segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

O sonho de Abelardo

A discussão tomava rumos inesperados. Mais pareciam crianças que se desorientam em meio a disputas por brinquedos, que narradores experientes. Camilo pediu um tempo:

¬_ Vocês estão dominando demais. Vamos parar com esse bate e volta. Outras pessoas também querem participar. Abelardo se dirige a todos.

_ Desculpe se eu não me contenho e insisto em falar, mas é que tive um sonho na noite passada... Eu preciso contá-lo. A platéia acena com gestos de aceitação. Abelardo então contou o sonho:

_ Sonhei que eu pegava alguns objetos, um bonequinho velho de madeira que meu avô tinha me dado, uma moeda tão grande como eu nunca vi outra igual, uns recortes de jornal, e outras coisas que não sei dizer o que eram. Eu fechei todas essas coisas dentro de uma lata, e tentava enterrá-la. Não sei bem dizer onde, acho que era o quintal dos meus pais... Depois, o que consigo lembrar é que eu estava agitado, e cavava a terra apressadamente com as próprias mãos, as unhas negras. Da terra, extraí um baú com uma porção de papéis velhos, amarelados. Peguei os papéis, eu tentava ler o que estava escrito. Não conseguia entender nada. Agoniado, olhava aqueles papéis como se fossem hieróglifos. Haviam partes apagadas. Páginas inteiras que a tinta estava esmaecida. Em outras, os trechos eram incompreensíveis, como se tivessem sido escritos em uma língua que eu não conhecia. Pedi ajuda a alguém, que não sei quem... parecia um professor, um especialista, não sei, para ver se ele conseguia traduzir. Ele falava alguma coisa que eu não conseguia ouvir, pois ao mesmo tempo havia uma música que tocava alto e encobria o que ele dizia. Eu desligava a música, e tudo voltava a se repetir. Ele falava, a música tocava; ou, o contrário, a música tocava, ele falava. Mas de repente tudo me pareceu claro como dia. Eu entendi o que ele queria me dizer. Só que não sei mais o que era. Esqueci. Porque, em meio ao desassossego e a excitação que sentia, acordei com a voz irritada de minha mulher que dizia: ‘_ Desliga de uma vez a porcaria desse relógio.’ Aí eu entendi que a música que eu ouvia no sonho, e que me parecia tão melodiosa, era o som do alarme do relógio que disparava. Eu automaticamente o desligava, mas não conseguia desligar o mecanismo que acionava o alarme. E ele voltava a tocar minutos depois com maior insistência. Depois, no banho, comecei a lembrar do sonho e a pensar na reunião que a gente teria hoje à noite, na decisão que a gente precisava tomar. Talvez tenha ido dormir um pouco preocupado com isso. Mas para mim, o sonho trouxe a seguinte revelação: O cofre é uma cápsula do tempo. A nossa cápsula do tempo. Só que não adianta agora querermos conhecer seu conteúdo.

_ O sonho de Abelardo me leva a pensar sobre a arte da decifração. Cada pessoa carrega consigo um cofre onde guarda e protege seus segredos. Só que algumas perdem a chave de acesso, ou esquecem o segredo. Não é fácil ter acesso ao que se quer fechado. A abertura do cofre é sempre uma ação muito delicada. O cofre fechado instiga. O cofre aberto revela o que se queria secreto e, nesse ato, esvazia todo o seu sentido, disse Inácio.

_ Se pensarmos nas aventuras que os homens são capazes de se lançar em busca de um cofre fechado... Onde pode levá-los apenas a suposição de tesouros escondidos... O cofre fechado aguça a ambição e proclama os riscos das disputas sem fim; incita lutas fatais entre irmãos; justifica ou serve de pretexto para combates bíblicos sangrentos, disse Eleonora. O cofre fechado representava para Eleonora o que permanecia intocado e que precisava ser mexido, desmistificado. E completou sua fala dizendo: _ Vocês não acham que é preciso acabar de vez com as velharias e com as superstições que nos rondam? O cofre está oxidado. Vocês não vêem que ele se degenera a cada dia?

Seria possível em um encontro desatar o novelo das disparidades? O destino do cofre pendia suspenso. O tempo entrava em agonia como o cofre que se paralisara, como que incorporando em seu corpo metálico a atemporalidade da paisagem que cercava a vila. O cofre era o que estancara. E mostrava a todos o feitiço do tempo: o processo de tornar-se aquilo que não se é, perpetuando a repetição e, assim, a agonia que petrifica e sustenta a paralisia.












Nenhum comentário: