segunda-feira, 8 de agosto de 2011

A reunião

A reunião do Conselho Maior avançava noite adentro. Seguia arrastada por entre as delongas das prestações de contas, quando o assunto marginal se insurgiu.

Somente os desavisados foram tomados de surpresa com a novidade que se anunciava: os novos queriam abrir o cofre. Fazia algum tempo essa história de abrir o cofre corria à boca pequena. Até que, nesse dia, o assunto veio à tona. Como seria agora possível contornar a evidência dessa questão?

Existia em Extima, naqueles dias, um grupo de jovens narradores sedentos por modificações. Eleonora, destemida, tomou a liderança do grupo. Já havia feito seu nome ao se revelar excelente narradora.

Era uma mulher atraente, simpática, inteligente, que sabia atrair a atenção de todos com seu jeito de falar um tanto teatral. Tinha o dom da palavra. Era capaz de passar verdade mesmo na mais fantasiosa das histórias, tão segura se expressava. Revestia sua fala com tal fina camada de ironia, que coloria de provisória toda a verdade que dizia. Aspecto dramático que tornava reticentes suas histórias. Como se as sentenças fossem contaminadas com outra interpretação.

Eleonora implicava com o aspecto antiquado do Teatro da Colina que não passava por uma reforma há muitos anos. Queria modernizá-lo. Essa era a sua bandeira e, com ela, angariava a simpatia de seus contemporâneos.

Naquela noite, Eleonora apegava sua fala a um ponto: o cofre. Falava alto e em bom tom sobre sua intenção de abri-lo, e se justificava dizendo que não era somente sua vontade que defendia, mas de todo o grupo que liderava. Expressava-se aguerrida:

_ Que importância pode haver abrir-se um cofre? Cofres são abertos todos os dias. Centenas deles...

Mas ela mesma sabia que esta não era uma ação corriqueira, porque o cofre se mantivera fechado por sessenta anos. Este pelo menos era o tempo que alguns estimavam.

_ Por que o cofre ficou fechado durante tanto tempo? - insistia Eleonora em sua impertinência.

_ Sessenta anos? Que marco estabelece essa contagem? Não poderia ter sido mais ou menos anos? Esse tempo foi arbitrado, ou alguém aqui sabe dizer o tempo preciso que o cofre está fechado? Sabem o que isto significa? Significa que por vinte e um mil e novecentos dias ninguém sentiu necessidade de mexer no cofre; que durante quinhentas e vinte e cinco mil e seiscentas horas ele permanece intocado.

Ninguém sabia dizer ao certo o tempo que o cofre estava fechado. Talvez tenha sido a imprecisão dessa estimativa que o tenha convertido em um tempo incomensurável. Medida desmedida que ainda mais despertava o interesse dos novos sobre o que se guardava tão bem guardado no interior daquela caixa forte.

O cofre fechado mantinha acesa a chama da curiosidade, representava a possibilidade de novas descobertas, vivificava a esperança de que perguntas ancestrais pudessem um dia ser respondidas. Talvez por isto, quando eles se reuniam se perguntavam sobre o que os antigos teriam deixado intocado no cofre.

Perguntas sem resposta eram lançadas como quimeras ao acaso. Nem se sabia ao certo se elas precisavam mesmo ser respondidas. Talvez fosse melhor preservar o cofre fechado. Alguns comentavam como era perigoso falar sobre ele. Era compreensível que temessem evocá-lo. Uma vez aberto, o cofre manteria o mesmo vigor desse estigma? Por conta desse tabu, era pôr-se em risco se aproximar do assunto. Mas, que riscos um velho cofre como aquele poderia encerrar? A vida não envolve riscos? O cofre seria tal como a vida. A vida que pulsa no íntimo do cofre. No seu coração, o segredo da vida. Para que desvendar os mistérios da vida?

Pelo menos na reunião daquela noite, malgrado os esforços de Eleonora, não havia disposição para fazer do cofre um alvo. Era uma discussão fora de lugar que não fazia parte da pauta. Estava claro que Eleonora precipitara algo indesejado. Quando o assunto veio à baila naquele momento, emergiu como uma queixa. Uma chatura que arde como um calo. Quem dá atenção a dor de um calo? Sequer é uma dor respeitável ou fatal que ponha em risco o continuar das coisas. A falta de movimento da reunião se justificava. Não havia argumentos favoráveis ou desfavoráveis, nem expressões de surpresa ou de indignação para condecorar o assunto. Nada foi dito. E isso, esse naco de nada, temperou o ambiente. Foi quando algo escapou de um canto da sala, partindo de alguém que, num fio de voz, disse:

_ Que inércia! Essa súbita expressão ecoou no silêncio daquele instante. E envergonhou-se de sua existência incontida, como se não devesse ter outro lugar, senão no fundo do pensamento. A que situação se referia a expressão que se desprendia inesperadamente quase como um soluço? Diria respeito ao fato do cofre estar fechado durante sessenta anos ou ao fato do tema não suscitar interesse? No corpo daquele assunto havia um quê de ridículo e dramático que se entrelaçavam. Porque o cofre, sua existência indubitável (uma caixa metálica com cerca de 80 centímetros de altura por 60 de profundidade), não tinha como ser ignorado.

Para liberar os presentes do incômodo que o assunto gerou, o Conselho se apressou em deliberar uma data para que se realizassem, com liberdade, discussões sobre a abertura ou não do cofre.

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