabalhava a psiquiatria moderna, como o conceito de monomania descrito por Esquirol para caracterizar o delírio parcial, uma espécie de micromania em que o delírio se limita a um número reduzido de objetos. Na monomania homicida certo tipo de crime atestava por si só a loucura, ou seja, o ato criminal tomado em si mesmo, era o sinal da loucura. Bouchard descartou em seu parecer a possibilidade de Rivière ser monomaníaco.
A monomania não era uma categoria muito bem aceita na justiça punitiva, porque os operadores dessa justiça desconfiavam da intervenção da psiquiatria. Temiam o poder decisório crescente que ela conquistava na atribuição de responsabilidade do acusado.
O relatório de Vastel, o médico de cidade, foi pedido pela defesa. Esse parecer utiliza o consenso especializado da psiquiatria para produzir uma nova intervenção no poder judiciário. A conclusão de Vastel oscila entre a incoerência intelectual e o déficit mental do acusado. Ele mostra a fraqueza congênita da mente de Rivière, sua idiotia. Procura demonstrar a lacuna, a disfunção, a fraqueza primária de sua consciência. Para Vastel, Rivière vagueia de delírio em delírio, e o ato do crime tenta dissolver essa fantasmagoria delirante.
O terceiro relatório surge como instrumento de intervenção da psiquiatria parisiense, após a condenação à morte de Rivière, a pedido da defesa. O documento não insere nenhum novo elemento na análise, apenas ratifica o entendimento de Vastel sobre o caso. O laudo evita um diagnóstico preciso, e compara o comportamento de Rivière com o dos monomaníacos que recobram a razão depois de um acesso paroxístico.
Pautada no argumento médico, a defesa de Rivière conseguiu o indulto e a pena de morte foi convertida em prisão perpétua. Mas Rivière, que ansiava pela condenação à morte, dá cabo de sua vida cinco anos mais tarde.
A participação do poder médico-psiquiátrico da época no caso Rivière significou a preparação de uma virada nas relações entre psiquiatria e poder punitivo. A psiquiatria trabalhava em prol da legalização da internação ex-offício e voluntária em estabelecimentos asilares. O confinamento psiquiátrico, que se desejava tão eficaz e imperativo quanto o penal, tinha a seu favor o poderoso argumento preventivo, de poder intervir antes que um ato criminoso fosse cometido.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

O valor da confissão

Face às dificuldades inerentes à atribuição de responsabilidade, a psicanálise pode contribuir de forma esclarecedora, pois no diálogo analítico, movimento em cuja atmosfera se radicaliza a potencialidade da interlocução, emerge a confissão do sujeito.
Poderosa chave na revelação das verdades da intenção, a confissão iguala em peso, as noções de pecado, culpa, responsabilidade e castigo.
Enquanto objeto de prova da responsabilidade do sujeito, a confissão encontra força no âmbito tensional em que essas noções ressoam como pressões da cultura.
Mas numa sociedade como a que presenciamos hoje em que essas noções são como moedas que circulam no câmbio moral mais por tradição que por seu valor real de troca, que importância se pode atribuir ainda a confissão do sujeito?

O valor da confissão é retomado quando ela se coloca em ação, como prova técnica, no sítio efervescente das verdades inconciliáveis que domina o cenário do julgamento; quando ela evidencia os motivos e torna compreensíveis os móbeis do crime.
Contudo, mais do que ninguém o psicanalista conhece as armadilhas do eu confesso, lugar privilegiado da denegação. Sabe que a sinceridade é o primeiro obstáculo com que se depara alguém empenhado em seguir o rastro da intencionalidade, pois na manifestação da fala se encontra o intuito de apagá-la. Eis o ponto em que se tece a complexidade da confissão.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Exame pericial

O que se espera do especialista perito?
Durante o exame pericial algumas regras de ordem ética precisam ser observadas.
Sabe-se que, como tarefa, cabe ao perito comunicar ao tribunal os resultados obtidos na investigação pericial.
E quanto ao examinado?
O especialista ao se apresentar ao examinado precisa deixar claro sua condição de perito: alguém a quem foi dada a missão de informar à Justiça sobre a entrevista a ser realizada.
O perito respeita o examinado como pessoa, orientando-o sempre que possível.
Guarda o segredo profissional compatível com sua missão, e permanece alerta para que informações decorrentes desse tipo de exame não sejam utilizadas fora do gabinete do juiz.
A posição do perito é incômoda: ele não é juiz nem testemunha; não lhe cabe fiscalizar a lei nem defender o acusado, contudo, suas observações podem definir o curso de uma sanção.
Os maiores problemas da perícia estão na relação entre perito e examinado. Das dificuldades que enfrenta o perito, duas são cruciais: uma é que o acusado se percebe sem escolha; a outra é que o exame não tem compromisso terapêutico.
Podemos então nos perguntar sobre o aspecto qualitativo dessa relação, especialmente no que se poderia esperar de colaboração e de sinceridade. Uma relação que desde sempre está atravessada pela figura do julgamento subjacente às conclusões do perito.
O pedido feito ao perito pela Justiça é que dê respostas claras, científicas e definitivas do caso, em função da relação de causalidade entre aspectos psicogênicos e psicopatológicos do acusado com o fato investigado.
Em suma o que se quer do perito é que ele determine se o crime está ou não relacionado a um estado patológico.
Mas quando se leva em conta a indefinição das fronteiras entre o normal e o patológico, e a dificuldade que existe no jogo das tensões entre o que é possível ao perito concluir e a urgência em concluir do juiz, não se pode esquecer o que há de irrealizável, o que há de impossível na tarefa do perito.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

A posição de especialista do perito

O perito é alguém escolhido para realizar exames e apreciações em razão de seus conhecimentos técnicos.
Cabe ao juiz de direito nomear o especialista perito. Com este procedimento, o juiz delega a especialistas atos que ele não pode executar.
Sabe-se que é próprio da justiça exigir respostas imediatas e categóricas, e na medida em que o especialista aceita a missão pericial, ele se compromete com essa exigência que a justiça lhe impõe.
Mas suas conclusões não se impõem ao julgamento do juiz, o qual pode inclusive deixar de levá-las em consideração.
O perito, especialista em saúde mental, precisa manter sua independência diante do juiz, tendo em mente as obrigações ético-profissionais que sua especialidade comporta, e ter claro que o tipo de perícia que realiza não tem como objetivo comprovar a materialidade dos fatos.
Portanto, o perito não tem porque se posicionar sobre questões jurídicas. Deve, antes, salvaguardar sua posição de especialista.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

A responsabilidade do perito

A evidência prática demonstra que muitos atos são praticados por sujeitos perturbados que necessitam de tratamento psiquiátrico.
Mas existe um número significativo de casos que se colocam numa zona limite e que desafiam as predições diagnósticas.
Convidado a fazer distinção entre a extravagância do comportamento bizarro do louco, do comportamento desafiador e ousado do transgressor, o perito precisa ser capaz de admitir os aspectos subjetivos que podem dirigir sua escuta, precisa reconhecer a falibilidade de seu olhar clínico, que pode estar amalgamado a seu juízo moral.
A nosografia psicopatológica, construída a partir da fenomenologia dos sintomas, não pode atingir a etiologia da doença mental em razão da relatividade dos sintomas, porque estes se organizam de acordo com as normas presentes nas diferentes culturas e épocas.
Nos dias atuais, caminhamos para o desaparecimento da fronteira entre o normal e o patológico. Mas quando se trata de avaliar a responsabilidade e periculosidade de um acusado, o especialista em saúde mental é quem se apresenta para iluminar a decisão judicial. E, espera-se que ele refleta sobre a dimensão pouco clara, indefinida mesmo, de sua responsabilidade.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Normal e patológico

A justiça confiou ao especialista em saúde mental a missão de diagnosticar diferencialmente a veracidade da alienação mental que porventura se possa atribuir ao acusado.
Essa tradição jurisdicista se justifica na divisão que existe na sociedade entre indivíduos normais e patológicos, e é uma tentativa de resposta para o desafio que a transgressão coloca ao imperativo de controle social.
O indivíduo normal é considerado responsável por seus atos. Então quando transgride, ele opta em são consciência por praticar o mal e, como conseqüência, será punido pela justiça.
Já o indivíduo categorizado como patológico, que é aquele considerado insano por portar a doença, quando transgride é controlado pela cientificidade da psicopatologia.
Mas, o que é o normal? Ajuda-nos a pensar Canguilhem, o normal é apenas um protótipo que se naturalizou no pensamento popular; uma categoria que expressa a normalização da conduta, assim formatada no processo de socialização.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Crime e culpa

No texto Criminosos em conseqüência de um sentimento de culpa, escrito em 1916, Freud examina o caráter de analisandos seus, que confessaram ter cometido transgressões no decurso do tratamento.
Essas análises revelaram que ações socialmente condenáveis são praticadas justamente pelo fato de não serem admitidas. Cometer atos reprováveis produz alívio no autor que os pratica porque, ao transgredir, o peso da culpa diminui. Indício de que o sentimento de culpa se liga ao algo, ainda que desconhecido. O sentimento já existe antes da ação ser praticada, ele não surge como conseqüência dela.
Qual o papel que o sentimento de culpa - anterior à ação - desempenha como causa no crime humano?
A concepção da psicanálise gira em torno do obscuro sentimento de culpa que advém do Édipo, esteio do supereu cultural, que se impõe como freio às intenções parricidas de matar o pai e de praticar incesto com a mãe.
As travessuras da criança, muitas das quais propositais, têm por finalidade provocar o castigo. Após a punição a criança permanece tranqüila e contente. Muitos adultos agem de maneira similar.
É importante pesquisar até que ponto o indivíduo que comete um crime não é motivado pela necessidade que sente de ser punido em decorrência de seu sentimento de culpa inconsciente.
Excetuam-se desse tipo de caráter, adultos que praticam crimes sem sentimento de culpa, porque não desenvolveram inibições morais, ou porque consideram sua ação justificada no conflito que travam com a sociedade.

segunda-feira, 6 de abril de 2009

A noção de responsabilidade

A noção de responsabilidade, que fundamenta a imputabilidade das conseqüências penais, se refere à organização psíquica que cada indivíduo porta para garantir sua própria autonomia na escolha de seus atos.
A repressão formal se exerce contra pessoas tidas como moral e socialmente responsáveis, ou melhor, pessoas capazes de discernir entre o bem e o mal.
Esta noção se sustenta na teoria do livre-arbítrio, concepção na qual o homem aparece como livre e responsável, portanto culpável, quando comete um ato que poderia não cometer, levando em conta os preceitos morais e os valores sociais.
A aceitação das motivações inconscientes como determinantes dos atos coloca em questão as explicações organicistas, de um lado, e relativiza de outro a idéia iluminista de que o comportamento humano é presidido pela razão, cuja ascendência sobre a vontade seria capaz de organizar o comportamento humano.
Estas considerações tornam ainda mais complexas discussões sobre a responsabilidade penal, que não é atribuída nem na primeira infância nem na insanidade.
É sobre este tema que se sustenta a necessidade da perícia penal, cujo objetivo fundamental continua sendo o de avaliar a responsabilidade do sujeito e as circunstâncias que o levaram ao ato.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Freud e a criminologia

Em Dostoievski e o parricídio (1928), ao examinar a obra e a biografia de Dostoievski, Freud enuncia os traços que considera marcantes para distinguir uma pessoa criminosa das demais. Diz ele:
“Num criminoso, dois traços são essenciais: um egoísmo sem limites e um forte impulso destrutivo. Comum a ambos, e condição necessária para sua expressão, é a ausência de amor, a falta de uma apreciação emocional de objetos (humanos)”.
A análise sobre os dados biográficos de Dostoievski, oferecida por Freud, ajuda a compreender a dinâmica do Édipo e do sentimento de culpa na conformação psíquica que apresenta traços sadomasoquistas.
Freud considera que o gosto por criar personagens violentas, homicidas e egoístas, por si só, informam a proximidade de Dostoievski dessas escolhas em seu mundo subjetivo. Por isto lhe atribui intensa propensão destrutiva.
Este tipo de impulso poderia ter direcionado Dostoievski ao mundo do crime. Mas isto não aconteceu porque essa força foi dirigida contra ele mesmo, resultando na formação de sintomas histéricos, na cristalização de sua neurose.
A trama desenvolvida na obra prima - Os irmãos Karamazov - apresenta aspectos de indiscutível similaridade com a história pessoal do autor, especialmente no que se refere à relação de Dostoievski com seu pai.
A tragédia se desenrola em torno de uma história que focaliza a relação entre um pai tirano e seus filhos, a rivalidade entre o pai e um dos filhos na disputa do amor de uma mesma mulher, e o cometimento do crime de parricídio por um dos filhos.
Obra exemplar - Os irmãos Karamazov - permite-nos a elaboração sobre o crime primevo da humanidade – o parricídio, fonte mítica do sentimento de culpa e da necessidade de expiação.
Freud recorda ainda duas outras obras-primas da literatura internacional – Édipo Rei, de Sófocles e Hamlet, de Shakespeare – que abordam o mesmo tema, o parricídio. Em todas essas obras, a motivação para o ato se encontra na rivalidade sexual por uma mulher.
Conforme o destino edípico descrito por Freud, processo que responde pela entrada do homem na cultura, o menino se relaciona com o pai de forma ambivalente. O pai é o rival a quem o filho dedica sentimentos de ódio e ternura, misto de admiração, inveja e temor, componentes primitivos do processo de identificação do menino com o pai, e também a base do sentimento de culpa que se mantém inconsciente.
O temor à castração, que faz com que o menino desista de possuir a mãe e se submeta à lei paterna, torna inacessíveis tanto o ódio quanto o amor ao pai, pois ambos são suprimidos da consciência.
Se esses poderosos sentimentos têm como destino o recalque, a identificação com o pai, por outro lado, cava um lugar definitivo para si no eu, e nesta instância permanece separada do restante do eu. Este processo da identificação com o pai é o marco da constituição do supereu, herdeiro da influência familiar e da moralidade franqueada pela cultura.
A relação entre o menino e seu pai se transforma numa relação entre o eu e o supereu. A um supereu sádico, corresponde um eu masoquista, passivo, feminino.
Diante de tal correspondência, a necessidade de punição se torna vívida no eu, que se oferece como vítima do destino, e encontra satisfação nos maus tratos impingidos pelo supereu tirano, ou seja, pelo castigo imposto no sentimento de culpa.
A punição encerra uma castração, e também a realização da atitude passiva para com o pai, isto é, para com a vida.
Na história pessoal de Dostoievski, a morte precoce de seu pai realiza fortuitamente desejos primitivos reprimidos, o que impôs o fortalecimento de medidas defensivas.
É sob esse prisma que Freud compreende as crises epiléticas de Dostoievski, cujo significado remonta à identificação com o pai como punição, tornando-se tão aterradoras quanto a sua morte. Nas palavras de Freud:
“Uma coisa é digna de nota: na aura da crise epilética, um momento de felicidade suprema é experimentado. Pode bem ser um registro do triunfo e do sentimento de liberação experimentados ao escutar as notícias da morte, seguidos imediatamente por uma punição ainda mais cruel”.
Mesma seqüência de júbilo e pesar, Freud descreve nos irmãos da horda primeva em Totem e Tabu. Dostoievski foi condenado, injustamente, por questões políticas. Castigo que aceitou com impressionante resignação.
Permitiu passivamente sua própria punição pelo representante paterno, o Czar. Freud vislumbra nesse acontecimento a justificação psicológica das punições realizadas pela sociedade. E considera que Dostoievski nunca se libertou dos sentimentos de culpa originados do desejo de matar seu pai.
Existem criminosos que almejam ser punidos. E esta é uma exigência do supereu deles.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Criminologia clínica

As bases da criminologia clínica surgiram da preocupação em enquadrar num tipo de patologia o autor do ato anti-social.
O psiquiatra positivista Cesare Lombroso, conhecido pelos estudos que desenvolveu sobre antropologia criminal (1876), defendia a idéia do criminoso nato. Segundo ele, através da análise das características somáticas seria possível determinar a propensão de um indivíduo voltar-se para o crime.
A partir dos trabalhos de Enrico Ferri, final do século XIX, a criminologia voltou seu interesse para a personalidade do indivíduo. Ferri centrou a atenção da criminologia positivista na realidade sócio-psicossomática do criminoso.
No decorrer do século XX, cresceu a tendência em se valorizar a análise sócio-psicodinâmica do crime. Temas psíquicos como culpabilidade, autopunição, Édipo, castração e pulsão de morte impulsionaram análises criminogênicas em torno da psicodinâmica inconsciente, e essa forma de compreensão assumiu importância cada vez maior no âmbito da criminologia.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Passagem ao ato

Na passagem ao ato, o sujeito realiza o desmontar de uma cena. E ao postar-se fora dessa cena, excluído, o sujeito se identifica de forma absoluta com o objeto “a”.
Em Freud, essa identificação nos aproxima da perda do objeto de amor que se faz presente na melancolia. Momento de passagem da perda do objeto para a perda do eu.
O suicídio do melancólico serve para ilustrar o absoluto que atinge essa identificação, instante da passagem ao ato. Na identificação - do sujeito com o objeto - que se produz na passagem ao ato, a ação do sujeito é ir-se com o objeto. Não é mais do sentimento de exclusão que se trata.
O sujeito produz uma ação na qual ele se exclui inteiramente, com todo seu corpo. Ao sujeito não mais falta apenas uma parte. Ele mesmo é a parte que falta.
O melancólico busca, no suicídio, a sua reconexão com o objeto. Para produzir esse resto não especularizável, que é o objeto “a”, o sujeito se faz, ele mesmo, resto.
O acting out, ao contrário, expressa a montagem de uma cena; apela para uma resposta; propõe um enquadre diferente. Trata-se do desenvolvimento das estratégias do sujeito com o significante.