Michel de Certeau constrói uma lógica relacional entre o discurso demonológico e a palavra da possuída ao estudar um célebre caso de possessão ocorrido na Idade Média. Seu estudo serve-nos de instrumento para pensarmos sobre as relações entre o discurso autorizado (jurídico, médico, psicológico etc.) por um saber constituído e a palavra do transgressor. Transgredir significa atravessar, diz Certeau. Com esta afirmação, ele circunscreve o problema de uma distorção entre a firmeza do discurso autorizado por um saber constituído e a função de limite exercida pela palavra do transgressor. Como numa peça teatral, podemos analisar o ajuste assimétrico de duas posições: a do juiz (ou a dos demais profissionais da justiça) e a do transgressor. De que lugar fala o transgressor? Ele fala do lugar de uma indeterminação, que se dá como um alhures que nele fala. O juiz e os profissionais que trabalham na justiça respondem por uma tarefa terapêutica de nominação. O essencial dessa terapêutica consiste em dar um nome ao sujeito que se manifesta do íntimo de sua incerteza, como falante. À alteração que o transgressor traz à tona com sua palavra incerta, a sociedade responde com a terapêutica de nominação prevista nos seus códigos. O tarefa do juiz e ou dos profissionais que gravitam em torno dele, consiste em classificar os falantes num lugar determinado pelo saber que esses discursos autorizados detêm. O transgressor se distancia da linguagem que permite organizar a ordem social. Ao passo que os juízes e os demais técnicos combatem o fora-do-texto onde se coloca o transgressor, buscando reavê-lo de sua fuga para fora dos campos do discurso estabelecido. Esta forma de abordar a questão da transgressão se apóia na afirmação sustentada por Certeau de que existe uma distinção entre o discurso do transgressor e o discurso autorizado pelo saber constituído. De tal modo que podemos falar de um corte entre o que diz o transgressor e o que diz o discurso autorizado. Existe um discurso do Outro na transgressão? A cena da instituição de custódia prepara a linguagem na qual irá se inserir a palavra do transgressor. E como a experiência da transgressão não tem linguagem própria, ela se inscreve no discurso da tradição de saber: eu sei melhor que tu aquilo que dizes. Quando o transgressor assume em sua fala esta linguagem imposta, o seu discurso alienado comporta o vestígio da alteridade que o discurso autorizado pretende recobrir. A alteração do discurso pela palavra traz a imagem da ambivalência dos procedimentos repressivos. O papel da citação, por exemplo, que é uma técnica literária do processo e do julgamento, serve para colocar o discurso numa posição de saber de onde ele pode dizer o outro. Na citação do outro, alguma coisa de diferente, ambivalente, retorna no discurso, e mantém o risco de uma estranheza que altera o saber tradutor ou comentador. A alteridade dominada no discurso formatado resguarda em latência um fantasma, como nos sonhos, revela uma estranheza inquietante: o poder alterador do recalcado. Esses indícios estranhos excluem a possibilidade de um fechamento do texto; marcam outro lugar no discurso; inscrevem uma transgressão sub-reptícia na rede da linguagem do saber. Funcionamento ambíguo que traça no texto uma divisão perigosa, e faz com que o texto produza uma estranheza diabólica.
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