Marco
permaneceria custodiado num quartel do batalhão da polícia militar
durante três meses, para contemplar a medida de privação de
liberdade, quando seria feita outra reavaliação.
A
audiência, que determinou o cumprimento da medida de privação de
liberdade no quartel, foi realizada por uma juíza, substituta do
juiz titular.
Eu
estava lá, quando Marco entrou escoltado por dois jovens soldados da
polícia militar. Armados, cada qual, com um fuzil. Os policiais
permaneceram na audiência, em pé, na posição de guarda.
Chamou-me
a atenção a forma como um deles sustentava a arma na posição
vertical, e o cano encostava, justo, na ponta do seu nariz. Era
cômico e inquietante ver o policial empunhar a arma daquela maneira.
A
cena suscitava aflição e o policial nem se dava conta do absurdo da
situação. Foi preciso que a juíza chamasse a atenção do rapaz.
Interrogou-o se não temia um acidente, ao manter-se naquela postura
incorreta e perigosa para a sua própria segurança, portando a arma
com tamanha negligência.
Nessa
audiência, ficou determinado que a justiça acompanharia o caso
durante o tempo em que Marco estivesse aprisionado no quartel.
Fui
novamente convocada a intervir. Era a regra. O mesmo profissional
dava prosseguimento ao estudo do caso.
Eu
teria que entrevistá-lo lá no batalhão. Passou-me pela cabeça o
despreparo do jovem policial na audiência, e pensei no incômodo da
tarefa que me cabia desempenhar.
A
primeira providência, minha, foi estabelecer contato com o cabo
encarregado da custódia de Marco.
No
batalhão, eles se preocuparam em me mostrar como Marco estava bem
instalado.
Marquei
uma entrevista com o comandante.
O
oficial me pareceu cordial, satisfeito com a presença de alguém da
justiça.
Contou-me,
Marco recebia muitas visitas de familiares e amigos. Falou, também,
sobre os presentes que chegavam todos os dias.
O
alojamento onde instalaram Marco estava montado: televisão, vídeo,
som. Os eletrônicos chegavam embalados em caixas de fábrica,
acompanhados de nota fiscal e tudo.
O
oficial me contava essas coisas como se quisesse minha opinião.
Expressou a dele primeiro. Achava que os objetos haviam sido mandados
pelo tráfico. Perguntei-lhe então, por que a entrega dos presentes
era permitida.
Retrucou,
foi ríspido, disse, por fim, que só permitia a entrega porque os
objetos chegavam documentados, com nota fiscal.
A
minha observação o havia irritado. Claro. Reagia à minha fala
precipitada.
Daí
em diante, ele ficou defensivo. Queria saber por que deveria se
responsabilizar pela fiscalização dos objetos, uma vez que prestava
um grande favor ao estado, custodiando o rapaz. Lembrou-me da
ilegalidade que significava a permanência de um jovem menor de
dezoito anos nas dependências de um quartel militar.
O
jovem não devia ser acompanhado por um educador? Perguntou-me
irritado, cobrando a natureza socioeducativa da medida.
O
que o oficial não sabia era que eu concordava com sua apreciação
crítica. O aspecto socioeducativo
da medida judicial constitui uma das farsas do nosso teatro social.
Tentei
dizer-lhe, talvez fosse o caso de levar essas ponderações ao
conhecimento do juiz para que providências fossem tomadas.
Finalizamos
com o acerto sobre a regularidade semanal das minhas visitas.
Frequentei
aquele ambiente durante os três meses da medida judicial. Nas
primeiras semanas, o cabo cedeu sua sala para as entrevistas.
O
local não era apropriado nem confortável. A sala, bem pequena,
tinha o básico: mesa, cadeira e um pequeno sofá. E um enorme
calendário, cheio de fotos de mulheres, dessas que sonham em posar
para a Playboy,
completava a decoração da sala.
Mas,
o que me preocupava, mesmo, era o vidro espelhado que dava para a
sala ao lado. Ou seja, a sala cedida para as entrevistas era aquela
usada para reconhecimento de supostos agressores.
Nesse
campo de atuação, trabalha-se com o que se dispõe em termos da
realidade imediata. Ultrapassar essas dificuldades faz parte do
contexto técnico em que se desenrola o exercício profissional.
O
certo é que obstáculos inesperados sempre se colocam no meio do
caminho – entre aquele que atende e quem é atendido.
Às
vezes, o próprio entrevistado se transforma em colaborador
importante para o profissional driblar as dificuldades e concretizar
a entrevista. Não é raro acontecer.
A
situação mais delicada que vivi no meu trabalho, foi nesse estudo
que realizei no quartel.
Eu
já havia conseguido instituir uma rotina, ainda que rudimentar. As
entrevistas tinham dia e horário preestabelecidos.
Ia
na viatura oficial, que ficava me aguardando no pátio até o término
da tarefa.
Os
soldados que permaneciam na entrada do quartel já nos identificavam,
a mim e o motorista, pela viatura oficial. Não exigiam maiores
formalidades. Eu estava familiarizada com o caminho que percorria no
quartel. O motorista me deixava em frente à portaria do prédio.
Certo
dia, um soldado, me interpelou à entrada do prédio. Imaginei que
precisasse me identificar. Disse-lhe a razão de minha visita e me
movimentei em direção à porta.
O
soldado empunhou o fuzil, engatilhou a arma e ordenou que eu parasse.
Identifiquei-me
novamente, dessa vez apresentando minha carteira funcional e falei
que cumpria uma determinação judicial.
Meu
argumento não ajudou. Muito irritado, o soldado nem desarmou o
fuzil. Ao contrário, disse-me: Não
se atreva a subir, eu vou atirar. Eu
custava a acreditar no que ouvia. Achei aquilo uma brincadeira de mau
gosto. Até que Marco chegou correndo para desfazer o impasse.
Dirigiu-se ao soldado: Deixa
a minha tia, ela veio me entrevistar.
Foi uma surpresa o aparecimento dele. O comum era ir escoltado até a
sala da entrevista.
Perguntei
o que fazia ali, naquele momento. Ele respondeu que estava se
exercitando no pátio, quando me viu e percebeu a minha dificuldade
com o soldado.
Subimos.
Encontrei o cabo e reclamei do mau comportamento do soldado. Relatei
o que havia acontecido. O cabo retrucou dizendo que eu não levasse a
sério, pois o rapaz não regulava muito bem da cabeça.
Sua
resposta aumentou, ainda mais, minha apreensão.
Perguntei
se era permitido àquele soldado deixar o quartel para patrulhar as
ruas da cidade. O cabo afirmou que sim, pois patrulhar as ruas era
uma rotina que todos os soldados precisavam cumprir.
O
cabo seria capaz de avaliar a dimensão da negligência que sua fala
revelava?
Tratava-se
de uma situação muito grave: um soldado sem equilíbrio mental,
empunhando uma arma, patrulhando as ruas do Rio, portando a
autoridade impressa na insígnia da corporação policial.
Na
semana seguinte, fui informada de que a entrevista mudaria de local.
Seria feita em outro pavilhão.
Nesse
dia, Marco me contou, o soldado insolente, estava preso,
ali mesmo naquele quartel, pois fora pego em flagrante, praticando extorsão contra um posto de gasolina. A fala de Marco prosseguiu, trazendo à tona
uma sequência de outras associações sobre o mau proceder da
polícia.
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