Marco
pulou o muro da João Luiz Alves, correu, pegou um ônibus até uma favela próxima
e foi direto para a boca de fumo.
Não conhecia ninguém naquele
morro.
Ele se apresentou,
valendo-se da fama de que se orgulhava.
Foi muito bem recebido pela
confraria, que lhe garantiu:
- Sinta-se em casa.
Ofereceram-lhe comida e
cocaína. Mas Marco nada aceitou. Não podia dar
bobeira num morro que não era dele.
A sobrevivência depende desse estado de alerta contra a autofagia que permeia
as relações, mesmo as de solidariedade, entre os irmãos.
Pediu apenas dinheiro e uma
muda de roupa.
Pegou um taxi e foi para o seu morro, onde se sentia seguro.
Lá, uma surpresa o
aguardava.
Foi recebido com pompas de anjo 45.
Marco também gostava de
acreditar que era protetor dos fracos e
dos oprimidos. Tentava seguir o ideário que continha receitas de como devia
agir um bom bandido: aquele que
procura não entrar em conflito com a comunidade, busca sanear as necessidades; distribui
aos pobres o que usurpa dos ricos.
Foi organizada uma festa em
sua homenagem. Uma festança de arromba.
O que implica dizer que todos os preparativos foram marcados pelo excesso.
O ambiente exalava
abundância.
O som altíssimo da música funk dominava, como um chicote sonoro
cortava o vento e presidia o ar, propagava-se muito além daquelas fronteiras,
lutava com outros sons pela cidade até se render ao último limite.
Mas, na comunidade, o funk se viu abatido, amortecido pela
queima colossal dos fogos de artifício, que lançavam ao espaço uma profusão de
cores, enquanto a força explosiva amordaçava o som rítmico e grave que pulsava
nos enormes alto-falantes.
Enciumados, os fuzis emitiam
gemidos mortíferos, marcavam presença, gritavam à atmosfera a certeza de se
saberem invencíveis.
A festa varou noites, entrou
dias, enquanto houvesse força física a ser exaurida. Parceiros de comando que dominavam outros morros
foram convidados para compartilhar a ocasião festiva.
A primeira noite da grande
comemoração reuniu toda a galera no baile
para a comunidade. Neste, não há tolerância com brigas. É um baile pacífico, de
confraternização, em que não se misturam galeras.
Nos bailes de clube, ao
contrário, os frequentadores sabem que se as galeras se misturarem irão guerrear. Neste, o motor da diversão não
é tanto a música, a dança ou a paquera, mas o confronto que poderá ocorrer entre
galeras e, entre essas e a polícia.
Muitas vezes, a movimentação dos bailes de clube serve aos propósitos
beligerantes das diferentes galeras e
da polícia, para encobrir atos de vingança, para armar emboscadas contra os
inimigos.
O baile de comunidade é
diferente, surge como uma doação do dono
do morro. Por isto, cabe-lhe ditar as regras. Pode-se até dizer que se
constitui como um baile ideológico. A organização conduz os participantes a
saudarem os líderes do movimento, que
são, afinal, os promotores do evento. Não deixa de ser um investimento de
marketing, uma promoção formadora de opinião como qualquer outra.
O tráfico se assemelha a uma
irmandade rudimentar em sua estrutura organizativa, gira em torno da amizade,
da troca de favores; um mercado entre
amigos, com regras a serem respeitadas, que se utiliza dos serviços da galera que forma. Tipo de ordem,
cujas regularidades, por vezes, nos parecem mal delineadas, quase apagadas;
outras, grotescamente cristalizadas.
Os limites desse campo são frouxos.
Não apresenta a delimitação visível de uma instituição, de uma organização burocratizada,
com estratégias definidas, metas a serem alcançadas nem a hierarquia férrea da máfia.
Ele se inspira na cultura militar, com forte presença nos adereços, nas roupas,
nas armas e na linguagem.
Na força contagiante do baile, o êxtase
hipnótico da galera atinge seu máximo
com o aparecimento rápido, apocalíptico, das figuras centrais do comando, que oferecem aos olhos imaturos
e sedentos, os signos que ostentam a exacerbação desse tipo de poder: fuzis
AR-15, K-47, pistolas e granadas.
No
auge da euforia, os líderes do movimento
aparecem exibindo correntes e os medalhões dourados. Instante em que incorporam
personagens lendários: bandoleiros, cuja vida perigosa desafia a força e a
astúcia de seus adversários - do crime e da polícia. Postam-se em cena como
formas petrificadas: homens-ação, imagem pujante que compartilham com a galera atiçada.
Certa feita um jovem me
contou, com exaltação, sua participação num baile, cuja maior atração fora a
aparição de um líder convidado, que se apresentara com o corpo coberto de
granadas.
São figuras como essas que
adquirem para os jovens frequentadores conotação lendária, pelas histórias que
rondam suas vidas aventureiras.
Erguem idolatrias, acalantam
ilusões e embalam sonhos de onipotência.
Marco firmou presença
triunfal no baile com sua indumentária arrojada. Arrumou-se a caráter para seu
momento de glória: calça com estampa tipo camuflagem;
duas cartucheiras cruzadas adornavam-lhe o peito nu, deixando à mostra a grossa
corrente de ouro.
Do auge da fama, no topo do
morro, Marco fez ecoar em sequências rítmicas algumas rajadas do fuzil AR-15.
Precisava despertar a atenção
dos participantes do baile, que aguardavam por esse instante culminante.
Momento em que os jovens,
ensandecidos, no ritmo do som, bradavam o nome do comando que dominava o morro. Apologia que dava o tom à festa. Era
chegada a hora do clímax. A hora de sua aparição.
Os olhares se voltaram
extasiados. Reconheciam-no:
_ Olha, é o Ratinho!
Era admirado, no cerne de
seu magnético ser-tabu.
Era o superstar que dominava aquela noite.
Aclamado pela galera, era feito modelo; tornado mito.
A liderança mais forte o apresentava como exemplar.
Personificava o
bandido-herói.
Era chegada a hora de
anunciar sua maior recompensa: a promoção pela qual ansiava, depois de tantos
feitos heroicos.
Marco assumiu a gerência da boca.
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