quarta-feira, 20 de julho de 2011

No princípio, era a escuta

Tudo começou com um grupo de anciãos que se reunia regularmente, às quartas-feiras, em longos serões noturnos para contar, uns aos outros, histórias verídicas ou inventadas que se compraziam em colecionar. Naquele tempo, eles não podiam imaginar outras viagens, senão as que realizavam através das histórias que narravam. Esses encontros, que se repetiam há incontáveis anos, foram se tornando cada vez mais conhecidos e apreciados. Tomaram força, ganharam o mundo, e se tornaram a tradição mais respeitada em Extima.

No princípio, era a escuta. Assim era a vida naquele lugar. O laço que existia entre eles se estreitava no deslizar das ondas sonoras entre aquele que relatava e os outros que o ouviam. O simples ato hospitaleiro da escuta, a disponibilidade para ouvir, era considerado um bem precioso. Por conta dessa lendária transmissão oral das histórias, muitos forasteiros procuravam o lugarejo em busca desse tipo de raridade, dessa riqueza que Extima podia oferecer. Foi quando os anciãos, vendo o interesse que suas histórias despertavam, começaram a acreditar cada vez mais na importância dos encontros que realizavam. Resolveram então escrever as histórias que contavam para deixá-las como legado aos seus descendentes. E, assim, a leitura das histórias fora também se tornando ao longo dos anos uma transmissão tão prazerosa e estimada entre eles.

Para coroar a prosperidade em que viviam, os cidadãos do povoado se reuniram e construíram uma sede, que foi plantada no topo da mais alta colina. E, por causa disso, fora batizada de Teatro da Colina. Apesar da pompa do nome, tratava-se de um prédio modesto, mas que oferecia uma vista privilegiada de toda a região. Não possuía mais que cinco cômodos: a secretaria, o salão nobre, a biblioteca, a cozinha e o banheiro. Contudo, como um templo, enobrecia a existência da gente do povoado. Era a acrópole de Extima. Acidália foi levada para cuidar de tudo, da limpeza, da contabilidade, do cofre e do cafezinho. Dizem que ela fora pega a laço ainda menina nas matas além Extima e, desde então, trabalhava na vila servindo aos anciãos, que a ela confiavam até seus contos inéditos.

Os anciãos se deliciavam com o sabor de suas histórias. Ficavam muito orgulhosos ao constatar que elas despertavam o interesse de um público que só crescia. Os ouvintes, tanto mais gostavam das histórias quanto mais se achavam nelas, porque iam ao encontro de si mesmos quando as ouviam. Acreditavam que as histórias, como uma chave, lhes desvelariam porções de mistérios: os seus, e os da vida. Quanto maior o valor que o público atribuía às histórias, mais cheios de si os anciãos se sentiam. Verdade que existiam diferenças entre as histórias, de gênero e estilo, que dividiam o interesse dos extimenses, e povoavam suas mentes com o fervor que devotavam a essas pequenas diferenças. Suas histórias eram o seu reino; o seu mundo. Por isto era preciso defendê-las armados com a robustez da paixão. Porque as histórias haviam se tornado para eles nada menos que o sentido da vida.

E, como nas histórias de cavalarias, fazer crescer o próprio reino implica algumas vezes a conquista de outros. Era preciso impedir que aventureiros, invasores, saqueadores pudessem ameaçar a integridade de cada domínio. Em meio ao jogo competitivo onde se media a estatura dos territórios, cada jogador precisava zelar pelo seu, mesmo que para isso fosse preciso atacar o do adversário. Com cautela, para não acender no outro a rivalidade ancestral que reside num recanto inexplorado da alma. Porque, como acontece com o rio, ela pode transbordar e revirar de ponta cabeça até o mais cândido dos anciãos. Mas Extima encontrou o seu jeito de sobreviver aos rompantes acidentais dessa força indomável que vez por outra ainda a ameaça.

Um comentário:

No país do pergaminho disse...

que lindo Maruza
Extima me lembra Extinta
uma nostalgia de algo bom que se foi, e que vc quer reviver.