segunda-feira, 20 de agosto de 2012

No início... o susto!

Era domingo, eu estava trabalhando, sentia-me envolvida pelas leituras que andava realizando para escrever um projeto que deveria apresentar em breve. Ensaiava colocar as ideias na tela quando o telefone tocou. Era a coordenadora do núcleo de psicologia do qual eu fazia parte. Ela me pedia para realizar o estudo de um caso.

Tentei me esquivar. Falei da dedicação que me estava exigindo escrever o projeto, mas ela contestou dizendo que todos estavam assoberbados. Além do mais o juiz havia pedido que eu assumisse o caso. Tentei questionar trazendo à tona nossas antigas discussões sobre a tarefa impossível de atender às inúmeras demandas dele, cujo estilo dinâmico nos impulsionava a agir em muitas direções.

Não teve jeito, ela foi irredutível:

- Amanhã cedo você vai ao Padre Severino. O estudo deve estar concluído na terça-feira. Ele quer realizar uma audiência imediata.

Na verdade senti muito medo. O que esperavam de mim? Um sentimento arcaico de temor teimava em se apoderar do meu pensamento, povoando minha imaginação com fantasmagorias...

Como seria e como se comportaria a criatura ‘desnaturada’ da qual teria que extrair algo de verossímil sobre sua humanidade?

Duvidei se poderia realizar um estudo em tempo tão exíguo. Mas não ousei negligenciar a determinação. No dia seguinte estava eu, armada com meu medo e minha solidão, a caminho do Instituto.

A diretora me aguardava e logo liberou dois jovens para que pudesse entrevistá-los. Mais tarde chegariam os pais e eu aproveitaria a oportunidade para entrevistá-los também.

Apesar da aparência decadente e precária das instalações, o Instituto mantinha uma estrutura mínima: as oficinas, a escola, os atendimentos, tudo funcionava em estado de espera... Definições políticas que nunca enfim chegariam. Eu pensava que aquela realidade penosa, a qual já estava acostumada, era o fundo do poço. Não podia imaginar o quanto ainda ela iria descer...

Naquela época, eu realizava uma pesquisa sobre a reincidência infracional. Investigava as implicações psíquicas nos atos de repetição. Fazia pouco mais de um ano que abrira o campo de pesquisa nas escolas destinadas a jovens infratores. O que me deixava muito atenta aos acontecimentos que se desenrolavam no cotidiano dessas escolas.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Apresentação do tema

Realizarei uma série de postagens, todas referidas a um caso institucional, que ilustra o que aqui chamo ‘clínica da violência’, no qual atuei e sobre o qual me detive em estudo quando trabalhei na Segunda Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

A solução

Muita água rolou ainda naquela noite.

Não se chegava a nenhuma conclusão. Até que uma voz soou macia, trazendo como oferenda outra possibilidade ainda não pensada. Talvez agora fosse a hora de desfazer o impasse.

A voz era de Margarida, a responsável pela biblioteca. Ela, em geral, se mantinha calada nas reuniões. Mas nessa noite falou. Estava um tanto aflita com a inevitável exposição pública que o ato de falar exige:

_ Acho que Eleonora tem toda razão. Contudo não sabemos o que está guardado no cofre. Cada um tem uma idéia diferente. Nós já avançamos muito no tempo. Então acho que por isto ou por aquilo é melhor mantermos o cofre fechado. Lembram do sótão? Por que não colocamos o cofre fechado lá, enquanto não temos certeza de que queremos abri-lo.

_ Como ninguém lembrou antes? O sótão. Sim, Margarida apresentou uma saída que merece ser considerada, disse Laurindo. E, brincando completou: _ Não é a toa que você se dedica à biblioteca. Sabe que a palavra biblioteca apareceu na Grécia com o significado de cofre dos livros?

Eles se lembraram de um lugar inexplorado no Teatro da Colina que também quedava esquecido. Na verdade nem chegava a ser um sótão.

Havia no teto da biblioteca um disfarçado alçapão que dava acesso a um espaço morto, um cômodo tão diminuto, mas repleto de coisas velhas: latas de tinta, pedaços de madeira, resquícios da construção do Teatro. Ele fora mesmo pensado como um quartinho para guardar entulhos, velharias. Por que o cofre não poderia ficar ali recluso, em sua recusa de abrir-se, preservando nessa nova clausura, seus segredos? Sairia da cozinha, da vista de todos, e abriria espaço para a modernização que os novos tanto queriam.

Diante dessa descoberta a abertura do cofre foi adiada. Naquela noite se resolveu seu destino. Ninguém podia garantir se a hora de abri-lo havia chegado...

O cofre foi tirado da cozinha e levado para o pequenino sótão, onde permaneceu por um tempo indefinido. Até que um dia, ele e sótão, foram novamente esquecidos. E o cofre se tornou a cápsula do tempo de Extima.

Quando Extima estiver também completamente esquecida, e o Teatro da Colina não for mais que uma ruína, vestígios de lugar nenhum, por entre matos que se alastram dominando o teatro, o cofre cápsula ainda sobreviverá fechado, intocado, em meio a restos de cimento e pedra, a céu aberto.

Um dia ele será encontrado. Solto e flutuante no inapreensível tempo, e será resgatado por curiosos visitantes que o arrombarão, desvendando a força seus segredos, na esperança de encontrar evidências históricas que possam contar-lhes sobre a forma de viver dos antigos habitantes daquele remoto e estranho lugarejo.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

O sonho de Abelardo

A discussão tomava rumos inesperados. Mais pareciam crianças que se desorientam em meio a disputas por brinquedos, que narradores experientes. Camilo pediu um tempo:

¬_ Vocês estão dominando demais. Vamos parar com esse bate e volta. Outras pessoas também querem participar. Abelardo se dirige a todos.

_ Desculpe se eu não me contenho e insisto em falar, mas é que tive um sonho na noite passada... Eu preciso contá-lo. A platéia acena com gestos de aceitação. Abelardo então contou o sonho:

_ Sonhei que eu pegava alguns objetos, um bonequinho velho de madeira que meu avô tinha me dado, uma moeda tão grande como eu nunca vi outra igual, uns recortes de jornal, e outras coisas que não sei dizer o que eram. Eu fechei todas essas coisas dentro de uma lata, e tentava enterrá-la. Não sei bem dizer onde, acho que era o quintal dos meus pais... Depois, o que consigo lembrar é que eu estava agitado, e cavava a terra apressadamente com as próprias mãos, as unhas negras. Da terra, extraí um baú com uma porção de papéis velhos, amarelados. Peguei os papéis, eu tentava ler o que estava escrito. Não conseguia entender nada. Agoniado, olhava aqueles papéis como se fossem hieróglifos. Haviam partes apagadas. Páginas inteiras que a tinta estava esmaecida. Em outras, os trechos eram incompreensíveis, como se tivessem sido escritos em uma língua que eu não conhecia. Pedi ajuda a alguém, que não sei quem... parecia um professor, um especialista, não sei, para ver se ele conseguia traduzir. Ele falava alguma coisa que eu não conseguia ouvir, pois ao mesmo tempo havia uma música que tocava alto e encobria o que ele dizia. Eu desligava a música, e tudo voltava a se repetir. Ele falava, a música tocava; ou, o contrário, a música tocava, ele falava. Mas de repente tudo me pareceu claro como dia. Eu entendi o que ele queria me dizer. Só que não sei mais o que era. Esqueci. Porque, em meio ao desassossego e a excitação que sentia, acordei com a voz irritada de minha mulher que dizia: ‘_ Desliga de uma vez a porcaria desse relógio.’ Aí eu entendi que a música que eu ouvia no sonho, e que me parecia tão melodiosa, era o som do alarme do relógio que disparava. Eu automaticamente o desligava, mas não conseguia desligar o mecanismo que acionava o alarme. E ele voltava a tocar minutos depois com maior insistência. Depois, no banho, comecei a lembrar do sonho e a pensar na reunião que a gente teria hoje à noite, na decisão que a gente precisava tomar. Talvez tenha ido dormir um pouco preocupado com isso. Mas para mim, o sonho trouxe a seguinte revelação: O cofre é uma cápsula do tempo. A nossa cápsula do tempo. Só que não adianta agora querermos conhecer seu conteúdo.

_ O sonho de Abelardo me leva a pensar sobre a arte da decifração. Cada pessoa carrega consigo um cofre onde guarda e protege seus segredos. Só que algumas perdem a chave de acesso, ou esquecem o segredo. Não é fácil ter acesso ao que se quer fechado. A abertura do cofre é sempre uma ação muito delicada. O cofre fechado instiga. O cofre aberto revela o que se queria secreto e, nesse ato, esvazia todo o seu sentido, disse Inácio.

_ Se pensarmos nas aventuras que os homens são capazes de se lançar em busca de um cofre fechado... Onde pode levá-los apenas a suposição de tesouros escondidos... O cofre fechado aguça a ambição e proclama os riscos das disputas sem fim; incita lutas fatais entre irmãos; justifica ou serve de pretexto para combates bíblicos sangrentos, disse Eleonora. O cofre fechado representava para Eleonora o que permanecia intocado e que precisava ser mexido, desmistificado. E completou sua fala dizendo: _ Vocês não acham que é preciso acabar de vez com as velharias e com as superstições que nos rondam? O cofre está oxidado. Vocês não vêem que ele se degenera a cada dia?

Seria possível em um encontro desatar o novelo das disparidades? O destino do cofre pendia suspenso. O tempo entrava em agonia como o cofre que se paralisara, como que incorporando em seu corpo metálico a atemporalidade da paisagem que cercava a vila. O cofre era o que estancara. E mostrava a todos o feitiço do tempo: o processo de tornar-se aquilo que não se é, perpetuando a repetição e, assim, a agonia que petrifica e sustenta a paralisia.












segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Falta ou excesso de liberdade?

_ Todos esses problemas sempre existiram. E retornam de tempos em tempos para nos assombrar. São produtos dos excessos. Não só de liberdade, mas também do excesso de falta de liberdade. O marketing usado pelo discurso nazista se baseou na necessidade de conter a onda de liberdade que dominava o mundo das idéias e dos costumes. O que foi a estética e a higienização que propagou, senão formas ideais para produzir um novo mundo que atendesse ao homem ariano, o homem ideal? O plano de execução para varrer do planeta toda semente que pudesse aflorar qualquer diferença gerou o descrédito na autoridade nazista, que se queria absoluta, gerou a maior crise ética de todos os tempos e gerou total falta de limites no plano político. Isto era uma realidade no tempo em que Freud escreveu O mal estar na cultura. Todos os sistemas totalitários conduziram a excessos que surtiram efeitos desastrosos. Efeitos semelhantes aos que hoje se atribui ao excesso de liberalidade, disse Eleonora.

O destino do cofre momentaneamente se perdia. Percebendo o risco, Laurindo retornou ao assunto: _ Nós não sabemos o que estamos fazendo quando remexemos desígnios que estão acima de nossos entendimentos. Por isto sou contra a abertura do cofre. Ele é nossa caixa de Pandora. Um cofre fechado vale mais do que um cofre aberto. O que é um cofre aberto senão um baú vazio. Sem fantasias. O que seria de nós sem as sementes que a imaginação pulveriza em nosso solo, fertilizando assim nosso árido dia a dia? O que seria do tesouro que acumulamos ao longo de toda nossa trajetória, tão repleto de preciosas histórias, as quais têm brilhado como estrelas, iluminando-nos com sua luz e aquecendo com sua chama as memoráveis noites de Extima?

Abelardo queria falar. Acenava ansioso por uma oportunidade. Com sua voz doce e claudicante disse: _ Acho... Não estou certo se vocês vão entender... Acho que o cofre é uma cápsula do tempo. Vocês sabem o que é uma cápsula do tempo, não? A cápsula do tempo é como a pedra fundamental que os faraós usavam para transmitir às gerações futuras a paternidade de suas obras. Em geral, cápsulas do tempo são recipientes metálicos, enterrados com objetos representativos de uma época para que gerações seguintes saibam como era a vida na época em que foram enterradas. Não acham que é uma forma de comunicação com o inusitado que mora no futuro? Pois eu acho que o nosso cofre é uma cápsula do tempo que ficou... não enterrada, mas esquecida na cozinha embaixo do fogão. Deve haver dentro dele uma mensagem reveladora! Vocês não ficam curiosos com o que pode haver dentro do cofre?

_ Eu também vou vibrar se encontrarmos dentro do cofre um precioso manuscrito... ou o rascunho de uma revolucionária teoria, falou Eleonora com seu jeito irônico. _ Ou um frasco contendo uma substância com poder de iluminar a verdade escondida na barafunda incognoscível do inconsciente, disse Inácio. Abelardo se empolga: _ Isso! Alguma coisa inovadora. Como... uma história inédita que poderá surpreender o povo de Extima. Porque não? Quem nos garante que não haja dentro dele uma revelação? Só não sei se este é o momento certo para abrirmos o cofre... Será que estamos preparados para a mensagem que ele contém? Será que não estaremos com este ato abortando a comunicação com o futuro? Talvez ainda não sejamos o futuro que os antigos esperavam... e nossa missão seja preservar a cápsula do tempo tal como está para o tempo que ainda está por vir? Prefiro acreditar que o cofre é a nossa coisinha tão bonitinha que o papai passado nos encarregou de conservar.

_ Os antigos costumavam dizer que o futuro a Deus pertence. O que significa que o futuro está muito além da competência dos homens. O homem sempre creditou às divindades o poder de falar sobre o futuro. Por esta razão criou oráculos, poços, cofres, vasos, arcas, sarcófagos para se proteger da ação corrosiva do tempo que tudo deteriora, e para encontrar a sonhada chave da imortalidade que se supõe perdida no futuro, disse Laurindo.

_ Então você acha que somos apenas uma geração intermediária entre o passado e o futuro, e que a nós nada cabe fazer, senão preservar o passado? Disse Eleonora a Abelardo, que perde a calma: _ Não foi bem isso que eu disse. Você está distorcendo. É claro que a gente tem coisas a fazer. Mas o que somos senão o presente? E a nós cabe preservar a mensagem do passado destinada ao futuro. Esta é a missão ética do presente. O presente é a passagem, e nós, viventes deste tempo, os passadores, disse. _ Porque então o papai passado não nos deixou este aviso, ou esta mensagem fora do cofre, explicitando para nós quando ele queria que o cofre fosse aberto? Retrucou Eleonora. _ Se você insiste em saber, acho que este momento não é o tempo certo de abrir o cofre. E isto não é uma coisa que precisa estar determinada em decreto. É para ser intuída, sentida... - falou Abelardo.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Pandora

Com o mito da caixa de Pandora, Laurindo queria alertar sobre perigos que rondavam o ato de abrir o cofre. Acaso ele achava que a vila corria riscos com a abertura do cofre?

_ Isso não é digno de ser levado a sério. Não acredito que ainda hoje existam pessoas que creditem valor a essas invencionices primitivas, disse Eleonora bruscamente.

_ Eu Invejo seu entusiasmo. Verdade. Quando digo isso, refiro-me ao sentido grego da palavra, que quer dizer sopro divino. O entusiasmado vive a exaltação extrema da inspiração divina; traz um deus dentro de si. Você é uma ótima narradora, disso ninguém duvida. Mas tem ainda muito que aprender, retrucou Laurindo.

_ Apenas sigo o meu caminho de filha da narração. Sim. Fiel aprendiz de meu destino. Mas não sou escudeira das tradições, disse Eleonora orgulhosa.

_ A verdade do mito segue a lógica do inconsciente. Todo mito encerra uma intuição compreensiva que não requer provas para ser aceita, interveio Inácio, outro respeitado narrador. Toda vez que tinha oportunidade, Inácio introduzia nos debates conceitos psicanalíticos que devorava em livros especializados. Interessava-o as particularidades que cada situação apresentava, e costumava dizer que queria entender o que movia os homens.

_ Não acham que o vaso de Pandora se assemelha ao psiquismo humano? Pandora, uma semideusa, ambiciona se realizar como mulher de Zeus, tornando-se uma deusa. Deseja realizar-se na plenitude do Olimpo. Eu a imagino como símbolo da pura pulsão que também anseia pela realização através de sua descarga. A esperança é o resto que sobra da eclosão pulsional. Ela permanece presa à borda do vaso, como o representante da pulsão se mantém no limiar do psiquismo. No cofre, na caixa ou, se preferirem, no inconsciente, residem forças pulsionais que ameaçam o eu, simbolizado no mito pelo simples e mortal homem. Quando a caixa é inesperadamente aberta por Pandora - por forças pulsionais irreprimíveis - os malefícios dominam a vida do homem. Os malefícios representam o desprazer que o eu se esforça por evitar, muitas vezes inutilmente, mantendo-se no fogo cruzado da pressão do conflito que está além de seu entendimento. No mito, o homem age movido por forças que o transcendem, desígnios dos deuses. Teme que sua ação possa provocar a ira dos deuses que, a rigor, se vingam impiedosamente. No psiquismo, o eu também teme as represálias do terrível pai, forma que algumas vezes assume o vigoroso supereu. O recalque é tal como a força que mantém bem fechada a tampa da caixa. Funciona como uma barra que assegura ao eu limites que o mantém distante da ameaça da descarga pulsional, evitando assim o desprazer. Não estou seguro se todos vocês têm noção do que seja o recalque. Vou apenas lhes dizer que se trata de um conceito tão importante, que chega a ser considerado por muitos o pilar sobre o qual se sustenta toda a construção da psicanálise. Para início de conversa, o recalque constitui o núcleo original do inconsciente. Este conceito vocês não podem dizer que desconhecem. Porque já falei sobre isso muitas e muitas vezes. O inconsciente, como um saber que não se sabe, remete-nos à idéia de um lugar desconhecido, à outra cena, como... como acontece na história de Alice no país das maravilhas. Pois bem, o recalque designa o ato de fazer recuar alguma coisa, como uma repulsa em admitir algum aspecto penoso da realidade. Por isto diz respeito ao processo de manter no inconsciente tanto idéias quanto representações ligadas às pulsões, cuja realização pode afetar o equilíbrio do funcionamento psíquico. Podemos falar em recalque quando, por exemplo, uma história vivida, uma situação, um pensamento ou algo imaginado não encontra tradução, quer dizer, não pode ser expresso em palavras, e se mantém inacessível, porquanto sua tradução produziria desprazer. Como se o desprazer perturbasse o pensamento e, com isso, emperrasse o processo da tradução, disse Inácio.

_ A caixa de Pandora significa que uma ação pequena e bem-intencionada pode liberar uma avalanche de repercussões negativas. A linguagem mitológica com todos os seus paradoxos nasce da necessidade de se conhecer mais. Lembro aos amigos que na narração mitológica, os significados são muito ampliados e sua redução explicativa pode destruir a compreensão holística do mito. O bom ouvinte é aquele que entra na narrativa sem preconceitos e sem a racionalidade das teorias, para acompanhar o que a história tenta criar. Disse Laurindo dirigindo rápidos olhares a Eleonora e a Inácio. Laurindo mantinha intacta sua crença no mito. Achava que a transcendência temporal dessas histórias resguardava em si o aspecto de universalidade que era a essência da atemporalidade que tanto prezava.

Enquanto isso, nas conversinhas, as dúvidas apareciam e, dissonantes, se multiplicavam: _ Não acha que ele está querendo nos amedrontar, impedir que a gente abra o cofre? _ Não sei não, o cofre fechado pode ser um sinal... merece respeito. _ Se o cofre está fechado durante tanto tempo e ninguém sabe dizer por que isso se deu, é a hora de sabermos o que tem nele.

_ Pandora destampa a ânfora e a civilização inicia uma era de mazelas sem fim. Esse traumático retorno pulsional atinge frontalmente o homem, formatando, seus traumas, sua vida psíquica. Males de diversas ordens aguardam pelo homem no mundo. Em todos os tempos sempre foi assim. Este é o enredo desta história que pode nos ajudar a refletir sobre as mazelas e os traumas dos novos tempos. Se não sofremos mais a ação compressora da severidade normativa, monstro neurotizante da época vitoriana, nem por isso deixamos de fabricar loucuras, neuroses. Estudiosos da cultura nos ajudam a enumerar algumas mazelas, essência dos traumas psíquicos de nossa época. Dentre as mais discutidas estão: a falta de referência, o descrédito na autoridade, o enfraquecimento dos laços comunais, a morte do pai, a crise ética da cultura, a ausência de limites no plano político. Muitos acreditam que elas são efeitos da liberalização excessiva que reina no mundo atual. Isso nos preocupa. Que é feito do homem sem ideais para cultuar? Os ideais são as fronteiras da humanidade do homem – alicerces morais de seu eu. Ideais são as barreiras construtoras da vida coletiva. Sem ideais, o que resta ao homem senão se transformar num joguete nas mãos de suas filhas, deusas de nosso tempo - a ciência e a tecnologia? Estas, suas crias, são indiferentes ao homem. Não lhes importa as crueldades que o homem perpetua no mundo, tampouco lhes sensibiliza, se no caminho árido e escuro que precisa trilhar, ele não se encontra feliz. Fazem do homem um ser alienígena de si; escravo do Outro devorador. Estar aprisionado no tempo presente, sem passado para reverenciar, à espera de um futuro cada vez mais incerto, isto é o que queremos para nossos filhos e netos? Disse Camilo, com sua voz encorpada.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A caixa de Pandora

Laurindo fez menção de voltar a falar. Em seguida a uma rápida pausa para imprimir um tom mais grave a sua fala, disse: _ Eleonora tem feito um trabalho admirável aqui, mas é inexperiente. Não conhece as velhas histórias do mundo. Seria inconseqüente nos deixarmos levar pelo o que ela quer. Acaso não nos recordamos da história de Pandora e dos transtornos que seu ato provocou à vida no início dos tempos? Vou relembrar-lhes a história da caixa de Pandora, caso a tenham esquecido.

Ele tinha especial apego à mitologia. Conhecia os mitos como poucos. Considerava-se um estudioso do assunto, e de fato o era. Gostava da atemporalidade dos mitos. Seu olhar se perdia no passado em busca da explicação que não encontrava no presente para entender o futuro. Era o caráter universal das coisas que na verdade buscava, e tinha sempre na manga uma história mítica para contar. Quanto a isto nunca estava desprevenido. Era previsível que trouxesse um mito para reinar no centro da discussão. Iniciou seu relato, enquanto todos se remexiam em seus lugares em busca de uma posição mais confortável.

_ Pandora, a detentora de todos os dons, foi a primeira mulher que existiu. Eis a origem desta palavra composta por: pan, que traduzo por todo e doron que significa dom. Zeus ordenou a Hefesto, deus das artes, que modelasse uma mulher semelhante às deusas imortais. Hefesto criou então uma belíssima estátua de pedra, clara como a neve. Com um sopro, Atená animou-a com vida e ensinou-lhe a arte da tecelagem, e os outros deuses dotaram-na de todos os encantos. Afrodite deu-lhe a beleza, o desejo indomável que atormenta os sentidos e encantos que são fatais para os homens. Hermes deu-lhe a fala graciosa e encheu seu coração de artimanhas, ardis e astúcia. A história de Pandora nos remete à origem dos tempos, quando a terra, a água e o ar eram um só, e os deuses ainda não haviam interferido para separá-los. Antes que o céu e a terra fossem criados, tudo era Um, o Caos. Coube a Prometeu (aquele que prevê) e seu irmão Epimeteu (aquele que pensa depois, ou tardiamente) povoar a terra. Ambos foram poupados da prisão por não terem lutado contra os deuses nas disputas por territórios. Descendiam da primeira geração dos gigantes destronados por Zeus, os Titãs. Prometeu sabia que nas entranhas da terra dormiam sementes dos céus. Assim, pegou em suas mãos um punhado de terra, molhou-a no rio e obteve argila. Moldou-a carinhosamente até discernir uma imagem que fosse semelhante aos deuses. Assim deu forma ao homem, dotando-o com características boas e más retiradas das almas dos animais que já haviam sido criados por Epimeteu. Atená, deusa da sabedoria, ao ver a imagem semi-animada criada por Prometeu, admirou-a, e insuflou-lhe um espírito, humanizando-a. Mas esse homem humanizado, saído das mãos de Prometeu, ainda assim estava nu, vulnerável, indefeso, sem recursos. Sabedor das carências do homem, Zeus aproveitou-se disso. Voltou-se para a humanidade exigindo honras e sacrifícios em troca de proteção, instigando desconfianças e disputas entre eles. O que fez com que Prometeu intercedesse como advogado em favor das criaturas que havia criado. Ocorreu-lhe a idéia de por à prova o poder divino. Sacrificou um touro e dividiu-o em duas partes. Disse em seguida aos deuses que escolhessem uma parte e a outra caberia aos homens. Mas antes, colocou em um dos montes somente ossos, cobrindo-o com sebo, fazendo-o parecer maior que o outro, onde estava a carne e a pele do touro. Zeus escolheu o monte maior e ao descobrir que fora enganado, vingou-se recusando aos homens o fogo que poderia mantê-los vivos. Privou assim o homem de possuir luz na alma. Sentindo pena dos homens, Prometeu ensinou-lhes a enfrentar a vida diária e a cuidar de suas feridas. Para tanto, roubou uma centelha do fogo celeste e a trouxe a terra. Ao ver o brilho celestial que emanava da terra, Zeus, irado, arquitetou um plano de malefícios. Ordenou a Hefesto que criasse Pandora e a enviasse de presente a Epimeteu, a quem Prometeu havia avisado que não aceitasse nenhum presente dos deuses. Mas encantado com a beleza de Pandora, Epimeteu esqueceu as recomendações do irmão e a aceitou. Só compreendeu o que aconteceu, mais tarde, quando o infortúnio o atingiu. Pandora chegou a terra trazendo em seus braços um grande vaso fechado como presente de casamento a Epimeteu. Ela abre o vaso diante dele, e de dentro, como uma nuvem negra, escapam todas as maldiçoes e pragas. Desgraças que até hoje atormentam a humanidade. Pandora se apressa em fechar a ânfora que, entretanto, já se encontrava vazia. Com exceção da esperança que permaneceu presa junto à borda do vaso. Deste mito nos ficou a expressão caixa de Pandora que se usa em sentido figurado quando se quer dizer que alguma coisa, sob uma aparência inocente ou bela, é uma fonte de calamidades.